Fórum Oswaldo Cruz: os desafios da ciência no mundo contemporâneo e o papel da Fiocruz
O ex-ministro português da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Manuel Heitor, participou no dia 5 de agosto do Fórum Oswaldo Cruz, evento que integra as celebrações pelos 125 anos da Fiocruz e marca o início do processo coletivo para a construção de um novo plano estratégico de pesquisa da instituição. O fórum reuniu especialistas de diversas áreas para debater os desafios da ciência no mundo contemporâneo e o papel estratégico da pesquisa na Fiocruz.
Na ocasião, Manuel Heitor ressaltou a importância da cooperação internacional em ciência para enfrentar desafios globais que exigem respostas científicas sustentáveis, coordenadas e voltadas ao bem público. Em sua fala, defendeu o papel transformador da ciência, sublinhando que não basta produzir ciência de excelência. “É preciso garantir que esse conhecimento se traduza em soluções reais para os problemas sociais e ambientais que enfrentamos”, disse, reforçando a importância da integração entre ciência, sociedade e políticas públicas.
Ao citar o geógrafo Mílton Santos, que há quase 50 anos introduziu “a dimensão do desejo de participação efetiva na construção de ações práticas também no domínio científico”, Manuel Heitor sublinhou que a ciência é sobretudo uma construção social. A elaboração de uma agenda científica portanto, explicou, deve contemplar o “cérebro coletivo” das comunidades, ou seja, o conhecimento compartilhado e as normas culturais e sociais que regulam a vida em sociedade.
Algumas questões “críticas”, tais como a saúde ambiental e a biodiversidade, ele disse que precisam ser priorizadas nessa agenda e a atividade de pesquisa voltada ao câncer ser desenvolvida a partir de um novo paradigma. Sua proposta é romper com a narrativa de o câncer ser uma doença crônica, a seu ver “imposta por um pequeno conjunto de grandes empresas farmacêuticas” e que contribui para o entendimento de que os serviços de saúde não têm o que fazer a não ser pagar por medicamentos inovadores. Para o ex-ministro, é preciso investir fortemente em prevenção, medicina preditiva/personalizada e detecção precoce, por meio da integração da pesquisa básica, clínica e análise de impacto social e econômico.
As nações que investem de forma estável em ciência e formação de capital humano são as que melhor enfrentam crises e constroem autonomia, explicou, por isso ele ressaltou a importância de políticas coordenadas para capacitação de cientistas e pesquisadores. “Ciência e tecnologia não podem ser vistas como despesas, mas como investimentos estruturantes para o futuro de qualquer país”, disse, pontuando que empregos estáveis e atrativos para jovens pesquisadores devem ser valorizados, pois a precarização causada por contratações atreladas a projetos curtos tem levado jovens talentos a abandonarem seus países.
Manuel Heitor elogiou a capacidade da Fiocruz em manter diálogo e continuidade entre gestões, algo “raro entre instituições de ciência e tecnologia no mundo”, destacando sua singularidade no cenário internacional como referência global na compreensão da ciência como prática e intervenção social.
Ao se referir à proposta do presidente da Fiocruz, Mário Moreira, “certamente inédita”, de construção de uma agenda de pesquisa de forma participativa, comparou esse processo à obra do artista Hélio Oiticica, que “tinha como função, verdadeiramente inovadora em nível do mundo, de trazer os participantes a entrarem nas obras de arte e, por isso, experimentarem a liberdade”.
O acesso ao conhecimento foi outro ponto abordado por ele, ressaltando que “o avanço tecnológico, quando mal distribuído, pode aprofundar desigualdades.” É preciso “uma reflexão justa sobre a forma do impacto do desenvolvimento científico e tecnológico naquilo que é o desenvolvimento humano”, lembrou, “sobretudo numa nova era dominada pela massificação das tecnologias digitais, com base em plataformas que exploram os dados de usuários sem compensação justa”.
Quatro vulnerabilidades moldam o planejamento científico, de acordo com o pesquisador. A primeira é a acelerada mudança tecnológica, com um grande aumento da produção científica chinesa e da cooperação científica internacional dos chineses com outros países. “As estatísticas oficiais não mostram uma clara penetração das instituições brasileiras neste esforço crescente de cooperação científica internacional e este é algo que a Fiocruz deve pensar”.
A segunda vulnerabilidade mencionada é a fragmentação do multilateralismo, com a Europa cada vez mais isolada da China, em um cenário geopolítico marcado pela competição econômica e militar entre potências, o que afeta a segurança da atividade científica.
A terceira é a polarização política e social, que cresce globalmente, inclusive entre jovens, e muitas vezes se associa a movimentos populistas e anticiência.
A quarta envolve desafios societais emergentes, como mudanças demográficas, desigualdade no acesso a medicamentos inovadores, impactos das mudanças climáticas e novas demandas sociais que devem integrar as agendas de pesquisa.
A partir dessas vulnerabilidades e da necessidade de uma diferenciação clara entre agendas voltadas à competitividade econômica e aquelas voltadas a desafios sociais globais., Manuel Heitor aponta três frentes estratégicas para serem priorizadas. A primeira delas é uma agenda científica para prevenção, prontidão e preparação das sociedades, antecipando crises, “algo que para a Fiocruz não é novo, mas que induzirá novas agendas científicas e um reforço com muito mais atenção”, ressaltou. As outras duas são a melhoria da qualidade do emprego para jovens cientistas e a simplificação e maior assunção de riscos na ciência, com novos modelos de avaliação e decisões mais ágeis para financiar pesquisa de fronteira e inovações disruptivas.