Inteligência Artificial, Saúde Global e Desigualdades
A inteligência artificial (IA) representa uma grande promessa para o avanço da saúde global - desde o aprimoramento de diagnósticos e os modelos preditivos de surtos e epidemias até a logística de insumos e a aceleração da descoberta de medicamentos. No entanto, para que esses benefícios sejam verdadeiramente universais, as demandas da saúde coletiva devem estar refletidas na produção tecnológica, a disseminação dos modelos e a distribuição dos resultados, incluindo as necessidades das populações mais negligenciadas dos países de baixa e média renda.
Embora o impacto da IA na macroeconomia, na produtividade, nos empregos, nos salários e na desigualdade permaneça incerto, as projeções apontam que a IA e outras tecnologias de automação podem aumentar o crescimento médio anual do PIB nas economias avançadas em 1,5% a 3,4% na próxima década (Acemoglu, 2025). A IA generativa e outros modelos de aprendizado já estão sendo incorporados às operações diárias de empresas e instituições em países de alta e média renda, impulsionando a eficiência e a inovação. Nesse contexto em rápida evolução, a comunidade global da saúde não pode ficar à margem. Deve envolver-se proativamente na adoção tecnológica, fomentar o debate crítico sobre riscos éticos e viés algorítmico e estabelecer princípios orientadores para o uso responsável e equitativo da IA nos sistemas de saúde.
Relatório recente das Nações Unidas destaca o surgimento de um "fosso de IA", no qual nações já prósperas consolidam e expandem sua liderança tecnológica graças a infraestrutura robusta, poder computacional, centros de dados e capital humano qualificado (United Nations, 2025). Enquanto isso, muitos países na África, na América Latina e em partes da Ásia permanecem excluídos das cadeias de valor da IA. Sem intervenção, esses países verão sua vantagem comparativa corroída por tecnologias poupadoras de trabalho e recursos, ampliando pobreza entre vulneráveis. Essas disparidades aprofundarão as desigualdades globais existentes. Abordar o papel da IA na saúde global, portanto, requer situá-la no contexto mais amplo das desigualdades estruturais, tomando medidas para garantir que a IA se torne vetor de inclusão.
Yanis Varoufakis (2023) aprofunda essa crítica ao descrever a emergência de um “tecnofeudalismo”, no qual plataformas digitais operam como feudos contemporâneos, monopolizando o acesso e extraindo valor por meio de "rendas da nuvem" impostas aos seus usuários. O resultado é uma subordinação algorítmica capaz de definir prioridades de pesquisa, preços e critérios de acesso, frequentemente alheios às necessidades da saúde coletiva. O caminho tecnológico dominante, liderado por um restrito grupo de big techs e grandes corporações, exacerba assimetrias de poder econômico, vulnerabiliza a privacidade e, como adverte Daron Acemoglu (2021), tende a promover automação que reduz salários e ameaça erodir fundamentos democráticos.
Em paralelo, urge refletirmos sobre os riscos de trajetórias concentradas e extrativistas. Qual o papel dos dados no corrente padrão de acumulação capitalista? Qual a sua função nos modelos de negócios e quais as implicações para a saúde global? Ao serem considerados ativos intelectuais digitais, a geração, o controle e o uso dos dados levantam questões críticas de governança. A ascensão da economia de dados, na qual a matéria-prima é extraída de enormes repositórios de informações pessoais e relacionadas à saúde (big data), demanda marcos regulatórios e políticas que assegurem seu tratamento como bens públicos e comuns, protegendo os direitos dos cidadãos e promovendo inovação que sirva ao bem-estar das sociedades, além de considerar a assimetria de poder informacional entre as empresas de plataforma e os cidadãos (Lastres, Cassiolato e Dantas, 2025).
Vivemos em plena reconfiguração das cadeias de valor globais e alianças geopolíticas e em meio a questionamentos em relação à ordem mundial do pós-Guerra. Nesse contexto, a dependência tecnológica em IA representa risco à soberania. Países que não conseguem desenvolver capacidade interna arriscam-se a se tornar meros consumidores de tecnologias controladas externamente, perpetuando ciclos de subordinação digital e econômica.
Além disso, mesmo quando essas tecnologias chegam aos mercados emergentes, seus benefícios continuam concentrados: países de baixa e média renda enfrentam barreiras de acesso e implementação, marcadas por infraestrutura digital limitada, escassa expertise técnica e marcos regulatórios inadequados. Essa desproporção não só corre o risco de aprofundar as desigualdades em saúde existentes, como também exclui esses países da definição do desenvolvimento e da governança ética de tecnologias de IA adaptadas às suas necessidades específicas.
Superar essas diferenças requer estratégias inclusivas que priorizem a capacitação e o investimento sustentado em ecossistemas de saúde digital. Modelos de governança de dados e inovação descentralizados levarão a sistemas mais justos, sem restringir o papel de países menos favorecidos a provedores de matéria-prima digital ou usuários finais de soluções meramente extratoras de renda.
Para aproveitar o potencial transformador da inteligência artificial para a saúde global, o mundo precisa ir além de modelos extrativistas e adotar a IA como pedra angular de projetos civilizatórios enraizados na equidade, dignidade humana e solidariedade. Isso significa promover inovação inclusiva, garantindo que os países de baixa e média renda sejam arquitetos ativos de futuros tecnológicos e sociais. Reduzir a desigualdade da IA exige mais do que acesso; exige redistribuir o poder, repensar a governança, estimular cooperações e redes e investir em capacidades digitais onde ela é mais necessária. Assim, a IA poderá realmente servir como alavanca para a saúde global, a justiça social e o desenvolvimento sustentável, promovendo não apenas o que é tecnicamente possível, mas também o que é moralmente imperativo.
Acemoglu, Daron. Harms of AI. No. w29247. National Bureau of Economic Research, 2021.
Acemoglu, Daron. "The simple macroeconomics of AI." Economic Policy 40.121 (2025): 13-58.
Korinek, Anton e Joseph E. Stiglitz. Artificial intelligence, globalization, and strategies for economic development. No. w28453. National Bureau of Economic Research, 2021.
Lastres, Helena, Cassiolato, Jose Eduardo e Marcos Dantas. Economia política de dados e soberania digital: conceitos, desafios e experiências no mundo. Editora Contracorrente, 2025.
United Nations. Mind the AI Divide. 2025.
Varoufakis, Yanis. Technofeudalism. What Killed Capitalism. Londres: Vintage Books, 2023.
Bernardo Bahia, pesquisador do CEIS/CEE-Fiocruz; e Claudia Chamas, pesquisadora do CDTS/Fiocruz. Texto publicado no Cadernos CRIS – Informe 09/2025.