Webinário mostra avanços no uso das tecnologias digitais na Atenção Primária à Saúde

Webinário mostra avanços no uso das tecnologias digitais na Atenção Primária à Saúde

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As tecnologias digitais vêm apresentando grande impacto no desempenho da Atenção Primária à Saúde (APS) no SUS e o Brasil está avançando na implementação dessas tecnologias no cuidado à saúde. Um balanço desse cenário pautou as apresentações do terceiro webinário da série Transformação Digital na Saúde Pública, do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz Antonio Ivo de Carvalho (CEE-Fiocruz), que trouxe como tema As tecnologias digitais na Atenção Primária à Saúde: Desafios e estratégias para o SUS.

Sob a mediação das pesquisadoras Ligia Giovanella e Maria Helena Mendonça, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz e do CEE-Fiocruz, o evento reuniu, em 5/12/24, a pesquisadora Virgínia Maria Dalfior Fava, integrante do projeto integrado Futuros da Proteção Social, do CEE-Fiocruz; a coordenadora dos Núcleos de Telessaúde da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Alaneir de Fátima dos Santos; o coordenador geral de Inovação e Aceleração Digital da Atenção Primária do Ministério da Saúde (Saps/MS), Rodrigo Gaete; e o coordenador do Laboratório de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Fiocruz Brasília, Wagner Martins.

Ao abrir o webinário, Ligia destacou a importância do debate sobre as contribuições das inovações tecnológicas na melhoria do cuidado, bem como os desafios e estratégias para que essas tecnologias sejam, de fato, integradas à rede assistencial do sistema de saúde. “É fundamental pensarmos a melhoria do acesso e a continuidade na coordenação do cuidado com integração da APS na rede assistencial, pela telessaúde e pelos sistemas de informação; que tenhamos educação permanente; e a melhoria do cuidado das pessoas com doenças crônicas, entre outras demandas, também pelo monitoramento remoto e melhoria da gestão”, observou Ligia.

Maria Helena Mendonça lembrou os trinta anos da Estratégia Saúde da Família, que teve início em 1994, ainda como programa, e vem se transformando em “modelo prioritário” da implementação da atenção primária no país. “Nesses trinta anos, houve mudanças no Brasil, no contexto internacional, na nossa população, e é necessário refletirmos e acompanharmos os desafios que a atualidade nos apresenta, principalmente, nesse campo tão complexo, como o da saúde digital, que busca trazer novas formas de apoiar o cuidado”. 

Assista à íntegra do webinário

 

Atenção primária, acompanhamento em todas as fases da vida

 

Em sua exposição, Virgínia Fava destacou a Atenção Primária à Saúde (APS) como principal porta de entrada no Sistema Único de Saúde. Como pontuou a pesquisadora, a APS, por sua capilaridade no território, foi designada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como o pilar mais importante no enfrentamento de emergências sanitárias, uma vez que acompanha a população em todos os ciclos de vida.

Virgínia abordou sua pesquisa de pós-doutorado sobre Saúde Digital, no Laboratório de Sistemas Inteligentes de Apoio à Decisão (IDeaS), da Universidade Nova de Lisboa, na qual examina evidências na produção acadêmica voltada à análise de tecnologias digitais já implementadas na atenção primária saúde, envolvendo pacientes ou profissionais de saúde, identificando “barreiras e facilitadores para implementação dessas tecnologias”, bem como os efeitos no serviço de saúde e nas condições clínicas ou comportamentais dos pacientes.

Conforme salientou, as evidências apontam que as tecnologias digitais na atenção primária podem contribuir para a resiliência do sistema de saúde diante de novas emergências sanitárias e destaca a importância do momento de implantação dessas tecnologias. “Isso vai determinar os impactos nos serviços de saúde e nas condições clínicas dos pacientes”, disse, alertando que é preciso verificar a usabilidade das ferramentas pelos profissionais de saúde e pacientes.

Segundo a pesquisadora, somente após uma análise cuidadosa, pode-se verificar a real efetividade da tecnologia implantada no sistema e seu impacto nos serviços de saúde. “É apenas a partir da implementação adequada que se pode verificar se há melhoria do acesso, da qualidade e uma melhor adesão a protocolos clínicos”, explicou.

Algumas tecnologias observadas foram a telemedicina, com evidências positivas quanto ao acompanhamento dos pacientes; os sistemas de apoio à decisão de profissionais de saúde, com resultados ainda inconclusivos quanto à adesão dos profissionais e ao impacto nas funções clínicas dos pacientes; sistemas de monitoramento remoto da saúde, cujas evidências também apontam dificuldade na implementação em larga escala; os portais do paciente, que incentivam a participação e responsabilizam os pacientes na gestão do autocuidado; e as tecnologias voltadas à formação de profissionais de saúde à distância, que promoveram melhora no conhecimento em relação aos protocolos clínicos e não apresentaram muitas diferenças quando comparado ao ensino tradicional.

Virgínia ressaltou que, como a maioria dos estudos sobre esse tema foram conduzidos em países desenvolvidos, principalmente na América do Norte e Europa, é preciso levar em conta a limitação dos resultados. Portanto, é preciso gerar evidências para identificar quais tecnologias digitais já estão sendo utilizadas na atenção primária do SUS e conhecer a opinião dos gestores municipais sobre as principais barreiras para a implantação dessas tecnologias.

Entre os temas que apareceram nas revisões realizadas, estiveram a prevenção, com tecnologias como monitoramento remoto de pacientes e sistemas de apoio à decisão dos profissionais de saúde, além de mensagens direcionadas a públicos específicos. “As evidências mostram que essas tecnologias aprimoram o comportamento de prevenção”, disse Virgínia, trazendo como exemplo o aumento nas taxas de vacinação e, no nível da atenção secundária, a realização de exames de rastreamento.

Doenças crônicas, atenção à saúde mental, pandemia de Covid-19 e o processo de diagnóstico laboratorial, com apoio à decisão da solicitação de exames e interpretação e comunicação do resultado final, foram outros temas que vieram à tona no estudo.

Um salto na transformação digital do SUS

A professora Alaneir dos Santos iniciou sua exposição lembrando que o Brasil já tem uma estratégia de saúde digital desde 2013, em consonância com recomendação global da OMS, e apresentou um balanço do processo de estruturação da saúde digital no país. Ela destacou os avanços registrados, levando-se em conta o contexto brasileiro, com suas diferenças regionais. “Temos um processo muito importante no Brasil de transformação digital do SUS”, afirmou.

Ela apresentou estudo do Ministério da Saúde, de 2023, mostrando que “de alguma forma, o SUS está conseguindo incorporar as tecnologias de informação quase no mesmo ritmo de estruturação que o setor privado faz no país”, embora ainda atrás deste – em relação a serviços como agendamentos online de consultas e visualização de resultados de exames, por exemplo. “O processo de incorporação de tecnologias de saúde digital em que o setor público ultrapassa o privado é na área de telessaúde”, apontou.

Alaneir apontou “uma mudança muito significativa” no processo de incorporação de tecnologias digitais no Brasil. A instauração da Secretaria de Saúde Digital (Seidigi) no Ministério da Saúde, considerou, situa a transformação digital como prioridade do sistema, em associação às prioridades institucionais já existentes. “Estamos em um momento muito interessante do SUS, com o programa SUS Digital [do Ministério da Saúde], com características, tanto de processos de planejamento dessa incorporação, quanto de implementação e avaliação”, disse, explicando que, nessa perspectiva do SUS Digital, o trabalho se orienta pelo índice de maturidade digital do SUS, que abrange dimensões como formação, infraestrutura, monitoramento, avaliação e governança. Como explicou, trata-se de um índice usado internacionalmente, adaptado ao Brasil, que vincula repasse de recursos a um processo que leva em conta a vulnerabilidade social e a classificação que o IBGE faz sobre municípios rurais remotos – o que pode significar possibilidade de maior ou menor transmissividade.

“O primeiro resultado desse índice de maturidade digital foi uma pesquisa já sistematizada e disponível, envolvendo as redes de atenção à saúde e a prestação de serviços para as macrorregiões, bem como aspectos como força de trabalho, comunicação, formação e educação permanente e as prioridades das macrorregiões de saúde em sua relação com a transformação na saúde digital”, relatou, observando que foi fado “um salto” no âmbito do SUS.

Conforme foi contabilizado, a rede de saúde materna e infantil registrou índice de implementação de 98%, seguida da rede de urgências e emergências (95%), da rede de Atenção Psicossocial (92%), rede de cuidados à pessoa com deficiência (88%) e a rede de atenção à saúde das pessoas com doenças crônicas a que está com a implementação mais lenta (67%). Foi realizado, ainda, destacou Alaneir, um levantamento sobre as filas por especialidades, entendendo-se que é possível “contribuir muito” na atenção primária para a redução dessas filas na atenção secundária.

“Com as teleconsultorias, voltadas a discussões de casos entre os médicos de saúde da família e especialistas, nas diversas especialidades, conseguimos manter o paciente na atenção primária com qualidade. A teleconsultoria é muito potente para impactar essas filas de especialidades”, avaliou.

Foram localizadas também, nesse diagnóstico, as redes consideradas prioritárias pelos municípios para passarem pela transformação digital, tendo sido apontada a rede de atenção psicossocial, ao lado da rede de atenção à saúde materna e infantil. “O programa SUS Digital [do Ministério da Saúde] está, neste momento, a partir desses diagnósticos realizados nas várias regiões, discutindo estratégias e os recursos necessários para essas prioridades, seja fortalecendo o prontuário eletrônico, seja integrando de forma mais rápida os dados da Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS), seja ampliando a oferta de serviços de telessaúde e fortalecendo as ações de formação e cultura em saúde digital”.

Conforme apontou Alaneir, estão registrados na RNDS 2 bilhões de atendimentos. “Isso significa a possibilidade de o paciente ver seus registros, tanto na área hospitalar quanto na atenção básica, no momento em que é atendido no SUS”. Além disso, são contabilizados 15 milhões de autorizações de internações hospitalares e 23 milhões de autorizações para procedimentos de alto custo ou complexidade, acrescentou, entre outros dados relativos à rede. “Um avanço grande para que tanto o profissional quanto o paciente consigam ver seus dados de atendimento, independentemente do lugar em que estejam sendo atendidos. Estamos crescendo muito rapidamente nessa perspectiva”, considerou.

A professora ressaltou, ainda, a iniciativa do Ministério da Saúde de incorporar a estrutura da telessaúde nos distritos sanitários especiais indígenas, com exames como retinografia, eletrocardiograma, dermatografia, além de teleconsulta e teleconsultoria.

Ela trouxe também dados de uma pesquisa em fase preliminar, realizada pelo Ministério da Saúde com a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), que já possibilitam dar uma visão geral da atenção primária no que diz respeito à saúde digital no Brasil. Em relação ao acesso à internet, 65% das unidades básicas falando que apresentam condições adequadas para a realização das suas atividades, enquanto para 29% isso ainda é um problema e 5% não têm acesso à internet. Ao mesmo tempo, 71% das unidades básicas de saúde informaram ter conexão com a internet em todos os computadores, incluindo a recepção. “Vemos um salto em relação à estrutura disponível no âmbito da atenção primária no Brasil”, considerou Alaneir.

E-SUS APS: integrações multimunicipais

Esses avanços observados por Alaneir conformaram a exposição de Rodrigo Gaete, que apresentou no webinário o e-SUS APS, estratégia da Secretaria de Atenção Primária do Ministério da Saúde (Saps/MS) voltada a concretizar um novo modelo de gestão de informação que apoie os municípios e os serviços de saúde na gestão da APS e na qualificação do cuidado dos usuários. “A Estratégia SUS-APS vem sendo construída ao longo dos anos, desde a época em que a Saps se chamava Departamento de Atenção Básica, em 2011, tendo os primeiros produtos liberados em 2013”, disse, apresentando uma linha do tempo até os dias de hoje. “Estamos hoje na versão 5.3 e com uma série de evoluções importantes, a mais recente, experimentando alguns movimentos de integração com a saúde indígena, buscando uma atenção básica integrada, coordenando o cuidado e dialogando com as diferentes interfaces de serviços do SUS”.

Rodrigo resgatou aspectos da evolução da estratégia, ao longo de mais de 11 anos, desde o tempo em que “a gente ainda falava de fichas de papel”, passando pela implementação do prontuário eletrônico desenvolvido pelo Ministério, até o e-SUS-APS. “A gente observa um avanço bastante significativo, reduzindo a quantidade de unidades de municípios que trabalham com sistemas ainda em ficha de papel, concentrando esforços no uso do prontuário eletrônico, com foco na atenção primária, o e-SUS-APS, e evoluindo na perspectiva de uso de sistemas próprios pelos municípios, integrados ao SUS. Assim, temos um braço dos processos de inovações tecnológicas dentro de municípios que tenham capacidade, possibilidades para evoluir nesse tipo de solução”.

Nesse sentido, ele destacou a proposta de atuação do e-SUS APS em um contexto ampliado, não mais com foco no município, em regiões de saúde, o que estamos chamando de integrações multimunicipais, visando compartilhar as infraestruturas tecnológicas de alguns municípios, beneficiando aqueles com menor capacidade instalada.

Rodrigo destacou marcas importantes, como os 35,5 milhões de atendimentos ao mês sendo enviados para o e-SUS APS hoje. “Isso representa algo em torno de 1,5 milhões de atendimentos ao dia, uma virada de chave muito importante. Temos cada vez mais informações para tomada de decisão, para apoiar o profissional, para apoiar os gestores, para apoiar as ações da política”, disse lembrando também que o índice de consultórios informatizados, hoje, é de 94,9%.

No que diz respeito à Rede nacional de Dados em Saúde, Rodrigo destaca o potencial de se ter uma plataforma para trocar dados entre serviços, no contexto do e-SUS APS e fora dele, como o SUS Digital Profissional, um portal clínico de acesso a dados que podem consumir informações de outros serviços para além da Atenção Primária. “Um conjunto de elementos que vão se somando para apoiar o processo de cuidado, dentro da Atenção Primária e na coordenação do cuidado com atenção especializada”, observou.

Para Rodrigo, o prontuário eletrônico do e-SUS APS é a “grande aposta” da estratégia do SUS digital, consistindo no maior prontuário eletrônico da América Latina e utilizado em quase 77% dos municípios brasileiros, conforme pontuou. “Precisa ser muito robusto e temos investido muito na performance. O prontuário não é instalado no Ministério da Saúde, é totalmente descentralizado, sob responsabilidade dos municípios – claro que com níveis de maturidade diferentes. Temos 66% dos municípios usando de forma predominante o sistema. Um software gratuito, feito pelo SUS e para o SUS”, destacou, informando que o projeto baseia-se no modelo de “registro clínico orientado por problemas”, tendo-se a lista de problemas a serem enfrentados como estruturante do processo de gestão do cuidado.

Picaps:  a situação da saúde no território

O coordenador do Laboratório de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Fiocruz Brasília, Wagner Martins, falou da Plataforma de Inteligência Cooperativa com a Atenção Primária à Saúde (Picaps), estratégia criada em 2020 para enfrentamento da Covid nos territórios do Distrito Federal. Fruto de acordo de parceria da Universidade de Brasília (UnB) com a Secretaria de Saúde do Distrito Federal, firmado naquele ano, a plataforma articula a comunidade científica, o serviço de atenção primária da Secretaria e as pessoas que atuam nos territórios. Wagner referiu-se ao conceito de território na perspectiva do geógrafo Milton Santos, “como o espaço de poder, um lugar vivido onde há fluxo de informações”, que, de acordo com o pesquisador, podem ser apropriadas pela comunidade local para criar resiliência e resistência.

Depois de passar por uma atualização, a plataforma teve seu escopo ampliado, sendo utilizada como estratégia de enfrentamento de crises sanitárias e climáticas e produzindo subsídios para tomada de decisão. O ecossistema de inovação da Picaps passou a incluir quatro eixos de atuação: Inovação Social pelo Radar de Territórios do Distrito Federal; Inovação Educacional pela Teleorientação; Inovação em Serviços pela Inteligência Epidemiológica; e Inovação Digital pela Transformação Digital e Saúde Digital.

Por meio da ferramenta, explicou Wagner, faz-se o acompanhamento sistemático da situação de saúde do território, provendo suporte para os processos científico, educacional e até mesmo emocional dos trabalhadores da APS, da vigilância em saúde e das pessoas do território. A Fiocruz Brasília é responsável pela gestão do projeto interinstitucional e a Secretaria de Saúde do DF está representada pelo seu Centro de Inteligência Estratégica para Gestão.

“Estamos buscando uma saúde pública de precisão, como apontam nossos colegas da Fiocruz, Bahia Manoel Barral e Maurício Barreto, e outros cientistas, a partir de grande quantidade de dados que estão sendo disponibilizados”, explica Wagner trazendo também o conceito de inteligência cooperativa, que “ajuda a articular a ideia de inteligência como atributo individual, como capacidade coletiva e como método de coleta, sistematização e uso de dados levantados no processo de saúde e doença”. 

Para implementação da Picaps, quatro anos atrás, foi elaborado um plano integrado que compreende ações de comunicação comunitária, formação da comunidade e de profissionais, desenvolvimento de metodologia para mapeamento de risco e cartografia territorial, além de outras atividades pactuadas entre a UnB, a Fiocruz e a Secretaria de Saúde. Esse documento, de acordo com o pesquisador, mantém-se orientando o projeto.

“A articulação do ensino, da pesquisa e da aplicação foi muito importante para dar suporte a esse trabalho. Tínhamos ali a formação de pesquisadores populares que faziam parte de comitês locais e esses pesquisadores ajudaram a mapear os territórios, fazendo cartografia social a partir dos fatores determinantes da saúde da população”, concluiu.