‘Se o produto não é para o SUS, não merece prioridade de política pública para saúde’

‘Se o produto não é para o SUS, não merece prioridade de política pública para saúde’

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Publicado no site JOTA

Secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Complexo da Saúde, Carlos Gadelha defende regras tributárias que incentivem a produção ligada à saúde no país, maior diálogo com órgãos de controle de forma a garantir segurança nos preços destes produtos nas compras públicas e a adoção de critérios regulatórios sanitários que levem em consideração o desenvolvimento local. “Produzir no Brasil tem que ser bom. Tem que haver segurança jurídica”, afirmou, em entrevista ao JOTA.

O economista, que entre 2011 e 2015 esteve à frente da secretaria, então com outra denominação, diz ser necessário inovar para garantir o fortalecimento do complexo econômico industrial da saúde

“Não estamos aqui apenas para o que já foi feito há 10 anos. A gente tem de fazer diferente.” A meta é assegurar que a produção em saúde incentive o desenvolvimento social e a preservação ambiental. “Se o produto não é para o SUS, não merece prioridade de política pública para saúde. Se não tem sustentabilidade ambiental, não merece nenhum tipo de política industrial seletiva. Outro ponto importante: é preciso garantir o bem estar e o ambiente.”

Há 70 dias no cargo, Gadelha diz ter encontrado um cenário de destruição na estrutura do ministério, na sua chegada. “O quadro era mais grave do que aquele
descrito”, constata.

A agenda dos dois primeiros meses foi em grande parte dedicada a ouvir o setor e fazer um levantamento das necessidades prioritárias. Dos relatos reunidos e informações recebidas, Gadelha traça prioridades: retomar as parcerias de desenvolvimento produtivo, resgatar o poder de compra do Estado, que foi abalado, e garantir linhas de financiamento.

A seguir, os principais trechos da entrevista:

A chegada

Gadelha afirma que encontrou a secretaria sem estrutura, com sistemas de informação muito precários e redução da capacidade técnica. “Se não fosse uma área tão sensível, seria preciso seis meses para arrumar o sistema. Mas não podemos nos dar esse luxo. A reestruturação será feita também mediante parceria com estados e municípios, para identificar áreas críticas e evitar falta de produtos essenciais à população.”

Complexo econômico industrial

O secretário observa que a pandemia deixou clara a importância do complexo econômico da saúde e, ao mesmo tempo, a grande fragilidade do sistema até então existente: “Não havia máscara, não havia ventilador. Conseguimos fazer a vacina, mas poderia ter sido uma resposta muito mais rápida do que demos. Foi às custas de muitas vidas.”

Gadelha diz ser necessária a reconstrução da infraestrutura necessária para dar impulsionamento ao complexo industrial, uma vez que o departamento do complexo industrial havia sido desfeito e o grupo executivo, com participação de inúmeros ministérios, desmobilizado.

Antes da pandemia, havia um clima de descrédito em torno das Parcerias de Desenvolvimento Produtivo (PDPs), provocado sobretudo pelos atrasos dos
contratos.

Ao ser questionado sobre as críticas, Gadelha, contudo, cita o exemplo das vacinas de Covid-19 produzidas na Fiocruz e no Instituto Butantan, para mostrar o quanto as iniciativas são importantes. Mesmo que projetos por algum motivo não consigam ser concluídos há sempre um rastro tecnológico.

“Ambas foram feitas em plataformas tecnológicas trazidas por PDPs. Na Fiocruz, foram as parcerias para biofármacos. No caso do Butantan, parceria para produção de vacina contra gripe. Uma política inovadora em saúde já mostrou seu valor salvando 200 mil vidas. Ninguém pode dizer que é impossível ou que que não é importante produzir no país. Na nossa conta tem 200 mil vidas salvas.”

“Não é uma meta virar autarquia, não ter relações internacionais. Mas não é razoável a gente ter o maior sistema universal do mundo de saúde e depender em 80% de matérias primas farmacêuticas produzidas no exterior.”

Diálogo com órgãos de controle

Um dos reflexos da falta de incentivo para complexo industrial foi a redução da importância das PDPs. Nos últimos anos, apenas parcerias que estavam em andamento continuaram. Muitas propostas foram engavetadas.

Mas além da falta de empenho de governos anteriores, Gadelha reconhece haver uma insegurança em torno do tema. Há, avalia, vários pontos a serem aprimorados para tornar as parcerias mais atrativas e efetivas.

O secretário cita como exemplo os problemas relacionados a preços nas compras públicas. “Atualmente, um mesmo produto pode ter vários preços diferentes: além do estabelecido na parceria de desenvolvimento produtivo, há o preço dos pregões. Ninguém consegue trabalhar sem ter uma garantia”.

Com a instabilidade nos preços e, consequentemente, do mercado, os empecilhos começam antes mesmo de a parceria ser efetivada. Muitas das PDPs são feitas mediante financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico Social e Social (BNDES). “Mas como o banco vai financiar um projeto estratégico se a empresa que vai ser financiada não tem um horizonte de mercado? Em alguns casos, leva-se 5, 10 anos para absorver tecnologia”.

Perdas

Pelas contas de Gadelha, investimentos represados na área de saúde chegam a R$ 30 bilhões, em virtude da falta de segurança. Os recursos se referem a produtos ligados a todo complexo: farmacêuticas, equipamentos, novas atividades de serviços.

Ele observa haver atualmente um esforço do Tribunal de Contas da União de se aproximar do mundo da inovação. “É preciso deixar claro que nosso objetivo é ampliar o mercado, para garantir todo suprimento para o SUS. Precisamos produzir melhor. Ter parcerias bem sucedidas. Não posso fazer uma política de investimento que requer prazos de 5 a 10 anos para ficarem maduros e eu ter que me sujeitar a preços especulativos a cada ano.”

O ciclo é conhecido, diz. Ao anunciar parcerias, algumas empresas produtoras de medicamentos reduzem de forma expressiva o preço nos processos de compra governamentais, justamente para garantir mercado. Gadelha afirma ser constante: basta se anunciar uma PDP, para outros preços caírem. E, para órgãos de controle, a lógica que impera é a do menor preço. Daí a necessidade de ajustes.

Estratégia de retomada

O secretário avalia que o grande desafio será recuperar a base institucional do complexo industrial, com a retomada, por exemplo, do poder de compra do Estado — abalado com a paralisação das parcerias.

“Seria importante que a produção local se transforme em parâmetro para compras públicas. E isso envolve uma mudança no marco regulatório e conversas com órgãos de controle.”

O economista cita outro exemplo para mostrar que ajustes precisam ser feitos. Um dos mecanismos para incentivar a indústria da saúde é a compensação tecnológica: quando em um contrato de compra há também a previsão de um investimento tecnológico no país.

Tributação

Isso foi usado para construção de um fábrica de aceleradores lineares para radioterapia, na cidade paulista de Jundiaí, por exemplo. “Não funcionou, sobretudo em virtude da carga tributária. Em alguns casos se paga mais impostos produzindo localmente. Por isso falamos não em isenção tributária, mas em isonomia tributária. Precisamos entrar de cabeça na reforma tributária. Isonomia competitiva é fundamental.”

Gadelha cita também a retomada do financiamento de longo prazo via BNDES, Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e outras agências. “A área é estratégica para saúde e bem estar, merece um tratamento especial para que a gente estimule o investimento em produção local e inovação.”

Um terceiro aspecto abordado pelo secretário é a área de regulação sanitária. Ele defende um outro olhar, que leve em consideração a produção local. “Além da segurança e eficácia, que são quesitos inegociáveis, seria importante, talvez, pensar no desenvolvimento local como uma agenda importante da nossa regulação.” Para isso, pretende conversar com integrantes da Agência Nacional de Vigilância Sanitária.

Prazos de retorno

Gadelha ressalta ser importante ter em mente que investimentos no complexo não têm retorno imediato.

“Tudo em saúde é delicado e complexo. Nessa área, ou você faz política com horizonte largo, de médio prazo, ou melhor não fazer. Caso contrário, seria jogar recursos públicos fora. Não se passa a produzir vacina, medicamento, ventilador ou máscara, de um dia para o outro. Em saúde não tem cama, tem leito. Isso ao mesmo tempo permite trabalhar num gradiente tecnológico que vai desde tecnologias sofisticadas, como terapias avançadas, gênicas a outras mais
simples.”

As prioridades

Para o secretário, seria importante o país trabalhar num gradiente tecnológico de respostas de curto (até cinco anos) e médio prazo. Em sua avaliação, a política precisa levar em consideração vários aspectos da saúde. De um lado, investir na produção nas áreas de maior interesse empresarial.

“Não podemos cair na esparrela de nos concentrarmos em doenças tropicais”, diz. Em sua avaliação, é preciso ter em mente a necessidade de se garantir o direito à saúde. E o caminho para isso é por meio do investimento na capacidade tecnológica e atender todas as necessidades.

“O monopólio faz mal à saúde. A chave está em atrair investimentos e articulação  produtiva no Brasil na ponta tecnológica, onde o interesse empresarial é muito grande. Inclusive em parceria com as empresas. Teria como critério a empresa ser nacional ou estrangeira? Não. Nosso único critério será produzir no Brasil ou não. A gente está convidando as empresas. Vamos virar a página e vamos voltar a investir no país.”

Ao mesmo tempo, Gadelha diz ser importante incentivar a produção de medicamentos para doenças negligenciadas que, de acordo com ele, são de interesse de empresas de pequeno e médio porte. “Uma opção é fazer um mix, em que elas produzam itens de maior lucratividade e outros de menor rentabilidade, mas igualmente importantes.”

“ Se o produto não é para o SUS, não merece prioridade de política pública para saúde. Se não tem sustentabilidade ambiental, não merece nenhum tipo de política industrial seletiva. Outro ponto importante: é preciso garantir o bem estar e o ambiente.”