Excesso de riqueza – um outro olhar sobre a justiça distributiva, por Sonia Fleury
Deve haver um limite para a riqueza? Essa é apenas uma questão moral ou tem outras consequências sobre a democracia, equidade e sustentabilidade do meio ambiente? Deve-se estabelecer uma linha de riqueza que defina o máximo salário assim como o governo define o salário mínimo? Deve-se evitar que uma pessoa seja exageradamente rica simplesmente porque herdou tal riqueza?
Foi com essas questões que Ingrid Robeyn, titular de Ética das Instituições, do Instituto de Ética da Universidade de Utrecht, na Holanda, iniciou a conferência de abertura do congresso anual da HDCA – Human Development Capabilities Association, realizado em Buenos Aires em final de agosto passado. Ingrid Robeyn foi eleita a nova presidente da HDCA, instituição criada em 2004, mas que tem realizado, em diferentes países, encontros anuais desde 2001. A associação reúne pesquisadores de mais de 70 países que desenvolvem trabalhos inspirados pelo paradigma do Desenvolvimento Humano, lançado pelo PNUD na década de 1990, e que define o desenvolvimento humano como expansão das liberdades da pessoa para viver melhor, de forma mais saudável e criativa. A partir do trabalho de Amartya Sen, conhecido como a Abordagem das capacidades, adiciona-se ao paradigma do Desenvolvimento Humano a noção de capacidades, relativa às reais oportunidades que uma pessoa tem para atingir certo tipo de vida. Ou seja, é uma perspectiva moral que aborda tanto o bem-estar quanto a questão da agência (capacidade de agir dos indivíduos).
O trabalho apresentado[1] por Ingrid Robeyns procura mudar o foco da discussão sobre justiça social, que esteve concentrado em construir uma métrica para analisar a pobreza, dirigindo-o para o estudo das consequências da existência de pessoas excessivamente ricas. Essa abordagem da justiça distributiva é por ela denominada Limitarianism, e seu princípio fundamental é que não é moralmente permissível ter mais recursos do que aqueles necessários para uma vida plenamente realizada.
Para além das questões atinentes à moral, o que justificaria o estabelecimento de limites à riqueza é o fato de este ser o instrumento para a defesa do princípio democrático da igualdade política e do princípio de atenção às necessidades urgentes. O excesso de recursos financeiros ameaça a realização de ambos princípios democráticos.
O argumento democrático para a limitação do excesso de riqueza é que é impossível preservar a igualdade quando a riqueza excessiva se transforma em poder político. Quatro seriam os mecanismos que transformam recursos financeiros em poder político: a compra de votos, o uso do dinheiro para definir a agenda política e o processo decisório, influência na construção do que é percebido como conhecimento e, por fim, uso do poder econômico concentrado em firmas para influenciar o poder político, em detrimento da vontade dos cidadãos.
O problema não é tanto acerca de que existem iniquidades em uma esfera da vida – a econômica – mas de como isso pode afetar outras esferas, provocando novas iniquidades, como na política, na educação etc.
O argumento democrático para a limitação do excesso de riqueza é que é impossível preservar a igualdade quando a riqueza excessiva se transforma em poder político
Outro tipo de justificativa para a limitação da riqueza excessiva tem a ver com a persistência de necessidades relativas ao enfrentamento da extrema pobreza, da existência de desvantagens locais e globais e da necessidade de financiar ações coletivas governamentais que favoreçam o desenvolvimento humano. Nesse caminho, a existência de excesso de riqueza tem um sentido relacional, ao impedir a solução dos problemas apontados, o que requer um recall do que esteja acima da linha de riqueza para que os governos possam fazer políticas distributivas.
A autora defende o estabelecimento de uma métrica para tratar da questão da excessiva riqueza, tal como foi elaborada em relação à pobreza extrema. Uma linha de riqueza deveria ser desenvolvida em bases científicas, simetricamente para ambas as pontas da linha de distribuição da riqueza.
Seguindo outros estudos que já estão dedicados a medir a riqueza excessiva (os super ricos), a autora estabelece três condições que devem estar presentes no desenvolvimento dessa métrica: primeiramente, como é percebido no senso comum, deve referir-se às possessões materiais das pessoas, em segundo lugar, incorporando a abordagem de capacidades, deve-se ter em conta o que esses recursos habilitam as pessoas a fazer e ser, e, em terceiro lugar, propõem que se estabeleça uma clara distinção entre necessidades e vontades.
A proposta de uma equação para definir a linha de riqueza excessiva é desenvolvida pela autora, que também estabelece uma discussão com contra-argumentos acerca da necessidade de manter os super ricos, para gerar inovação, para manter o espírito de competição e para a busca da riqueza etc.
A sensação que fica dessa interessante exposição é de profundo ceticismo, em função exatamente do que foi argumentado inicialmente, ou seja, de como os recursos financeiros se transformam em recursos de poder, portanto, capacidade de veto de medidas de políticas públicas que busquem avançar na direção da limitação do excesso de riqueza. Algo como “é preciso antes combinar com os russos,” para usar a famosa frase do Garrincha.
No entanto, causa surpresa animadora verificar quão avançado se encontra o debate mundial sobre a justiça distributiva e quão importante é esse deslocamento do tratamento exclusivo da pobreza para a abordagem, nos mesmos parâmetros, do excesso da riqueza. Isso estabelece, com clareza, que as pontas dizem respeito a um mesmo fenômeno, um mesmo contínuo da distribuição da riqueza. Outras disciplinas, como a Sociologia e a Economia poderão contribuir para esse debate, iluminando as condições relacionais de geração de tão injusta distribuição.
* Sonia Fleury é doutora em Ciência Política e pesquisadora sênior do CEE-Fiocruz.
[1] Robeyns, Ingrid, ‘Having too much’ in: J. Knight and M. Schwarzberg (eds), Wealth: NOMOS LVI, NYU Press, pp. 1-44