Eleições e a urgência de reformas estruturais em mãos democráticas, na análise de Nelson Rodrigues dos Santos
*Publicado originalmente no site do Cebes
Inicio este minitexto lembrando o saudoso Gilson Carvalho, sempre disponível e fraterno, exemplo de rica militância na realização igualitária do direito à saúde e construção do SUS. Em minitexto anterior, lembramos o significado e peso hegemônico da globalização financeira, comandados pelos 1 a 2% mais ricos no topo mundial do Deus Mercado, que penetra e controla os poderes de Estado e submete a autonomia da relação sociedade-Estado à dantesca concentração de renda e riqueza. No Brasil, nos 30 anos pós-constitucionais, essa concentração vem elevando a desigualdade social a tensões insustentáveis, sobrepõe à notável inclusão social a partir de 2003, e aprova a famigerada EC 95/2016 – talho maior no desmanche de 30 anos na Constituição Federal/1988. Referimos ainda fatores geradores do modus operandi dessa concentração em todos os ciclos governamentais nesses 30 anos.
Agora objetivamos contribuir na busca de formulações e mobilizações por projetos de novo governo de real interesse da sociedade, para com ela debater para o seu desenvolvimento e seus direitos básicos. Para as nossas forças democráticas, desenvolvimentistas e populares, quais são as propostas e projetos de novo governo, após as profundas mudanças geradas no processo da globalização nos últimos 30 anos? Quais dessas mudanças são aparentemente irreversíveis, para as sociedades e estados nacionais, quais seriam os grandes desafios no campo do conhecimento, tecnologias, informática, automação/robótica, e consequentes mudanças estruturais nos processos produtivos e relações de trabalho? Quais são hoje, nossas propostas e projetos de reformas estruturais no Estado? A previdenciária e a trabalhista compatíveis com as mudanças estruturais nos processos produtivos e de relações de trabalho, mas capazes de inovar ou reestruturar a garantia dos direitos sociais fundamentais, e eliminar as pesadas e injustas heranças elitistas e corporativas? Incluindo progressividade no cálculo atuarial das previdências pública e privada, suficiente para garantir o equilíbrio receitas/benefícios? Só como exemplo: acima de determinado estrato de renda mensal (25 salários mínimos?) incidiriam %s crescentemente maiores do recolhimento previdenciário e seriam exigidos maior tempo de serviço e idade mínima?
Também o efetivo controle da pejotização, das bilionárias sonegações e renúncias fiscais no recolhimento das contribuições sociais. Quais são nossas alternativas à atual desvinculação de grandes nacos das receitas públicas das contribuições sociais (DRU, DRE e DRM) da área social para pagar serviços da nunca auditada dívida pública? A cidadania nacional tem ciência e posicionamento sobre essa questão? Quais são as bases das nossas reformas tributária, política e eleitoral? E nossas reformas sanitária, educacional e ambiental, que nos 30 anos pós-constitucionais foram emprenhadas pelo grande capital Estado-dependente, pela área econômica do Executivo nacional e pelas bancadas lobistas no Congresso Nacional, que impedem ou distorcem a universalidade, equidade e integralidade? Além das iniciativas formuladoras de nossas propostas e projetos, como elas se articulam aos debates amplos e unificadores, com vistas ao seu fortalecimento nas grandes maiorias sociais dependentes da produção, comercialização e fornecimento de bens e serviços – desempregados, subempregados, assalariados, autônomos e empresários – hoje todos explorados e/ou submetidos pela especulação financeira/agiotagem e pelo Estado nacional cooptado? Quais os compromissos programáticos de governo, a serem assumidos pelos partidos e candidatos ao Executivo e Legislativo, em amplo debate eleitoral, e registrados para cobrança pela sociedade? O que as entidades e os movimentos sociais requerem para que sua grande força eleitoral prossiga em suficientes forças de cobrança pelo cumprimento dos programas e projetos eleitos? Ou à sociedade restará mais uma vez, delegar acriticamente seu futuro aos atuais partidos, lideranças e aguardar mais 4 anos?
Convimos que as respostas às questões acima devam considerar referenciais da nossa história recente tais como: a) nos anos 80 foram realizados amplos debates e mobilizações sociais visando o final da ditadura e democratização do Estado, que garantiram a Constituição cidadã de 1988 e b) nesses debates e mobilizações foram retomadas as bandeiras das reformas estruturais no Estado, na direção da sua democratização e demais reformas que foram banidas pelo golpe ditatorial de 1964 (Plano de Metas Nacionais de 1956/59 e Reformas de Base de 1961/63 – Agrária, Urbana, Tributária, Política, ampliação da Trabalhista e Previdenciária, etc), todas inspiradas nos Estados europeus de Bem-Estar Social. Eram reformas politicamente contra-hegemônicas, mas com crescente mobilização, na direção de pactos sociais para construção de um projeto de nação. Algumas influenciando o Congresso Nacional (entre 1945 e 1960 foram aprovadas a CLT, a Cia Siderúrgica Nacional, a Petrobrás, a Lei Orgânica da Previdência Social e outras). Ao final dos anos 80, estavam explicitamente resgatadas e confirmadas as bandeiras desenvolvimentistas e democráticas das reformas estruturais do Estado, em processo que aparentava ser hegemônico.
Contudo, outras forças e lideranças que também se opuseram à ditadura, passaram a comandar nossa democracia pós-ditadura. A partir dos anos 90, trocaram a retomada das reformas estruturais para um projeto de nação por outras bandeiras: combate à inflação por meio da austeridade fiscal, da elevação da dívida pública, da financeirização do orçamento público, da privatização de empresas estatais, da elevação da concentração da renda e riqueza, da desindustrialização, e da distorção na prática das diretrizes constitucionais conquistadas no Título da Ordem Social da CF/88. Uma verdade maior globalizada, midiática e intelectualmente intangível, passada à sociedade. Porém, a campanha eleitoral presidencial de 2002 revelou que a maioria da sociedade, com desemprego, subemprego e intensa agiotagem aos empresários produtivos, duvidava dessa verdade maior e permanecia esperançosa nas reformas estruturais, desenvolvimentistas e democráticas do Estado. A partir de 2003, o espaço político-social da sociedade e das reformas estruturais, bandeira histórica dos movimentos sociais, é plenamente preenchido pela marcante e acertada inclusão social de dezenas de milhões, propiciada pelo ajuste do salário mínimo acima da inflação, pelo programa bolsa-família, pela reativação do mercado interno, pelo boom das commodities e outras positivas medidas governamentais. Não mais foram privatizadas empresas estatais, e o desemprego/subemprego foram controlados com a grande inclusão social. Por volta de 2006/2008, o governo era aprovado por 80% da sociedade incluindo importantes segmentos empresariais. Porém, os segmentos e tendências mais avançados e consequentes da coligação no governo federal a partir de 2003 não conseguiram intervenção nem influência para impedir a continuidade de todos os demais componentes da verdade única dos anos 90: controle da inflação com austeridade fiscal, elevação da dívida pública, financeirização do orçamento público, elevação da concentração da renda e riqueza/desigualdade social, graves distorções no cumprimento do Título da Ordem Social da CF/88, e nem também para a retomada do amplo debate com a sociedade das reformas estruturais, de democratização do Estado e de projeto de nação. Não conseguiram em 2003, nem na favorável conjuntura de 2006/2008. Em Setembro/2015, já no irreversível debate do impeachment no Congresso Nacional, é divulgado o Subsídios para um Projeto de Desenvolvimento Nacional, importante, consistente e exaustivo estudo e propostas de sete importantes entidades do campo progressista, lideradas pela Fundação Perseu Abramo, Plataforma Política Social, Centro Internacional Celso Furtado e outras; em Abril/2017 são divulgados os importantes e consequentes Manifesto Brasil Nação, liderado por Bresser Pereira e Eleonora de Lucena, e A Democracia que Queremos pelo Inesc; e em Maio/2017 o Plano Popular de Emergência da Frente Brasil Popular, além de dezenas de outras manifestações. Importantes iniciativas, mobilizações e marcos para futura retomada, mas tardios para galvanizar mobilizações e forças que impedissem o rumo dos acontecimentos.
Com o esgotamento do ciclo governamental de 2015/2016 através do impeachment, a bandeira das reformas estruturais é sequestrada pelos setores mais retrógrados e antinacionais da coligação vitoriosa em 2003, para as reformas trabalhista e previdenciária. Concluímos que a espetacular inclusão social pelo mercado de consumo e máxima aprovação da opinião pública, ao contrário de voltar-se para pactos sociais crescentes na direção de amplo debate pelas reformas estruturais, estruturando e consolidando a própria inclusão, acabou por conviver com o avanço dos demais componentes da verdade única dos anos 90. Talvez haja vicejado uma fantasia de que a força política da grande inclusão pelo consumo, isoladamente e por si, conformaria outra verdade única que pudesse substituir a dos anos 90. Sob o ângulo político-histórico, na verdade a hegemonia real vem sendo a neoliberal há 30 anos, e a contra-hegemonia até 2002, estendeu-se a um leque maior de forças desenvolvimentistas, democráticas e populares. A partir de 2003, parte da contra-hegemonia vem tensamente mantendo-se como tal, em algumas situações apenas deixando-se imobilizar. Porém, outra parte mantém-se na contra-hegemonia só explicitamente. Esta outra parte implicitamente passou a reproduzir as práticas hegemônicas, principalmente no Executivo e Legislativo, sob graus crescentes de conciliação justificada pela governabilidade, até a adesão às piores práticas da hegemonia, desde a nomenklatura estatal até a captura do Estado pelo grande capital financeiro especulativo e empresarial. Lá se foram quase 30 anos de marginalização das bandeiras da democratização do Estado e das reformas estruturais em mãos realmente democráticas, desenvolvimentistas, e populares rumo a um projeto de nação. Agora, está acrescentado o desafio de estruturá-las e enriquecê-las perante as realidades da globalização, com relativização das autonomias nacionais e no rumo de efetivo projeto nacional de desenvolvimento socioeconômico no seio da globalização, como alternativa ao neoliberalismo e à hegemonia do sistema financeiro globalizado especulativo.
Ainda sob o ângulo político-histórico, lembramos que os prazos para os propósitos democráticos, desenvolvimentistas e populares são influenciados mas não determinados pelos mandatos de governos e coligações partidárias, nem de lideranças, nem das nossas vidas, e por isso cabe às militâncias e lideranças realmente comprometidas com esses propósitos, atuarem desde já para vitória em Out/2018, revendo os descaminhos ocorridos, e com o mesmo compromisso e pique pelos tempos afora, independente do resultado/2018.
Nelson Rodrigues dos Santos é diretor do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde e professor aposentado pela Unicamp.