Diversidade genômica pode ajudar o SUS

Diversidade genômica pode ajudar o SUS

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Sistema Único de Saúde ganharia eficiência no tratamento de doenças ao integrar bancos de dados sobre a ancestralidade e a variedade embutida no DNA brasileiro

Maria Guimarães, da Revista Pesquisa Fapesp

A saúde de precisão nasceu dos projetos que sequenciaram o genoma humano, e não é um luxo. Ao contrário: ela permite o diagnóstico mais certeiro de algumas doenças e um planejamento melhor e mais seguro da medicação. É bom para o sistema de saúde, que deixa de desperdiçar recursos em procedimentos ineficazes, e para o paciente, que recebe o tratamento que funciona melhor para ele, com menos efeitos colaterais. O Brasil, no entanto, padece da escassez de parâmetros biológicos que permitiriam saber quais variantes genéticas causam doenças por aqui. Isso porque os sequenciamentos que funcionam como referência internacional foram obtidos, em sua maioria, a partir de pessoas de ascendência europeia do hemisfério Norte.

O foco na diversidade local e regional não é bairrismo. Embora a maior parte do genoma seja semelhante entre pessoas diferentes, modificações pontuais podem fazer toda a diferença em como funcionam genes que, defeituosos, causam doenças (ver Pesquisa FAPESP nº 330). É crucial, por isso, entender a composição genética da população brasileira, e vem daí o interesse do Departamento de Ciência e Tecnologia (Decit) do Ministério da Saúde em criar o Programa Nacional de Genômica e Saúde de Precisão – Genomas Brasil. Além do DNA do Brasil, ele abarca outros projetos, entre eles o Genomas SUS, que integra várias universidades para avaliar o impacto da genômica na saúde.

Iniciado em abril de 2024, o projeto prevê terminar em novembro o sequenciamento de 21 mil genomas completos de brasileiros. Ao longo de três anos, o objetivo é atingir 80 mil genomas, com o cuidado de fazer uma amostragem de ancestralidades bem diversas. Adicionalmente, a FAPESP anunciou um edital para financiar o sequenciamento de mais 15 mil amostras. A ideia é selecionar projetos menores de pesquisadores que atualmente não participam do Genomas SUS. “Será uma contrapartida da Fundação para o projeto nacional”, explica o médico Leandro Machado Colli, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP), coordenador do projeto. “As amostras poderão ser coletadas em qualquer lugar do Brasil, desde que os pesquisadores estejam radicados em São Paulo.”

Ele explica que a estratégia atual do Genomas SUS é usar a tecnologia de short reads, que consiste em ler o genoma a partir de pedaços curtos de 150 pares de bases, um método com custo mais viável. Com sequenciamentos mais completos para garantir o contexto, os benefícios são muito bons. “Das 21 mil amostras que já temos, vamos fazer 200 na tecnologia long reads, como referência mais acurada”, diz o pesquisador. Trata-se de trechos maiores, que chegam a centenas de milhares de pares de bases. Nessa contextualização dos genes ligados a doenças, é fundamental saber a ancestralidade de cada trecho do DNA do paciente. “Podemos saber o que aquele pedaço do material genético, naquele local geográfico, permite dizer sobre a saúde da pessoa.” Isso porque, com os sequenciamentos – mesmo os menos precisos –, é possível saber em que parte de cada cromossomo estão variantes alteradas e, assim, possivelmente associá-las à propensão a doenças associadas a elas.

Para garantir a representação da diversidade nascida da miscigenação, o Genomas SUS tem nove centros-âncora espalhados pelo país – dois deles em São Paulo, os demais no Rio de Janeiro, em Minas Gerais, no Paraná, em Pernambuco e no Pará. “A população brasileira tem uma grande representatividade de povos que se miscigenaram durante o processo de formação, entre eles indígenas e de ancestralidade africana”, diz a geneticista Ândrea Ribeiro-dos-Santos, coordenadora do único centro da região Norte, sediado na Universidade Federal do Pará e em atividade desde setembro de 2024. “Na região amazônica, mulheres indígenas eram muitas vezes acolhidas no estabelecimento de comunidades quilombolas por conhecerem os segredos e os modos de vida da floresta”, exemplifica, com base em resultados de pesquisas de seu grupo que identificaram essa assimetria sexual na contribuição genética.

Assim como o centro da região Nordeste, o da Amazônia ainda não conta com aparelho de sequenciamento, de maneira que precisa enviar as moléculas de DNA já extraídas para serem analisadas em outros centros. Por enquanto, já são 1.800 amostras sequenciadas, a maioria do Pará. Mas isso deve mudar com a inclusão de outros estados da região. “Há duas semanas estivemos em uma missão de saúde no Amapá, onde coletamos amostras em parceria com as secretarias de Saúde do estado e do município, além da Universidade Federal do Amapá.” Acordos com instituições no Amazonas e no Acre estão em curso, com atenção a questões obrigatórias de ética que precisam ser cumpridas. Os desafios na região são significativos: chegar a certas comunidades tradicionais pode envolver trajetos feitos de avião e carro, seguidos de dias a bordo de um barco. Mas nesses recantos, justamente, está uma riqueza única do território brasileiro: a diversidade genética e cultural de sua população humana.

Ribeiro-dos-Santos ressalta a importância, para o Sistema Único de Saúde (SUS), do entendimento das variantes genéticas regionais e raras para implementar protocolos de tratamento para doenças como diabetes e câncer. Em geral não há um único gene por trás dessas enfermidades, mas uma infinidade de caminhos que podem causar disfunções na replicação de células, levando ao câncer, ou no metabolismo, no caso do diabetes, e qualquer peça alterada pode desencadear a doença. A medicação bem-sucedida é aquela que atua no foco do problema. “Sem o conhecimento específico, a pessoa pode morrer em consequência do tratamento, ou ele não ter efeito nenhum.”

“É importante conhecer como aplicar a genômica para entender desigualdades sociais e atingir um melhor diagnóstico de doenças genéticas complexas”, completa o biólogo Eduardo Tarazona, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Ancestralidade genômica, doenças e bioinformática no Brasil (INCT-AncesGen) e um dos pesquisadores à frente do Genomas SUS. “Quanto menos europeia uma pessoa é, menos a ciência e a genética sabem sobre suas doenças.”

Um exemplo é o trabalho internacional, com participação de Colli, que mapeou áreas do genoma ligadas à suscetibilidade ao câncer renal, publicado em 2024 na revista científica Nature Genetics. “Nas fases anteriores do estudo não foram incluídas amostras brasileiras, por receio de que a miscigenação reduzisse o poder de análise de associação”, afirma o médico. Mas foi o contrário: ao incluir uma coorte brasileira nas análises, surgiu uma variante genética até então desconhecida, presente em afrodescendentes.

Quando o geneticista norte-americano Francis Collins, então diretor dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) de seu país, apresentou uma conferência na sede da FAPESP em 2014, a médica geneticista Iscia Lopes-Cendes, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pediu sua opinião sobre fazer um projeto genômico populacional no Brasil. Ele considerou desnecessário, pois a diversidade genética humana já estaria bem caracterizada. “Ele estava completamente equivocado, os norte-americanos não entendem que as outras populações latinas não são iguais à mexicana”, diverte-se ela, que não ficou convencida com a resposta. Em 2015, fundou a plataforma BIPMed (sigla em inglês para Iniciativa Brasileira em Medicina de Precisão). “É o primeiro banco de dados genômicos da América Latina”, afirma.

“Temos uma parceria com Angola, o projeto Genomas Angola (Genan), já colhemos 750 amostras”, completa a pesquisadora, que orienta uma estudante de doutorado angolana nesse projeto. Lopes-Cendes espera encontrar variantes genéticas ainda não descritas, o que potencialmente terá utilidade prática para os dois países, ligados pela ancestralidade em consequência dos escravizados trazidos durante o período colonial.

“Se existe um lugar onde é possível ter a saúde de precisão disponível para todos, é no Brasil”, afirma ela. “Temos o SUS.” Ela refuta a noção de que a tecnologia só estaria a serviço de países e pessoas ricas. Ao contrário: segundo ela, pode ser uma importante ferramenta de medicina preventiva. “A saúde personalizada permite tratamentos mais eficientes, na dose certa, para as pessoas certas, com menos efeitos adversos e custos menores.”

Ela e a geneticista Thais de Oliveira, pesquisadora em estágio de pós-doutorado em seu laboratório, publicaram em janeiro um comentário na revista Annual Reviews of Genomics and Human Genetics defendendo a importância de bancos de dados públicos que reúnam informações genômicas sobre as populações latino-americanas. O geneticista argentino Rolando González-José, pesquisador do Centro Nacional Patagônico (Cenpat) e coordenador do Programa de Referência e Biobanco Genômico da População Argentina (PoblAr), faz coro. “É importante que os governos façam acordos para conectar bases genômicas da região”, sugeriu, por e-mail, a Pesquisa FAPESP. Assim como Colli, ele afirma que o sequenciamento com tecnologia de short reads traz benefícios, otimizando o orçamento disponível.

O projeto DNA do Brasil, que integra o Programa Genomas Brasil, visa contribuir para a saúde de precisão a partir de um retrato detalhado da variação genética brasileira. A indústria farmacêutica também poderá se beneficiar desses avanços. A geneticista Lygia da Veiga Pereira, da USP e fundadora do projeto, em 2021 aproveitou os conhecimentos que adquiriu ao longo da carreira acadêmica para criar uma startup, a gen-t, agora financiada pelo programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) da FAPESP. “Estamos construindo uma infraestrutura de dados de saúde, estilo de vida e multiômicas, com 200 mil genomas, que poderá ser usada pela indústria para acelerar a busca por novos fármacos”, explica.

Pode vir a ser um bom complemento a possíveis implementações de novas estratégias pelo SUS. “Estamos apenas no começo do entendimento do impacto da genômica na saúde populacional”, afirma Colli.
 

* Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa Fapesp, de acordo com a  licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Publicado com o título Precisão para todos na edição impressa nº 352, de junho de 2025.