Como anda a governança global da saúde? Reflexões a partir da Assembleia Mundial da Saúde – por Celia Almeida

Como anda a governança global da saúde? Reflexões a partir da Assembleia Mundial da Saúde – por Celia Almeida

Já leu

A Assembleia Mundial da Saúde de 2022 (AMS, 2022), realizada em maio, como de praxe, chamou a atenção de analistas nacionais e estrangeiros. Esse interesse decorreria não apenas da expectativa do primeiro debate presencial depois de dois anos online, focado na Covid-19 e na melhor preparação para enfrentar possíveis novas pandemias, mas, principalmente, das acirradas discussões sobre temas técnicos sustentados por soberanas evidências cientificas, presumidamente apolíticos; e sobre temas políticos estranhos a um fórum voltado para a saúde, isto é, para questões eminentemente técnicas. Alerta-se, ainda, para o inadequado precedente que esses embates, e as respectivas resoluções aprovadas, trazem para a dinâmica desse fórum e para as decisões sobre saúde no mundo.

Nessas análises há consenso sobre o papel da AMS na governança global da saúde, entretanto, pouco se discutiu sobre o que essa reunião evidencia quanto a essa mesma governança, levando em conta o difícil contexto de transição mundial e a complexa conjuntura pós-pandêmica e de guerra que atravessamos. Interpretar e tentar entender o comportamento dos atores nesse fórum é fundamental para a governança global da saúde, entendida como resultante de complexos embates e negociações, marcados por agudas divisões políticas e interesses conflitantes[1].

Não por acaso, o lema dessa Assembleia foi Saúde para a paz, paz para a saúde, embora se possa questionar a lógica da inter-relação que o lema sugere. Desnuda, entre outras coisas, que diferentes problemas permeiam todos os âmbitos das arenas internacionais, formais e informais, e que as batalhas e divisões entre os Estados-membros não se restringem a questões territoriais, incluem posicionamentos estratégicos sobre diferentes temas e integram a luta permanente pelo poder no mundo.

Lembremos que a OMS não é uma mera organização estática, composta por Estados-membros organizados em torno de um conjunto de normas, regras e procedimentos decisórios, mas sim um espaço social e político de embates, negociações e enfrentamentos, e, como tal, reflete a dinâmica mais ampla do sistema mundial[2]. Chama a atenção que as diferenças entre os Estados-membros não se restringiram à clássica oposição Norte/Sul globais, mostrando que os alinhamentos superam essa histórica divisão e que a geometria variável de alianças, apoios ou divergências voltou à pauta internacional[3].

Sendo assim, o embate sobre a guerra entre Rússia e Ucrânia deveria ser esperado também nesse fórum, e a forma como foi proposto e ocorreu espelha as disputas geopolíticas em curso. A destruição, sofrimento de milhões de pessoas e a crise humanitária, inerentes a toda guerra, desta vez, foram invocados, porém, de forma identificada – o problema era a guerra atual e o ataque da Rússia. A resolução obteve 88/12 votos (a favor/contra) e 53 abstenções, a maioria, de países da África e da Ásia[4]. Outra resolução sobre as condições de saúde nos territórios ocupados da Palestina, incluindo Jerusalém oriental, Síria e Golan, foi aprovada por 77/14, com 36 abstenções, e contou com a explicita oposição de alguns Estados, alegando a desnecessária politização e a “inaceitável incriminação de um único país – Israel”. Foi preciso que se alertasse que “o assunto não deveria ser politizado, mas tampouco se deveriam adotar dois pesos e duas medidas”[5]. Não se trata aqui de tomar partido de nenhum dos contendores envolvidos – há insanidade em todos os lados –, mas sim de ressaltar os interesses envolvidos e a parcialidade das decisões.

No que pese a possível censura de alguns países às pautas morais, identitárias e LGBT+ (que proliferaram na última década, inclusive no Brasil), e a existência de visões conservadoras sobre valores e costumes, inclusive protegidos por lei em alguns Estados-membros, esse debate questiona a maneira como os consensos estão sendo construídos na OMS

Mais impactantes foram as divergências em torno da Estratégia Global da OMS para HIV, Hepatite-B e Doenças Sexualmente Transmissíveis, centradas na disputa sobre termos utilizados no texto (por ex., homens que fazem sexo com homens), há décadas consentidos, respaldados por evidências científicas. Lamentou-se a “falta de consenso” em um documento “essencialmente técnico”, ou a “discussão política sobre evidências”, ou ainda o “respeito pela cultura versus a evidência”, isto é, a “falta de acordo sobre as evidências”: foi aprovada com 60 votos de Estados-membros, dos 120 que se abstiveram ou estavam ausentes (todos da região sudeste do mediterrâneo e muitos africanos)[6].

Se o consenso, juntamente com o compromisso, deve ser sempre perseguido para assegurar a ação coletiva e não depender de votos nominais, como foi afirmado pela representação de Botswana, falando em nome de 47 países africanos, apoiada por outros Estados-membros, onde estaria a desavença? No que pese a possível censura de alguns países às pautas morais, identitárias e LGBT+ (que proliferaram na última década, inclusive no Brasil), e a existência de visões conservadoras sobre valores e costumes, inclusive protegidos por lei em alguns Estados-membros, esse debate questiona a maneira como os consensos estão sendo construídos na OMS. Países que se abstiveram invocaram mais atenção e melhor compreensão sobre normas guiadas pela “tradição e pela cultura de diferentes povos”. E delegados ocidentais reivindicaram a “importância da ciência”, reforçando o foco na “dignidade humana e na decência”. Aparentemente, não se trataria tanto dos termos em si, mas da incorporação de preceitos e normas que talvez sejam adequadas para determinadas populações, grupos ou comunidades, mas não para todo o mundo. Além de que, há tempos se discute que as evidências cientificas não são as únicas, e as vezes nem as mais importantes, para a tomada de decisões sobre políticas. Aliás, a pandemia de Covid-19 escancarou essa questão.

Em suma, parece que não é mais possível impor globalmente determinadas visões de mundo, hábitos e “maneiras de andar à vida” consideradas “universais”; nem mesmo ignorar valores, culturas e práticas que compõem a diversidade e diferenças entre os povos e os Estados nacionais. E os consensos, sempre provisórios, devem ser estabelecidos e revistos permanentemente. Por outro lado, é preciso estar atento à reivindicação de mais respeito a povos historicamente vistos como subalternos: veja-se a recente demanda de países africanos para que suas pesquisas e capacidades científicas sejam respeitadas como equivalentes àquelas dos países do Norte global.

Mas nem tudo foi dissenso nos debates da AMS.

A Assembleia aprovou também propostas que estão em discussão há décadas e sem desfecho satisfatório: mudanças no financiamento da OMS, isto é, aumento das contribuições dos países-membros – cerca de 16% acima das contribuições atuais (2020-202) –, até que constituam 50% do total orçamentário em 2030-2031, com o propósito de fortalecer a organização e, consequentemente, seu caráter relevante na arquitetura e governança da saúde global. Isso sem eliminar as outras contribuições voluntárias de países, ou de outros doadores, para atividades e programas específicos (hoje cerca de 80% de orçamento total da organização); porém, não houve preocupação em definir critérios para o uso desses recursos adicionais, que não sejam simplesmente a vontade do doador. Esse aumento será paulatino e deverá ser endossado anualmente nas assembleias subsequentes, e será contingente ao “progresso das reformas internas da OMS”, que deveriam torná-la “mais responsável, transparente, eficiente e bem administrada”[7]. Um grupo de trabalho deve fazer recomendações para esse controle.

Portanto, tudo vai depender do que se considere como “fortalecimento da governança global da saúde”, pautada por transparência, responsabilidade, eficiência, impacto e resultado, critérios que, como se sabe, para serem objetivos precisam de indicadores robustos, mas de difícil definição.

O que é, de fato, lamentável é a quase ausência de debate sobre a grave crise de sustentabilidade do planeta e seus impactos na vida e saúde da humanidade (das doenças crônicas às epidemias, novas e reemergentes, e pandemias; das mudanças climáticas às catástrofes ambientais; da exploração sem limites de tudo que há na Terra à devastação sem trégua, rural e urbana, em nome do “progresso”)

Da mesma forma, discutiu-se a relevância de um novo instrumento para a preparação contra possíveis pandemias (tratado) e a necessidade de uma nova revisão do Regulamento Sanitário Internacional (RSI), defendendo-se que os dois instrumentos são complementares, sendo que um tratado levará muito mais tempo para ser aprovado e emendas especificas no RSI podem ser implementadas mais rapidamente. Mesmo nessas discussões, em que houve mais consenso frente às divergências[8], foram propostas (e aceitas) emendas que ressaltaram, de novo, a necessidade e importância de levar em consideração “as informações e necessidades expressas pelos países em cujo território os eventos ocorram”, em clara alusão ao imperativo de evitar intervenções intempestivas ou acusatórias que desconsiderem as realidades locais e a soberania dos Estados-membros. A experiência com a pandemia de Covid-19 cobrou seu preço.

A insegurança alimentar foi brevemente discutida, sem, entretanto, aprofundar-se o debate sobre as causas da fome que assola grande parte da humanidade, ou, por exemplo, sobre o impacto na saúde dos alimentos ultraprocessados e o que fazer sobre isso. Ainda que se saiba o quanto a guerra atual está piorando toda essa situação, a preocupação maior parece ser com as dificuldades de distribuição de matérias-primas para a produção de alimentos (no campo e na cidade) para os indivíduos bem alimentados em todo o mundo, e não exatamente com os famintos tradicionais.

O que é, de fato, lamentável é a quase ausência de debate sobre a grave crise de sustentabilidade do planeta e seus impactos na vida e saúde da humanidade (das doenças crônicas às epidemias, novas e reemergentes, e pandemias; das mudanças climáticas às catástrofes ambientais; da exploração sem limites de tudo que há na Terra à devastação sem trégua, rural e urbana, em nome do “progresso”), problemáticas que vêm sendo intensamente discutidas em vários fóruns, oficiais e, principalmente, da sociedade civil. A perspectiva da Saúde Única (One Health), que trabalha com os riscos sanitários que emergem na interação homem-animais-ecossistemas-biodiversidade, sequer mereceu alguma discussão mais aprofundada, sendo alvo apenas de menção en passant. Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, estratégia relevante, mas que parece não ter sido suficiente, trabalha com indicadores restritos para o seu acompanhamento, pois não dão conta dos múltiplos desenvolvimentos, muito mais amplos e deletérios para uma vida saudável. Da mesma forma, os determinantes sociais da saúde, discutidos na primeira década dos 2000, deram um importante pontapé inicial nessa discussão, mas tampouco foram implementados de forma satisfatória e precisariam ser atualizados frente os inúmeros desastres simultâneos que estamos presenciando em várias partes do mundo.

Não é possível separar completamente o técnico do politico. Por melhores que sejam os resultados das pesquisas, os procedimentos técnicos e as boas intenções, se não tivermos as condições estruturais e superestruturais para a mudança não vamos conseguir avançar

Os riscos transbordam por todos os lados: desmatamentos, derrubada e devastação por queimadas de florestas tropicais; exploração e comércio de fauna selvagem; agropecuária intensiva; uso desregulado de agrotóxicos e manipulação genética no agronegócio; falta de apoio e descredito da pequena agricultura familiar e orgânica; produção de alimentos industrializados com pouco ou nenhum valor nutritivo; e, como resultado, infinita piora das condições de vida e saúde das populações menos favorecidas, e pior, das comunidades submetidas a regimes quase escravagistas de trabalho ou transformadas em predadores involuntários desse meio ambiente onde são obrigadas a viver, famélicas na abundância dessa produção/exploração perversa. Isso para não falar do avanço do crime organizado (com articulação global) que permeia todo esse contexto e a absurda postura das farmacêuticas na questão das patentes para a produção de medicamentos e vacinas, extensivamente discutida nos últimos anos.

Não é possível separar completamente o técnico do politico. Por melhores que sejam os resultados das pesquisas, os procedimentos técnicos e as boas intenções, se não tivermos as condições estruturais e superestruturais para a mudança não vamos conseguir avançar. Um tratado para prevenção de pandemias tem que ter um escopo mais amplo e ser objeto de intensas negociações em fóruns intergovernamentais como a AMS e em outros de áreas correlatas. Falar em descolonização sem tocar em nenhum desses pontos é tergiversação.

É urgente que o diálogo com a sociedade civil na AMS seja revisto e ampliado: o status de “relação oficial” de atores não governamentais com a OMS é bastante cobiçado, mas está repleto de atores inexpressivos para o debate que se requer[9]. Mesmo assim, os procedimentos para a participação não permitem interação mais substantiva[10].

Em síntese, deve-se lamentar que a percepção de saúde que orienta os trabalhos da AMS ainda esteja pautada por ideias que remontam à primeira metade do século passado, e que sua atuação esteja estruturada com um arranjo institucional multilateral de governança em crise há décadas, pois apropriado ao pós-guerra daquele mesmo século. Não é segredo que as agências das Nações Unidas são fortemente influenciadas pela dominância de valores e perspectivas das grandes potências ocidentais. É urgente, portanto, uma reconfiguração, pois essa dinâmica não guarda mais relação com a realidade que se evidencia no tumultuado século XXI.

Concluindo, não devemos criticar ou temer a politização da AMS (ou da própria OMS), porque ela é inevitável, inerente a qualquer fórum ou organização internacional, e imprescindível. O problema está no uso político desse fórum para determinados fins. O que se deve denunciar é a visão estreita do que significa promover a saúde da população mundial e a pouca efetividade da arquitetura e condução da governança global da saúde. Perdeu-se, mais uma vez, a oportunidade de recolocar o debate em novos termos. É preciso preparar-se para esses embates, que são cada vez mais frequentes, melhorando nossa capacidade de transformar posições político-ideológicas particulares em resoluções e políticas internacionais tecnicamente bem informadas e voltadas realmente para um mundo menos destrutivo, mais solidário e holisticamente mais saudável.

 

Celia Almeida é pesquisadora sênior da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (EnspFiocruz).

 

NOTAS

[1] Almeida, C. Global Health Diplomacy: A Theoretical and Analytical Review. Oxford Research Encyclopedia, Public Health Policy and Governance [Online Publication] Feb 2020. USA: Oxford University Press USA. DOI: 10.1093/acrefore/9780190632366.013.25; Almeida, C. e Pires de Campos, R.P. Multilateralismo, ordem mundial e Covid-19: questões atuais e desafios futuros para a OMS. Rev. Saúde em Debate, 2020b, Rio de Janeiro, 44 (No. Esp. 4): 13-39. ISSN 0103-1104; Almeida, C. Governança do setor saúde em um contexto mundial mutante e incerto. Texto para Discussão n.60Brasil Saúde Amanhã, 2021, Rio de Janeiro: Fiocruz (47, p.). Disponível em: https://saudeamanha.fiocruz.br/wp-content/uploads/2021/05/ALMEIDA-C-2021-Governan%C3%A7a-Setor-Saude-em-Contexto-Mundial-Mutante-Incerto-Fiocruz-Saude-Amanha-TD060.pdf Acesso em: 04/05/2021; Almeida, C. Cap 1 – Pandemia de Covid-19: por que devemos olhar para o contexto internacional? Reflexões sobre a governança do setor Saúde. In: Portela, M. C., Reis, L. G. C., and Lima, S. M. L., eds. Covid-19: desafios para a organização e repercussões nos sistemas e serviços de saúde [online]. Rio de Janeiro: Observatório Covid-19 Fiocruz, Editora Fiocruz, 2022, 472 p. Informação para ação na Covid-19 series. ISBN: 978-65-5708-123-5. https://doi.org/10.7476/9786557081587

[2] Almeida e Pires de Campos (2021), opus cit.

[3] Geometria variável é um conceito definido por Silva, A.L.R. Geometria variável e parcerias estratégicas: a diplomacia multidimensional do governo Lula (2003-2010). Contexto Internacional 37 (1), p. 143-184. Jan-Apr 2015 https://doi.org/10.1590/S0102-8529201500010000

[4] Fletcher, ER. WHO Governing Board Creates New Emergencies Committee – in Shadow of Debates on Ukraine, Sexual Terms and DRC Scandal. Health Policy Watch, 30/05/2022, Disponível em: https://healthpolicy-watch.news/who-board-greenlights-new-emergencies-committee-in-shadow-of-debates-on-ukraine-hiv-terms-and-drc-sex-abuse-scandal/ Acesso em: 31/05/2022; Fletcher, ER. Sex, War, Sustainability and the World Health Assembly – Last Week in Review Health Policy Watch, 02/06/2022. Disponível em: https://healthpolicy-watch.news/sex-war-world-health-assembly-in-review/ Acesso em: 03/06/2022; Zarocostas, J. WHA sees changes to health regulations and WHO funding. The Lancet, Vol 399 June 4, 2022: p. 2090-2091.

[5] Zarocostas, 2022, p. 2051, opus cit.

[6] Fletcher 2022 (30/05/2022 e 02/06/2022), opus cit.

[7] Essas reformas incluiriam: revisão e reforma do sistema de gerenciamento orçamentário (programado, executado e impactos e resultados alcançados); mudanças na cultura gerencial, incluindo seleção de staff por mérito – tal como acontece para as representações de países (sic); e reformas estruturais no sistema de fiscalização e supervisão internas (conforme proposto pela Associação de Funcionários, frente a denúncias contra pessoal em trabalho de campo e alegada parcialidade nos julgamentos dessas questões).

[8] Ver a respeito Editorial do The Lancet Global Health, Vol 10 July 2022, p. e927.

[9] A maioria é de representações de sociedades médicas (ou de alguns profissionais de saúde, ou grupos de portadores de determinadas doenças) e de grupos farmacêuticos, além de fundações do agronegócio (como a Croplife International) e outros atores cuja contribuição não é clara (ex., o World Plumbing Council); um levantamento realizado em fevereiro de 2022 pelo Health Policy Watch não encontrou qualquer organização, grupo ambientalista ou que trabalhe com a perspectiva de Eco-Health entre os 220 representantes da sociedade civil que possuem aquele status (Fletcher, 2022, 02/06/2022).

[10] Relata-se que, embora tenham acesso a debates intergovernamentais restritos, apenas dois minutos são destinados aos testemunhos desses atores e os comentários ou proposições escritas devem ter no máximo 250 palavras (Fletcher, 2022, 02/06/2022).

 

O conteúdo desta publicação é de exclusiva responsabilidade da(s) autora(as) e do(s) autor(es), não representando a visão do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz, que garante a diversidade e a liberdade científica de seus colaboradores.