Políticas contra o câncer têm de migrar da reação tardia à antecipação
Por José Gomes Temporão e Luiz Antonio Santini. Publicado no Jornal O Globo*
O câncer é um dos principais desafios da saúde global, tanto por sua complexidade quanto por seu impacto devastador sobre a população. Não é uma única enfermidade: envolve um espectro de mais de uma centena de neoplasias malignas distintas. Pesquisa recente publicada pela revista científica The Lancet estima que 30,5 milhões de pessoas serão diagnosticadas com a doença até 2050, resultando em 18,6 milhões de mortes — um crescimento de 74% no número de óbitos. No Brasil, o cenário epidemiológico reflete essas tendências globais. O Instituto Nacional de Câncer estima mais de 700 mil novos casos por ano.
A predisposição genética desempenha papel importante em uma parcela dos casos. Mas boa parte dos novos diagnósticos está ligada a fatores de risco modificáveis — como tabagismo, padrão alimentar e obesidade, sedentarismo, consumo de álcool — e à crescente exposição a contaminantes ambientais, cujas raízes se entrelaçam com os padrões de vida modernos e o desenvolvimento socioeconômico.
A metáfora da “guerra” contra o câncer nos levou a apostar a maior parte das fichas em tratamentos de altíssimo custo, muitas vezes inacessíveis e desigualmente distribuídos, enquanto negligenciamos a prevenção e o diagnóstico oportuno. A forma-padrão de encarar a doença, com tratamentos altamente invasivos, custosos e desiguais regionalmente, deveria ser repensada. É hora de inverter a lógica. O eixo do sistema precisa migrar da reação tardia à antecipação: reduzir a exposição a riscos, ampliar o rastreamento e garantir acesso rápido a terapias efetivas quando necessário, com a atenção primária à saúde atuando como porta de entrada qualificada e coordenadora do cuidado.
O Brasil saiu na frente em relação ao resto do mundo nessa mudança de paradigma em 2023, quando o Congresso aprovou a Política Nacional para Prevenção e Controle do Câncer. Infelizmente, a orientação ainda não tem sido levada à prática. Pouco se avançou dois anos após o país assumir o compromisso de garantir uma abordagem integrada, envolvendo prevenção, detecção precoce, tratamento e cuidados paliativos. A busca continua focada em novos medicamentos que prometem a cura, enquanto boa parte dos serviços de saúde não usa suas capacidades para reduzir fatores de risco, realizar o diagnóstico precoce e garantir acesso rápido ao tratamento.
Um ótimo exemplo para o mundo de política preventiva bem-sucedida é o Programa Nacional de Controle do Tabagismo, que reduziu a prevalência de fumantes na população brasileira de cerca de 30%, no final dos anos 1980, para aproximadamente 10% hoje. Essa queda se refletiu diretamente na diminuição do número de pacientes com câncer de pulmão, mostrando que, do ponto de vista da saúde pública, há maneiras de interferir na história da doença.
O volume crescente de novos casos exercerá sobrecarga nos sistemas de saúde, principalmente nos países em desenvolvimento, como o Brasil, e em regiões com recursos limitados. Por isso não podemos deixar de priorizar e investir em tecnologias digitais, como telessaúde, monitoramento remoto, inteligência artificial e interoperabilidade de dados.
Esses e outros temas serão centrais no seminário Controle do Câncer no Século XXI: Desafios Globais e Soluções Locais, que a Fiocruz promove em 27 e 28 de novembro, no Rio de Janeiro, com a presença do ministro da Saúde, Alexandre Padilha, e de especialistas brasileiros e internacionais. Todos discutirão a visão moderna de controle e prevenção e os caminhos que podemos escolher daqui para a frente.
*José Gomes Temporão, pesquisador do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz (CEE/Fiocruz), foi ministro da Saúde, Luiz Antonio Santini, pesquisador do CEE/Fiocruz, foi diretor do Inca. Publicado no Jornal O Globo, em 31/10/2025.



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