Ciência e inovação com desenvolvimento social, equidade e diálogo, nos desafios da Fiocruz do futuro
“Pensar ciência e inovação e a Fiocruz do futuro implica pensar um projeto de ciência não só para nossa instituição, mas para o país”. Com essas palavras, a presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima, abriu o seminário Desafios da Ciência e da Inovação e a Fiocruz do Futuro, transmitido pelo Youtube, em 10/11/2021. Esse foi o quarto evento preparatório do IX Congresso Interno da Fiocruz, instância máxima de representação da fundação, na qual se definem as diretrizes institucionais para os próximos quatro anos, com plenária marcada para dezembro. De acordo com Nísia, “não é possível pensar um projeto de desenvolvimento sustentável, tema do IX Congresso Interno, sem pensar nas questões da equidade, da democracia e tendo a ciência e a inovação como pilares fundamentais”.
Último de uma série coordenada pelo Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz Antonio Ivo de Carvalho, voltada ao debate de temas contemporâneos e estratégicos para a ciência e a tecnologia, o seminário teve como conferencistas a vice-presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e presidente de honra da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Helena Nader, professora da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM/Unifesp), e o presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), André Botelho, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ). Como debatedores, o evento contou com o pesquisador titular do Instituto Gonçalo Moniz (IGM/Fiocruz-Bahia), Manoel Barral, e a pesquisadora titular do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), Patricia Bozza. A mediação foi de Carlos Gadelha, coordenador do CEE-Fiocruz. O primeiro seminário, sobre o mundo do trabalho, foi realizado no dia 15/9, o segundo, sobre os desafios da saúde, no dia 6/10, e o terceiro, sobre mudança climática, em 10/11.
Na mesa de abertura, Nísia destacou o protagonismo da ciência durante a mais grave crise sanitária mundial. “Tem-se dito com muita frequência que a ciência nunca esteve tanto em evidência, mas é nosso dever fazer um mergulho, de maneira a orientar o trabalho da Fiocruz frente aos grandes desafios da nossa sociedade”. A esse respeito, ela ressaltou a importância de se pensar a inovação de forma integral, interdisciplinar, assim como em novas formas de se fazer ciência, “de maneira que tanto a sua formulação como o seu impacto sejam convergentes para questões éticas, de valores sociais e de novas bases para o desenvolvimento do país”.
Participaram também da mesa de abertura Mario Moreira, coordenador da comissão organizadora do Congresso Interno, e Juliano Lima, chefe de Gabinete da Presidência, que também integra a comissão. Ao explicar que o congresso interno da Fiocruz é “um espaço democrático, de construção coletiva, para se pensar o futuro da Fiocruz”, Moreira ressaltou a oportunidade de, nesse processo, se pensar “o sistema de ciência e tecnologia do país e até a própria democracia hoje em curso no Brasil”. Ele destacou, ainda, a importância dos temas transversais dos quatro seminários e a grande mobilização alcançada nos debates, explicando que o documento-base, aprovado pelo Conselho Diretor da Fiocruz, já havia recebido mais de 900 contribuições dos trabalhadores da instituição. “É próprio da dinâmica do nosso congresso interno essa efervescência democrática e a ansiedade quanto à possiblidade de participar e construir o futuro da Fiocruz, que nos dá um sentido, um sentimento muito grande de unidade institucional e que está nos ajudando a atravessar momentos tão difíceis”.
Em relação às contribuições recebidas, com vistas ao debate na plenária de dezembro, da qual sairá o documento final que orientará a Fiocruz nos próximos quatro anos, Lima disse que elas “têm sido positivas, no sentido de garantir realmente uma direcionalidade à instituição, mirando o futuro”.
“Esse é o espaço da ousadia para a gente pensar o contexto nacional, o contexto global e a Fiocruz do futuro”, reforçou Gadelha, sublinhando que depois dos outros seminários sobre o mundo do trabalho, a questão da saúde e a mudança climática, o ciclo de debates precisava “logicamente fechar com o tema da ciência e inovação”. Por fim, ele destacou o papel dos debatedores de trazerem esses temas para as questões concretas da Fiocruz do futuro.
Assista à integra do seminário
Depois de saudar a presidente Nísia, eleita, no dia 1° de novembro, membro da Academia Mundial de Ciências (TWAS, em inglês), Helena Nader iniciou sua conferência compartilhando uma preocupação com a ideia de saúde única [One Health]: “O modelo de saúde planetária já tem alguns anos, mas a prática ainda não aconteceu de fato”. Ao mostrar numa linha do tempo, de 1918 a 2019, doenças que assolaram o mundo como influenza, gripe asiática, gripe de Hong Kong, Aids, Sars, em 2003, Mers, em 2012, e, em 2019, a Covid, ela avaliou que, embora tenha havido bastante aprendizado em áreas de ciências sobre essas doenças, houve “pouco aprendizado realmente de políticas e de ações”.
A forte relação da saúde humana com a saúde ambiental foi ressaltada por Nader e o aparecimento de novas doenças infeciosas e de neoplasias, em função do desequilíbrio ambiental, devia, em sua opinião, ser motivo de preocupação mundial. No rol das mudanças globais que hoje ameaçam o planeta, ela citou, por exemplo, as mudanças climáticas, a perda da biodiversidade, a poluição de rios, oceanos, terra e ar, as mudanças de hábitos alimentares e a escassez da água, que estão afetando a saúde e sendo a causa de conflitos civis e movimentos migratórios. “As pessoas imigram não porque querem, mas porque estão precisando. O mundo globalizado vai ter cada vez mais imigração, e isso vem de conflitos, guerras e da falta de condições mínimas de cidadania”, explicou.
Para ela, mobilizações como a COP-26, para onde os holofotes do mundo estiveram voltados no mês de novembro, não bastam. “As pessoas vão à COP, alguns políticos fazem discursos, que não se concretizam, os cientistas levam dados... saem de lá e o mundo continua no mesmo modelo”. Nader é a favor de uma abordagem holística da saúde para enfrentar seus desafios.
Não se pode pensar em planejamento em qualquer área do conhecimento, sem levar em consideração o conceito do One Health, essencial para a segurança alimentar e hídrica, controle de zoonoses e resistência a antibióticos, entre outros (Helena Nader)
Nader sublinha que o Brasil precisa se preparar para novas pandemias, ressaltando o valor da ciência. Para isso, diz que é preciso garantir que o país tenha como “norte, como política de Estado, a evidência científica para fazer política racional local, nacional e internacionalmente’.
Ao olhar para o futuro, Nader não deixou de mencionar a necessidade de se buscar ampliar a oferta de tratamentos para as doenças negligenciadas, como ancilostomose, dengue, doença de Chagas e esquistossomose, que afetam especialmente as populações que “vivem na pobreza, sem saneamento adequado e em contato próximo com vetores infeciosos, animais domésticos e pecuária”, situação “típica do nosso país e de outros da América Latina e Caribe”, conforme aponta. Embora afetem prioritariamente esses países, Nader diz que várias dessas doenças estão, hoje, aparecendo também em países ricos como os EUA e os da Comunidade Europeia.
“De acordo com a OMS, as doenças negligenciadas estão prevalentes em 149 países, afetam mais de 1 bilhão de pessoas e custam às economias dos países em desenvolvimento bilhões de dólares todos os anos”, informou Nader. Para reforçar a importância de se olhar para essas doenças, ela ressaltou, citando dados da Fiocruz, que elas representavam 11,4% da carga global de doenças no período de 1975 a 2004. No entanto, “entre 1.556 medicamentos novos registrados, apenas 21 (1,3%) foram desenvolvidos para tratá-las, continuou. Esses números mostram, segundo a pesquisadora, que “a Big Pharma não vai prestar atenção a isso”.
Nader tocou, também, na questão do envelhecimento da população brasileira, chamando a atenção para a necessidade de o país se preparar para a mudança na pirâmide demográfica. “O Brasil está tendo uma queda no número de nascimentos e um aumento (de pessoas) na minha geração _ 65 anos ou mais _. Vai haver um pico por volta de 2030, 2035 (na faixa de 25 anos a 64 anos)”. A pesquisadora avalia que, “com as políticas de subemprego e corte na educação”, o país está perdendo a oportunidade de investir nessa pirâmide de idade, situação que, hoje, na Europa, com a maior parte da população já na faixa dos 60 anos em diante, segundo ela, não é mais possível. A mudança demográfica, conforme observa, vem acompanhada de problemas de saúde relacionados à idade, entre outros, aumentando a demanda por cuidados de saúde e pela garantia de sobrevivência econômica do idoso.
As novas tecnologias utilizadas, por exemplo, na telemedicina foi outro tema abordado por Helena Nader em sua conferência. De acordo com ela, a telemedicina, que poderia ser uma solução para ampliar o acesso aos serviços de saúde, tem aumentado a desigualdade, como aconteceu no emprego do ensino à distância no Brasil durante a pandemia.
Nader que já participou do grupo S20, responsável pela área de saúde do G20, diz que “inteligência artificial, medicina de precisão e pesquisa translacional, são temas chave, abordados pelos países do grupo”. Ela avalia que, em relação à medicina de precisão, existe uma lacuna a ser preenchida no Brasil: a caracterização da estrutura genômica da população brasileira. “Nós temos que conhecer quem somos e como é a genômica da nossa população”, alertou, explicando que medicamentos testados em outros países podem ter efeitos colaterais ou benefícios inesperados aqui, pois “nós não somos a Europa, nem os EUA”. Nesse sentido, a pesquisadora defendeu que o Brasil participe, também, de todas as etapas dos ensaios clínicos.
Quanto ao uso de dados relacionados à saúde, Nader chamou a atenção para a necessidade de se garantir a ética, a privacidade, a confidencialidade e a segurança para o indivíduo, assim como a segurança cibernética associada aos dados. Além disso, destacou sua preocupação com questões relacionadas à DURC (Dual Use Research of Concern), que se referem ao uso dos resultados de pesquisas, defendendo o fortalecimento da Comissão Técnica de Biossegurança.
Como fazer para chegarem no SUS as novas tecnologias de saúde? (Helena Nader)
Ainda em relação às novas tecnologias, Nader lançou ao debate questões referentes ao acesso da população às novas tecnologias e à capacitação dos profissionais de lidarem com elas: “Como fazer para chegarem no SUS essas novas tecnologias? Como, por exemplo, será incorporado no programa de saúde da família, por meio da telemedicina, o que está acontecendo com as famílias? Quantos são os mais pobres no uso dessas tecnologias? Como fazer ferramentas de precisão e baixo custo? Como podemos monitorar em tempo real e dar assistência personalizada?”
Ela lembrou que o Brasil tem o maior sistema universal de saúde do mundo, mas ele tem sofrido com o subfinanciamento. Para otimizar o sistema, a pesquisadora sublinhou a importância de se recompor o programa de saúde da família. “Nós temos que dar melhor infraestrutura e capacitação aos profissionais no uso dessas novas tecnologias”, explicou Nader, elogiando o trabalho de educação realizado pela Fiocruz.
O futuro da saúde, destacou a pesquisadora, envolve não só a pesquisa básica, mas a pesquisa tecnológica e a inovação. Desse tripé, considerou, dependem as terapias avançadas, como imunoterapia, terapia com células-tronco, terapia com células somáticas, terapia gênica, terapia com células CAR-T (Chimeric Antigen Receptor), nanomedicina, reposicionamento de drogas, novos tipos de vacinas; a medicina de precisão – sequenciamento de DNA individualizado, medicamentos personalizados, farmacogenômica; e a saúde digital, que abarca informática em saúde, inteligência artificial, modelagem de redes, modelagem molecular e desenho de drogas, enumerou a pesquisadora.
Ao falar do pujante desenvolvimento da ciência no mundo, também por meio de biossimilares [medicamentos desenvolvidos depois que a patente de um produto biológico expira, o que permite que outras empresas desenvolvam versões parecidas].e biobetters [introdução no biossimilar de alguma modificação, que pode ser mais tempo de circulação ou maior especificidade], Nader lembrou que a descoberta em tempo recorde da vacina contra o coronavírus Sars CoV 2, utilizando a tecnologia RNA mensageiro, se deu porque essa tecnologia já estava sendo desenvolvida. No entanto, a pesquisadora destacou que muitos dos biofármacos feitos a partir dessas novas tecnologias continuarão proibitivos para o cidadão comum e também para as classes menos abastadas. Como exemplo dessa realidade, que aponta para uma crescente desigualdade no acesso aos serviços de saúde, assim como para uma crescente judicialização da saúde, a pesquisadora citou os tratamentos para doenças degenerativas e para as neoplasias, “cada vez mais caros”.
O investimento no Complexo Econômico-Industrial da Saúde, nesse sentido, é apontado por Nader como fundamental. “Sem uma política de modernização e ampliação da nossa base produtiva e tecnológica, o acesso universal da população à saúde ficará comprometido”, destacou, lembrando que o Complexo Industrial da Saúde “gera, no Brasil, milhões de empregos diretos e indiretos, substitui importações, reduz desigualdades e tenta garantir mais bem-estar a todos os brasileiros”.
A pesquisa básica, considerada um dos pilares do Complexo Econômico- Industrial da Saúde, é, em sua avaliação, “um insumo essencial para a inovação, com amplas repercussões internacionais e impactos duradouros”. Nader citou uma publicação do Fundo Monetário Internacional, lançada em outubro de 2021, que diz que a pesquisa básica pode ajudar formuladores de política a acelerar o crescimento econômico pós-Covid. “O documento afirma que a pesquisa científica básica é crucial como motor de produtividade e se propaga além das fronteiras mais rápido do que o conhecimento aplicado”.
Nader criticou a falta de visão do Brasil em relação ao tema, ao focar apenas no produto final. “Quando acabarem com a pesquisa básica, acabou a ciência. Ela é um insumo para o produto”, afirmou, explicando que além de impactar a produtividade e a inovação, o aumento dos investimentos em pesquisa básica também pode ajudar a criar “um futuro mais verde e a enfrentar as mudanças climáticas”.
As repercussões internacionais, em sua opinião, são particularmente importantes para os mercados emergentes e economias em desenvolvimento, onde fatores institucionais – incluindo melhor educação e mercados financeiros mais profundos – “ajudam a converter a inovação em crescimento econômico, tornando a transferência de tecnologia rápida, o fluxo livre de ideias e a colaboração entre as principais prioridades. Nada disso nós estamos fazendo”, afirmou.
A pesquisadora ressaltou que é preciso lutar pela ciência aberta, incluindo coletas de dados e repositório, algo que ela reconhece “que a Fiocruz faz muito”, promover cooperação internacional e buscar se aproximar dos objetivos da Agenda 2030. Embora não acredite que o Brasil vá alcançar esses objetivos, Nader considera importante que o país continue tendo como meta: “não deixar ninguém para trás e garantir que os benefícios da ciência sejam acessíveis a todos dentro do princípio ético da equidade, e, em especial, para apoiar populações mais vulneráveis no Brasil e no mundo”.
A partir do tema geral do seminário, André Botelho, em sua conferência, discutiu a inovação associada à mudança social, defendendo o fortalecimento das relações entre ciência e democracia. “Democracia não apenas como um regime político – claro, isso é fundamental –, mas também entendida como princípio interno de organização da própria ciência”, explicou, alertando para um compromisso da inovação com a promoção de mudança, sem o que a confiança nas instituições de ciência como produtoras de bens públicos pode se retrair e permanecer em risco, justamente como nos encontramos no presente”.
O pesquisador observou o quanto a categoria de inovação é polissêmica, havendo, assim, muitas formas de conceber a inovação científica. Ele destacou, nesse universo, três questões a serem enfrentadas: a primeira, referindo-se ao presente, no que diz respeito às condições sociais e políticas hoje, para definição de possibilidades e limites de futuro; a segunda, o foco na relação entre ciência e sociedade; e a terceira relativa à formulação de um projeto para o Brasil – e que se relaciona às duas outras.
A ciência é a grande força de transformação social (André Botelho)
“Justamente porque estamos falando em futuro e inovação, a ideia de processo me parece crucial. Inovação em relação a quê? Mudança em relação a quê?“, indagou. “O sincrônico e o diacrônico precisam sempre ser relacionados, confrontados e repensados, um em relação ao outro”, considerou.
Para o professor, a ciência parece se encontrar em “situação paradoxal”: de um lado, é a grande força de transformação social; de outro, seus resultados são frequentemente ignorados, suas descobertas, negadas e suas normas, transgredidas. “Se esse não é um processo exclusivamente brasileiro – e não é mesmo, como mostram vários indicadores internacionais –, ele assume sentidos urgentes no nosso país”, alertou. “Sobretudo, se somarmos à visão sincrônica do presente, a diacrônica do processo histórico, para pensarmos uma espécie de sequência brasileira de construção e de desconstrução das políticas públicas CT&I”.
André Botelho apontou para a urgência em se “disputar a reputação das ciências”, refazendo-se sua comunicação pública com a sociedade civil e assumindo-se uma agenda comum a todas as ciências, todas as áreas do conhecimento. “Sobre a comunicação pública da ciência, precisamos de um paradigma novo. Não se trata mais de uns ensinarem e outros aprenderem, no sentido tradicional de uma difusão do conhecimento, mas sim de um experimento pedagógico de produção de conhecimento compartilhado, em que o sentimento da igualdade e da empatia avance sobre o da hierarquia”, propôs.
Ele destacou, ainda, a importância de uma “aproximação entre as diferentes áreas do conhecimento”, com “fortalecimento mútuo decorrente da interlocução coletiva com as agências estatais que regulam as atividades de ensino, de pós-graduação e pesquisa científica no país”, em uma “ação coletiva, que nos traz um meio de nos constituirmos como sujeitos políticos”.
A complexidade dos fenômenos hoje exige novas abordagens multidisciplinares (Botelho)
Ao lado das “necessárias e urgentes reações às ameaças externas à ciência”, Botelho incluiu entre os desafios a serem enfrentados no país os cenários de pandemia da Covid-19 e das mudanças climáticas, também mencionados por Helena Nader. “A complexidade dos fenômenos em pauta hoje já não permite sua inteira disciplinarização, sua inteira domesticação por um único ou específico campo disciplinar, mas antes exige novas abordagens de fato multidisciplinares”.
O pesquisador alertou, no entanto, para que não se reduza a dinâmica da ciência às condições sociais e políticas vigentes. “Ela possui uma lógica própria, uma dinâmica própria, que não se deixa disciplinar facilmente pela estrutura social, embora dela faça parte, de modo constitutivo”.
Conforme observou, a ciência está sempre em tensão e, mesmo, em conflito com a lógica social, o que permite que não apenas reproduza valores e práticas hegemônicas, mas também as contrarie. “Temos que refletir sobre as especificidades das dinâmicas internas da ciência e, ao mesmo tempo, as suas múltiplas relações com a sociedade, e perceber que as relações entre ciência e sociedade permitem que as próprias dinâmicas internas da ciência se fortaleçam ou se fragilizem”.
No que diz respeito à inovação científica, ainda, Botelho compartilhou uma experiência pessoal, quando, nos anos 2000, após seu doutoramento em Sociologia (Unicamp) integrou um grupo de pesquisa multidisciplinar com físicos do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), em que reconstituiu a produção do físico José Leite Lopes (1918-2006). “Reconstituí a longa e relevante escrita pública de Leite Lopes e percebi como, em torno dos anos 1950, até o golpe civil-militar de 1964, sua ideia de desenvolvimento parecia confundir-se com a ideia de industrialização. À medida que os dilemas da industrialização substitutiva de importações tornavam-se mais claros, ele passou a discutir não mais a questão de forma dissociada do problema da dependência científica e tecnológica e do sentido político desse processo”, relatou, pontuando que “o fio da meada” que essa experiência lhe permitiu encontrar, voltado ao paradigma do desenvolvimento pela democratização das oportunidades e combate às desigualdades sociais, precisa ser retomado.
‘Pensar em 2021 o futuro da inovação e da ciência é, a meu ver, fortalecer o duplo compromisso da ciência com a democracia, o compromisso da inovação com mudança, sem o que a confiança nas instituições da ciência como produtoras de bens públicos permanecerá em risco”.
Conferir um sentido comum à ciência e à sociedade – “comum no sentido de compartilhado” – passa, assim, pela recriação e dinamização do paradigma do desenvolvimento pelo paradigma da democratização, reiterou o pesquisador. “A democratização precisa ser reafirmada em todas as instâncias, da remodelação da estrutura de oportunidades ao combate às desigualdades sociais – e não só fora da ciência, mas também dentro da ciência”, disse, ressaltando o protagonismo da Fiocruz no fortalecimento da confiança nas instituições científicas como produtoras de bens públicos. “Parabenizo e agradeço muitíssimo às pesquisadoras e aos pesquisadores, às trabalhadoras e aos trabalhadores dessa instituição, que tanto orgulho e tanta esperança tem dado a todos nós”, registrou.
Pensar o futuro da inovação e da ciência é fortalecer o duplo compromisso da ciência com a democracia (André Botelho)
A perspectiva multi e transdisciplinar, ao lado do trabalho em cooperação, para abordar os desafios da Fiocruz na geração de conhecimento voltado ao desenvolvimento social e à equidade, foi enfatizada pela pesquisadora Patrícia Bozza, em sua exposição como debatedora no seminário. “Esses desafios são múltiplos, complexos e, portanto, necessitam dessa abordagem para se buscar a compreensão de saúde e de doença modificadas pelo ambiente”, observou.
A pesquisadora também destacou a importância da atuação pautada pela sinergia e do investimento em plataformas tecnológicas compartilhadas, que venham a ser constantemente atualizadas e ampliadas. “Temos que estar preparados para novas pandemias e para sermos capazes de dar respostas rápidas”, considerou, lembrando que a Fiocruz tem apresentado avanços importantes, com a criação do Complexo Hospitalar [em Manguinhos], em 2020, e com o biorrepositório [responsável pelo armazenamento e gerenciamento de amostras de diversos tipos de materiais humanos], em fase de finalização, com novas áreas laboratoriais e de pesquisa. “É importante que o acesso a dados se dê de forma compartilhada, em um processo de governança aberta, resguardando-se todos os aspectos bioéticos e de segurança”, pontuou.
No caso do desenvolvimento de vacinas, prosseguiu Patrícia, é importante que as plataformas tecnológicas sejam mantidas, com a implementação de novas tecnologias, não apenas para Covid-19, como para diferentes agravos, de modo a se alcançar um rápido desenvolvimento de imunizantes, como ocorreu durante a pandemia, e de outros fármacos. “Isso se alcança por meio de grupos de pesquisa e grandes redes cooperativas, sinergizando e ampliando nossa capacidade de transformar ciência básica em inovação”, apontou.
Ela observou, no entanto, que “não se faz renovação sem uma ciência básica ampla, robusta e com financiamento constante e adequado”, lembrando o cenário de desigualdade na distribuição de vacinas e medicamentos que o mundo vem vivenciando durante a pandemia. E destacou: “Esse é um aspecto a ser olhado pela Fiocruz, visando à diminuição das desigualdades, para contribuir com o acesso à saúde e ao desenvolvimento a social”.
A Fiocruz tem papel fundamental na formação e na atração de talentos (Patrícia Bozza)
A pesquisadora chamou a atenção, ainda, para a importância de se investir na formação de recursos humanos como caminho para enfrentar os desafios que se apresentam. “Um grande número de jovens pesquisadores está deixando o país – e também a ciência, em busca de outras áreas – e isso terá repercussão enorme no longo prazo. É preciso atenção, e a Fiocruz tem papel fundamental na formação e na atração de talentos”. Conforme ressaltou Patrícia, essa preocupação deve abranger não só os estudantes da Fiocruz, em diferentes níveis, como a força de trabalho da instituição, com a proposta de formação continuada.
O pesquisador Manoel Barral, diretor do Instituto Gonçalo Moniz da Fiocruz Bahia, pautou sua exposição pela ênfase no futuro. “A ciência mudou muito, tanto na forma de se produzir quanto, também, na forma de se divulgar, seja a divulgação interpares, seja a divulgação para a sociedade”, avaliou.
Atrair mentes brilhantes fará com que a Fiocruz, na fronteira do conhecimento, continue tendo impacto no futuro (Manoel Barral)
Barral chamou a atenção para o número crescente de centrais produtoras de dados, em enormes quantidades, e para a necessidade de se preservar sua qualidade e segurança. “É preciso começar a pensar sobre esses grandes bancos, integrar esses dados, analisá-los em conjunto, pensar neles como um bem social, de utilidade pública”, propôs, pontuando que a Fiocruz precisa se preparar para lidar com esse cenário e ressaltando o papel da instituição na liderança da ciência de dados. “Pensar em como podemos garantir e assegurar dados de qualidade para o uso realmente aberto e comum e garantir que esses dados não sejam capturados pela privatização e pelo uso somente comercial”, explicou.
Outro destaque apresentado por Barral referiu-se ao domínio da inteligência artificial, como essencial para se transitar no presente e no futuro. “Temos que investir na Neurociência, no sentido de entender como se dá o aprendizado da máquina e sua relação com a cognição”, considerou.
Assim como Patrícia Bozza, Barral também abordou a importância de a Fiocruz atrair talentos, ou “mentes brilhantes” no campo científico. “Atrair mentes brilhantes fará com que a Fiocruz, na fronteira do conhecimento, continue tendo impacto no futuro”.
Ao final do seminário, reafirmando a defesa do fortalecimento do Complexo Econômico - Industrial da Saúde, Helena Nader destacou o papel da Fiocruz em seu potencial de impacto sobre a saúde pública do país. “O que a Fiocruz pode fazer pela farmacogenômica poucos podem. O Brasil precisa da Fiocruz. E se for possível haver mais atores públicos nesse cenário, é ainda melhor”, considerou. Ela ressaltou, ainda, o poder de compra do Estado como algo a ser valorizado – “se não, o fosso vai ser cada vez maior” –, defendendo as parcerias público-privadas “para o bem; não as parcerias que destroem o público e não entendem do privado”.
A partir das exposições e também das observações da plateia, André Botelho deu destaque à ideia de que “o futuro da ciência já chegou”, assinalando que a sociedade tem muitas temporalidades e que o desafio é, de alguma forma, buscar uma sincronização. “Esse é o papel da ciência e do cientista, com todas as contradições que isso envolve”, apontou. “O cientista tem esse papel de vanguarda, mas não pairando sobre a sociedade, e sim sendo parte dessa sociedade, com autonomia para mudar”.
Ao encerrar o evento, a presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima, falou de uma “pedagogia da transformação da nossa prática”, entendendo que as instituições – a Fiocruz aí incluída – têm “fortes forças de conservação”, como definiu. “A Fiocruz faz coisas boas, temos essa percepção. Mas sabemos que estamos com uma agenda de desafios enorme e a ela devem estar relacionadas as propostas para contribuirmos na linha do temário do nosso Congresso – promoção do desenvolvimento sustentável com equidade e cidadania”.
Nessa direção, Nísia salientou o enfrentamento de um cenário no qual convivem temporalidades distintas. “Convivemos com problemas do século 19, como as marcas do sistema escravista ainda não superado; do século 20, com a persistência da desigualdade, em que pesem as utopias e projetos do pós-Segunda Guerra; e do século 21, com o entendimento de que o futuro está aí e com os desafios de conjuntura, tendo em vista um período difícil de vida política”.
A presidente enfatizou, também, a necessidade de se alcançarem novas formas de fazer ciência e a preparação para isso, tema presente entre os debatedores do seminário. “É importante inovarmos nas formas de diálogo e de transformação desse diálogo em políticas institucionais”, propôs, observando que faz parte da plataforma dos seus quatro anos de gestão a retomada de uma tradição de se realizarem bienais de pesquisa, em que o Centro de Estudos Estratégicos Antonio Ivo de Carvalho terá protagonismo. “Não se trata do somatório de nossas experiências, e sim, na linha da inovação científica para a mudança social, de nos transformarmos ao longo desse processo”, explicou. “Que essa pedagogia não seja uma pedagogia de hierarquia, nós falando para os outros, ou uma área falando para a outra, e sim fruto de interação e de encontro”.