A gratuidade do ensino nas universidades públicas
Naomar de Almeida Filho *
Publicado no Jornal da Ciência
Após séculos de atraso histórico, o Brasil tem hoje um modelo peculiar de educação superior: universidades públicas orientadas à excelência em ensino e pesquisa convivem com um setor privado que é majoritário em quantidade e precário em qualidade.
De modo apressado e sem fundamentação, fala-se que a rede pública de educação superior seria cara e ineficiente e que depende parasitariamente de financiamento estatal. Como solução para uma crise financeira crônica, surgem propostas de adoção do ensino pago nas universidades públicas brasileiras. Para os que não puderem pagar, sugerem-se formas de endividamento pessoal com efeito retardado, como o modelo australiano baseado em impostos sobre a renda futura ou, como na Inglaterra, empréstimos subsidiados, ou ainda, como nos EUA, hipotecas bancárias. Não faz o menor sentido copiar países com alta renda per capita e reduzida concentração de renda ou contextos econômicos distantes de nossa realidade, como por exemplo a “maior economia do mundo”.
Qualquer iniciativa de extinção da gratuidade nas matrículas das universidades públicas brasileiras será restritiva ao direito pleno à educação, estabelecida como dever do Estado por nosso marco constitucional. Num país como o Brasil, com baixa renda per capita e imensas desigualdades sociais, no qual uma parcela pequena da população tem renda estável suficiente para sobrevivência, a cobrança de mensalidades em instituições públicas de educação é injusta, iníqua e, por muitos motivos, inviável. Vejamos por quê.
Primeiro, consideremos o impacto social da educação superior no Brasil. Historicamente, quem mais se beneficia da gratuidade das universidades públicas é a classe média que, de diversas maneiras, tem sido muito afetada pelas crises econômica e fiscal do Estado brasileiro. Essa problemática remete à questão fundamental de para quê serve o Estado. Nas sociedades democráticas, a invenção histórica do Estado de bem-estar social atribui a esse ente político a missão de compensar e, onde possível, superar desigualdades sociais mediante políticas promotoras de equidade, tendo a educação pública como essencial para a concretização da cidadania plena de direitos. Anísio Teixeira nos ensina que não há democracia sem educação pública de qualidade, em todos os níveis de ensino.
Em segundo lugar, a universidade é muito mais do que uma mera instituição de ensino superior. Representa poderosa força produtiva, fonte de capital científico crucial para a soberania econômica, política e cultural. Diferentes regimes de financiamento das universidades, em distintos países, fomentam formas de integração das instituições com os setores produtivos da economia e com espaços significativos da cultura nacional. Há no mundo vários modelos de financiamento de universidades. Mas nenhum deles prescinde de financiamento estatal, mesmo em países com sistemas de cobrança total de taxas e matrículas, como os EUA.
Terceiro, vejamos a dimensão política (e prática) da gestão institucional. A Constituição brasileira define ensino, pesquisa e extensão como funções indissociáveis da universidade. Se, visando cobrar mensalidades, as universidades precificarem suas atividades de ensino, todas as outras ações necessárias para cumprir seu mandato constitucional estarão excluídas. Além disso, a futura recuperação de custos para quem não pode pagar implicaria uma refinada engenharia financeira e um complexo aparato institucional, talvez mais caro do que a incorporação desses custos ao orçamento básico das universidades, o que já é praticado atualmente. No Processo de Bolonha (1999), alguns países europeus implantaram a cobrança de taxas escolares, mas logo tiveram que recuar por questões de viabilidade e por intensa reação social.
O sistema público de ensino superior do Brasil – de caráter estatal e, portanto, vulnerável a políticas governamentais que negam a importância da educação, da ciência e da cultura – enfrenta atualmente desinvestimento induzido e restrições orçamentárias programadas. Para seu bom funcionamento, as universidades devem dispor de um orçamento básico para despesas essenciais, de um orçamento complementar para atividades necessárias e de financiamento suplementar para projetos e atividades emergentes e igualmente relevantes. O orçamento básico precisa de fonte estável e ajustada ao porte da instituição; o orçamento complementar necessita de aportes constantes de recursos; o financiamento suplementar pode ser provido por órgãos de financiamento mediante projetos e programas.
Uma boa notícia: já temos no Brasil um modelo capaz de solucionar esses dilemas. O sistema estadual paulista conta com um percentual de arrecadação tributária para garantir o orçamento básico e um fundo autogerido para o orçamento complementar; agências de amparo a pesquisa, desenvolvimento tecnológico e produção cultural dão conta do financiamento suplementar. Para financiar atividades de extensão, o próprio Estado pode contar com as universidades públicas no apoio técnico a políticas públicas e programas sociais. Na Itália, licitações e programas de governo são monitorados e avaliados por universidades públicas, colaborando com representações da comunidade e órgãos de controle estatal.
Em suma, as universidades públicas brasileiras precisam de estatuto jurídico próprio, com autonomia administrativo-financeira para gerir tanto recursos garantidos pelos orçamentos públicos quanto o financiamento suplementar captado junto ao setor produtivo e à sociedade civil. A autogestão é fundamental para o efetivo exercício da autonomia acadêmica, capaz de gerar soluções criativas, sustentáveis e socialmente justas para o cumprimento da missão histórica da Universidade.
*Naomar de Almeida Filho é titular da Cátedra Alfredo Bosi do IEA/USP e ex-reitor da UFBA e da UFSB. Artigo publicado no Jornal da Ciência, em 17/10/2022.
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