Webinário analisa impactos da hiperconectividade na saúde mental e aponta para formas de lidar com as experiências digitais

Webinário analisa impactos da hiperconectividade na saúde mental e aponta para formas de lidar com as experiências digitais

Já leu

Os impactos da hiperconectividade sobre a saúde mental, com fragmentação da vida, multiplicação de identidades e outras possibilidades de ser e existir e, ao mesmo tempo, o uso da virtualidade de maneira positiva, encurtando distâncias e promovendo o acolhimento, estiveram em debate no webinário Tecnologias digitais e saúde mental – Desafios e oportunidades para o cuidado, realizado em 15/4/2025, pelo CEE-Fiocruz, com transmissão pela Video Saúde Distribuidora Fiocruz. O evento reuniu a psicanalista Luciana Jaramillo, integrante do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise do Rio de Janeiro, especializada no atendimento clínico de crianças, adolescentes e famílias; o médico Marcelo Veras, psicanalista e doutor em Psicologia, coordenador do PsiU - Lugar de escuta, Programa de Saúde Mental e Bem-estar da Universidade Federal da Bahia; e a psicóloga clínica e pesquisadora do Instituto de Psicologia da USP Nara Helena Lopes, com apresentação do secretário executivo do CEE-Fiocruz, Marco Nascimento, e mediação do  o médico sanitarista Paulo Amarante, pesquisador sênior do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (Laps/Ensp/Fiocruz).

“O debate nos ajuda a entender melhor um novo paradigma de interação social, que atinge a sociedade inteira”, destacou Marco Nascimento, ao abrir o webinário. Ele chamou atenção para uma questão “de natureza eminentemente política” sobre como esses novos dispositivos são “capazes de mudar a forma de pensar e o comportamento”, e para a responsabilidade do Estado quanto à liberdade de agir dessas plataformas, tendo em vista os vários exemplos de impacto deletério sobre os cidadãos. “Daqui a alguns anos, vamos olhar para trás e ficar muito surpresos com o tempo que deixamos isso funcionar sem qualquer tipo de regulação”, apontou.

“É importante podermos dimensionar o impacto, ver tendências e construir formas de lidar com um novo cenário. Temos que conhecer e saber como utilizar esses recursos”, observou Paulo Amarante. “As tecnologias digitais vêm produzindo novas formas de sociabilidade. Há preocupação com os efeitos negativos desses recursos, mas há também o lado positivo, a gente aqui, por exemplo, fazendo esse webinário com pessoas de várias localidades e inserções, podendo debater”, acrescentou.


Assista à íntegra do webinário


Plataformas digitais e hiperinflação de diagnósticos psiquiátricos

Durante sua exposição, a pesquisadora Luciana Jaramillo abordou o fenômeno que chamou de “epidemia de diagnósticos psiquiátricos nas redes sociais”, apresentando dados de sua pesquisa de pós-doutorado. Jaramillo destacou o impacto das plataformas digitais na “hiperinflação de diagnósticos” e na crescente “psiquiatrização” da existência. "Quanto mais avançam as descobertas acerca das doenças mentais e seus supostos tratamentos, mais se esperaria uma redução desses transtornos. Porém, o que temos observado é justamente o contrário”, apontou.

Luciana Jaramillo mencionou pesquisa de opinião, realizada em 2024, pelas agências Cause, Ideia e PiniOn, na qual ansiedade foi eleita a palavra do ano, remetendo a um protagonismo da saúde mental nos debates contemporâneos. Ela enfatizou que as redes sociais, especialmente Instagram e TikTok, têm desempenhado papel relevante nesse cenário, utilizando algoritmos para promover tendências e hashtags relacionadas a transtornos mentais, como ansiedade, TDAH (transtorno do déficit de atenção com hiperatividade) e depressão.

"Observei que termos como ansiedade, depressão, TDAH e bipolaridade ganham uma dimensão muito grande nas redes sociais. Esses termos buscam capturar a atenção dos usuários que estão navegando no feed", explicou Jaramillo.

Para a pesquisadora, fatores viciantes por trás dos mecanismos das redes sociais são projetados para maximizar o tempo dos usuários na plataforma, muitas vezes, transmitindo a falsa sensação de felicidade plena e constante. “A busca por um ideal de felicidade e bem-estar, amplamente propagado nas redes, quando não alcançado, transforma o mal-estar da existência em algo patologizado", observou. Esse contexto, prosseguiu, resulta na mercantilização de diagnósticos, criando nichos dentro do “mercado da subjetividade”. Testes de autodiagnóstico online, kits terapêuticos e informações distorcidas se proliferam, configurando uma "feira livre da saúde mental".

A pesquisadora também alertou para a banalização de debates complexos relacionados à saúde mental, frequentemente prejudicados pela estrutura comunicacional das redes sociais. “Narrativas simplificadas e engajamento artificial transformam os transtornos mentais em conteúdos virais, gerando lucros e influenciando a percepção pública sobre o tema”, observou. "Nas redes sociais, identificamos uma propagação absurda de desinformação, com a produção de notícias falsas e enviesadas, além da venda de serviços diversos associados à saúde", destacou.

Jaramillo concluiu sua apresentação ressaltando a necessidade urgente de criar políticas públicas que incentivem pesquisas e práticas voltadas para a redução de estigmas, valorização das narrativas individuais e promoção de novas condições de vida saudável. “Precisamos refletir sobre o que as redes sociais estão produzindo nas pessoas e o que as pessoas estão produzindo através das redes sociais”, disse.

 

Superexposição e perda da noção de corporeidade, por um lado; acolhimento, por outro

Ao abordar o impacto das redes sociais no comportamento, o psicanalista Marcelo Veras citou o compositor e ensaísta José Miguel Wisnik, – “A vida não tem equilíbrio, só equilibristas” – para pontuar que “é necessário saber como sermos equilibristas nesse mar que se tornou a possibilidade de conectividade social”. Fazendo referência, ainda, ao pensamento do sociólogo e filósofo francês Jean Baudrillard, um dos principais pensadores a analisar as implicações do mundo virtual na sociedade contemporânea, Veras sublinhou que, de tanto vermos telas e sermos bombardeados por elas, estamos perdendo a capacidade de enxergar. É uma cegueira por um excesso de visão, é uma ignorância por um excesso de informação”, definiu.

Embora reconheça aspectos positivos da conectividade, que permite debates como o promovido por esse webinário, Veras alertou para a “ilusão da transparência total do ser” propagada pelas redes sociais, as novas tecnologias e, agora, a inteligência artificial.  Como psicanalista, ressalta que se interessa justamente por aquilo que não é transparente. “O ser é opaco, há algo de opacidade que é singular e que morre com a gente, que nos constitui. Nós não podemos ser numerizáveis, não podemos nos tornar números”, considerou.

Veras destacou algumas questões relativas às tecnologias digitais e à saúde mental. A primeira refere-se a uma perda da noção de corporeidade pelas crianças, ao trocarem o brincar de massinha, por exemplo, pelo tempo que passam nos tablets e Iphones. E, concordando com a avaliação que a neurologista inglesa Susan Greenfield faz sobre o assunto, explicou que as crianças estão fazendo uma imersão na tridimensionalidade em duas dimensões, ficando a terceira dimensão como uma complementação virtual. Em sua avaliação, isso acontece exatamente no momento, em que seria necessária “uma elaboração cognitiva” por parte da criança.

Como consequência da hiperconectividade das crianças, ele cita a banalização de diagnósticos de hiperatividade e a hipermedicalização da existência. Se esses jovens cumprem o projeto civilizatório atual, da hiperconectividade sem qualquer limite, é claro que não vão dar conta da sala de aula”, diz.

Outra questão apontada por Veras, derivada, também, da superexposição dos jovens às telas, é o consumo de pornografia antes mesmo de terem adquirido maturidade sexual, “um preparo psicológico para saber o que é e como se decidir nas escolhas sexuais”. O resultado desse processo são “jovens numa deriva sexual, completamente perdidos”, apontou Veras, citando a série Adolescência, de muito sucesso na Netflix, para lembrar o momento da explosão sexual desses jovens, que ganha agora “efeitos da virtualidade, convertido em agressividade e formando, com o consumo excessivo de pornografia, “uma legião de masturbadores, que não sabem muito bem o que fazer com a massinha, isto é, com o corpo do outro, como eu gosto de dizer, não sabem o que fazer com o corpo real”.

Em relação à agressividade percebida nas redes sociais, Veras chama a atenção para a facilidade com que ocorrem os linchamentos virtuais, numa escalada sem precedentes. Hoje é possível “destruir a vida do outro com apenas um clique”, diz, lembrando que, “por isso, os grandes governos autoritários adoram as redes sociais abertas”. 

O smartphone se transformou praticamente em “um órgão apêndice do sujeito”, lembrou o psicanalista, utilizado desde a hora em que acorda, até a hora que vai dormir e, mesmo, no meio da noite. Essa onipresença “transformou o sono, que é algo fundamental, num espaço entre dois chats”, considerou. Os jovens depois de jogarem até altas horas da madrugada acabam dormindo por exaustão e não sonham. De acordo com o psicanalista, isso aumenta a ansiedade. “O sonhar, o pesadelo, é muito importante, porque é ali que a pessoa vai elaborar todas as angústias. O sonho é um potente, digamos, ansiolítico”, explicou.

Ao lado das críticas e alertas, Veras apresentou o PsiU, programa de Saúde Mental e Bem-Estar da Universidade Federal da Bahia, coordenado por ele, que oferece escuta para a comunidade universitária, um exemplo de como a virtualidade pode, também, funcionar de forma positiva. “O PsiU tem um chatbot, que faz com que a pessoa, em dois ou três cliques, tenha quase que imediatamente, alguém que vai poder escutá-la e acolhê-la “.

Ciente de que o tempo médio que o jovem passa de uma tela a outra é de 20 segundos, o programa foi pensado para oferecer a ele acolhimento, no momento em que procura, promovendo ainda um elastecimento do tempo para compreensão do problema que o aflige, por meio de acompanhamento em alguns encontros. Veras explica que, de acordo com Lacan, podemos decompor o tempo entre instante de ver, o tempo para compreender e o momento de concluir. “Quado esse tempo para compreender, que é o tempo da dialética, é de apenas 20 segundos, a gente entende por que, às vezes, uma menina agredida ou que tenha uma ruptura amorosa na escola, pensa em se matar e tenta efetivamente se matar”, citou.

Criado por solicitação da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) para que as universidades e instituições federais de ensino desenvolvessem estratégias para frear a escalada de suicídios nesses locais, o PSIU é um programa bem-sucedido, de acordo com Veras. “Em sete anos, já tivemos algo estimado em 14.500 acolhimentos, ou seja, é muito!”, celebra. Em sua avaliação, o “pulo do gato” para o bom funcionamento do programa é o fato de conseguir atender, “em um espaço extremamente curto, a urgência subjetiva”.

 

Reposicionamento profissional para lidar com as experiências digitais

A psicóloga e pesquisadora da USP Nara Helena Lopes, destacou três aspectos a serem levados em conta acerca da relação entre as tecnologias digitais e o cuidado à saúde mental: a mudança cultural relacionada ao advento dessas tecnologias, o que implica uma mudança na cultura profissional; a demanda por novos saberes relacionados a patologias psicológicas e à tecnologia; e a responsabilidade ética no que diz respeito a conhecer, aprender e desenvolver dispositivos digitais.

“A cultura atual, híbrida, traz uma interação entre homem e tecnologia que transforma nossos valores e hábitos e a forma de constituir nossa identidade”, analisa Nara. “As relações se modificam, com experiências mais fragmentadas de vida, multiplicação de identidades, novas possibilidades de ser e de existir, por exemplo, com o uso de avatares, maior interação e menos tempo de introspecção, multidimensionalidade e ausência do corpo físico. Isso tudo influencia nosso modo de vida e nossas ações”, observa.

Conforme observou a pesquisadora, essas mudanças trazem para os profissionais de saúde a necessidade de um reposicionamento em suas práticas. “Não só na instrumentalização, nos novos recursos e ferramentas de trabalho, mas na compreensão dos desencadeamentos nas experiências humanas, nas formas de sofrimento, nas psicopatologias, no conceito de adoecimento”, diz, acrescentando que esse reposicionamento exige “uma responsabilidade ética”, um conhecimento do contexto digital e de como habitar esse universo.

“A pergunta é se os sistemas e os profissionais de saúde mental estão aptos, estão se abrindo, se preparando para se tornarem protagonistas dos processos de transformação digital, diante da necessidade de proteção e cuidado das pessoas que interagem no ambiente on-line”, observa.

Nara alertou para a “avalanche” de aplicativos de saúde mental que se observa hoje, algo “assustador”, uma vez que, como pontuou, a maior parte não conta com profissionais de saúde mental em seu desenvolvimento. “O que há são grandes empresas de tecnologia, que ingressam nesse ramo com intuito muito mais financeiro do que de tratamento, o que pode repercutir em sofrimento ainda maior. O Brasil é o segundo maior país com maior uso diário de internet, mais de oito horas por dia. Nós profissionais de saúde também estamos nesse contexto, vivendo esse excesso de informação e muitas vezes de forma não refletida”, lembrou.

A pesquisadora chamou atenção também para as “diversas nomenclaturas” voltadas ao universo da saúde mental, que vão se difundindo pela internet sem o aval de profissionais da área, como transtorno de jogos, tecnoestresse, tecnodependência, amnésia difusa. “Busca-se localizar o transtorno, quando precisamos ampliar essa leitura para a dependência digital. É preciso compreender as experiências de digitais, antes de estabelecer diagnósticos”, apontou.

A pesquisadora trouxe alguns exemplos do que tem sido o uso das tecnologias digitais no cuidado à saúde mental, as psicotecnologias, “que simulam, estendem, amplificam e modificam as funções sensoriomotoras, psicológicas e cognitivas pelo desenvolvimento e avaliação de interfaces entre tecnologias e as profissões da área psi em geral”, recomendando uma atuação multiprofissional.

Nara relata que estudou psicoterapia on-line em seu projeto de pós-doutorado, antes da pandemia, destacando a importância de se conhecerem as ferramentas – “e eu nunca vou conseguir ser uma especialista em todas” – e os manejos clínicos específicos que é preciso desenvolver, bem como o contexto cultural global, em que a tecnologia nos dá recursos para atuar.

Ela chamou atenção para os recursos das tecnologias de informação e comunicação síncronas e assíncronas. Entre as primeiras, as videochamadas e teleconsultas, que permitem promover o cuidado em regiões em que esse cuidado por vezes não chegaria de outra forma. “Mas o que temos visto é que esses recursos são encarados apenas como dispositivos, sem que haja o domínio de seu uso pelo profissional. Não é só ligar uma câmera, trata-se de uma nova conduta terapêutica, com exigências específicas, que requer um desenvolvimento da capacidade empática na dimensão on-line, da alteridade, do reconhecimento do território do outro, o que exige uma prática muito cuidadosa, de escuta, uma abertura para os aspectos sociais e culturais do território onde se localiza a pessoa atendida. “Principalmente no Brasil, com tanta diversidade cultural. Se estou no Sul e vou atender uma pessoa do Norte, é preciso saber quais fatores definem a saúde, o sofrimento, naquela região. Em uma videochamada, muito disso é perdido. Trata-se de uma realidade que requer formação”, avaliou.

Quanto às tecnologias assíncronas, prosseguiu, o uso de mensagens representa uma possibilidade de atenção muito significativa, se bem utilizada. “Não se trata de passar uma mensagem e pronto. O recurso precisa de um suporte, de cuidados, precisa ser mais olhado”.

Nara trouxe também outras experiências, como o uso dos games, da realidade virtual e da realidade aumentada, na criação de experiências interativas, tecnologias que envolvem custo maior. “A realidade aumentada tem potência e impacto grande sobre a experiência emotiva e comportamental. O grande atributo dessas tecnologias está no senso de presença, na multisensorialidade e possibilidade de engajamento dos usuários”.

Ela mencionou também a terapia por avatar (avatar therapy), projeto multidisciplinar, envolvendo profissionais das áreas da saúde e digital, em teste no sistema de saúde, em especial, com pessoas esquizofrênicas. “A tecnologia precisa ser vista em seus riscos e limites, e, ao mesmo tempo, em seu potencial, entendendo-se as novas demandas, amplificando conhecimentos, desenvolvendo protocolos compatíveis com a realidade. E cuidando para que esses instrumentos não surjam de uma demanda de mercado, mas como algo útil que se baseie nos aspectos relacionais, do diálogo, da escuta, mantendo-se os princípios éticos e o domínio daquilo que nos torna humanos”, enfatizou.

Assista ao webinário

Saiba mais sobre a série de webinários 'Transformação digital na saúde pública'