'A liberdade é terapêutica': seminário internacional debate legado de Franco Basaglia na psiquiatria democrática
Por Tatiane Vargas *
A Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca promoveu o Seminário A Liberdade é Terapêutica: centenário de Franco Basaglia – 50 anos de psiquiatria democrática, organizado pelo Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial da Ensp, em parceria com o Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz (CEE-Fiocruz). O evento contou com a participação de convidados nacionais e internacionais e debateu sobre o legado de Franco Basaglia neste meio século de psiquiatria democrática. Durante dois dias (20 e 21/6), o seminário discutiu o movimento da psiquiatria democrática italiana e suas influências na reforma psiquiátrica brasileira. A atividade também contou com apresentação cultural, além da ‘Feira de Economia Solidária’ promovida pelos usuários dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) do Rio de Janeiro.
O coordenador do evento, pesquisador sênior da ENSP e do CEE-Fiocruz e fundador do Laps, Paulo Amarante, participou da mesa 'A (ainda) atualidade da Psiquiatria Democrática: princípios, histórias e lutas contemporâneas', junto com o presidente da Cooperativa Social Agrícola Monte San Pantaleoni e membro fundador do Consórcio para Empresa Social, Giancarlo Carena. Amarante relembrou em sua fala a importante influência de Basaglia na decisão de definir o movimento brasileiro como antimanicomial e o manicômio como uma forma de opressão mental.
“A Reforma Psiquiátrica no Brasil foi uma das mais importantes transformações da saúde pública brasileira nas últimas décadas. Sua busca por fechar os manicômios abriu caminho para a introdução do cuidado em liberdade, algo revolucionário para o bem-estar dos usuários desses serviços”, explicou ele. No ano em que Franco Basaglia completaria 100 anos, Amarante destacou a imensa alegria em realizar o Seminário Internacional, que contou com grande audiência da América Latina, e lembrou como o psiquiatra italiano se tornou uma inspiração para os profissionais que queriam mudar a saúde mental no Brasil, além de ter inspirado a criação do modelo dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).
Em sua apresentação, o pesquisador citou diferentes obras de Basaglia. Em ‘A instituição negada’, referência do movimento da psiquiatria democrática na Itália, Franco trabalhou com três grandes linhas de intervenção: a origem e o pertencimento de classe dos internos do hospital (opressão de classe, raça, etnia, gênero, sexualidade); a pretensão de neutralidade e de produção de verdade por parte das ciências; e a função social e de tutela dos técnicos na produção de hegemonia. “Nesta obra, a crítica à ciência tem um caráter ao mesmo tempo político e epistemológico, pois, na verdade, é impossível desvincular uma à outra”, explicou ele.
Paulo Amarante citou a questão da crítica epistemológica sobre a objetificação da pessoa enquanto doença e como lidar com pessoas e não com doenças ou drogas. “A objetivação do homem em síndromes, operada pela psiquiatria positivista, tem tido consequências extremamente irreversíveis no doente que, originalmente objetivado e restrito aos limites da doença, foi confirmado como categoria fora do humano por uma ciência que devia se distanciar e excluir aquilo que não estava em grau de compreender”, lembrou ele.
Por fim, o pesquisador falou sobre como a psiquiatria democrática se opõe a esse modelo e redefine a reforma psiquiátrica como um processo social complexo. “A psiquiatria colocou o doente, o homem, entre parênteses, para poder se ocupar da doença (abstrata). A verdadeira revolução está em poder colocar a doença entre parênteses para podermos nos ocupar das pessoas”, finalizou ele.
O italiano Giancarlo Carena, que trabalha há mais de 40 anos na construção de práticas de direitos, diálogo, cidadania e reconhecimento contou um pouco de sua trajetória profissional e seu trabalho com Basaglia na Itália, na década de 1970. Ele falou sobre a ligação entre ele, Paulo Amarante e Franco Basaglia e o movimento da reforma psiquiátrica italiana e brasileira. Carena contou sobre a experiência que vivenciou em sua atuação como enfermeiro e trouxe a imagem de um manicômio fechado em Trieste, na Itália, onde na parede está escrito ‘A liberdade é terapêutica’, e o que essa frase representa e representou para a reforma psiquiátrica italiana.
Ele também trouxe reflexões sobre a questão dos hospitais psiquiátricos e o empreendedorismo social e lembrou como a luta antimanicomial foi importante para o fechamento dos manicômios na Itália transformando esses espaços. Por fim Giancarlo celebrou o centenário de Franco Basaglia e seu legado para a saúde mental na Itália e leu a descrição de vinho criado em homenagem a Franco Basaglia.
ENSP celebra ‘Ciência, saúde e arte’ em prol da democracia
O diretor da Ensp, Marco Menezes, participou da cerimônia de abertura e celebrou a parceria interinstitucional entre a ENSP, o CEE-Fiocruz, o Cebes, a Abrasme, e a Capes para a realização do evento, reforçando que a ENSP celebra a 'ciência, a saúde e a arte' em prol da democracia. “É um prazer participar deste momento de discussão do movimento da reforma psiquiátrica democrática, sob a coordenação do reconhecido pesquisador Paulo Amarante, que recebeu recentemente o título de Cidadão Honorário da Câmara do Rio, e organizado pelo Laps/ENSP, também reconhecido com uma moção na Câmara pelo trabalho realizado no campo da saúde mental, luta antimanicomial e proibicionismo”, celebrou ele. O diretor também destacou a importância das iniciativas promovidas pelo Laps, com ações de assistência, ensino e pesquisa, mencionando a Feira de Economia Solidária e os diversos cursos coordenados pelo Laboratório de Estudos e Pesquisas.
Coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (Laps/ENSP) e presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), Ana Paulo Guljor, destacou a importância de discutir a ideia da liberdade terapêutica, no ano em que se completa o centenário de Franco Basaglia e os 50 anos da psiquiatria democrática e sua interface com a psiquiatria brasileira. Como exemplo de liberdade terapêutica, Guljor citou a realização da Feira de Economia Solidária durante o evento, promovida pelos usuários dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) do Rio de Janeiro.
* Do Informe Ensp. Publicado em 24/6/2024.