Saúde para todos, mantendo a promessa dos 75 anos da OMS – por Luiz Augusto Galvão, Paula Reges, Luana Bermudez e Paulo M. Buss
Começa neste domingo em Genebra, Suíça, e vai até 30 de maio, a 76ª sessão da Assembleia Mundial da Saúde. No artigo abaixo para o blog do CEE-Fiocruz, pesquisadores do Grupo de Trabalho sobre Saúde Global e Diplomacia da Saúde do Centro de Relações Internacionais em Saúde (Cris/Fiocruz) comentam o papel desse evento anual, que, em 2023, tem como tema OMS em seus 75 anos: salvando vidas e levando saúde para todos. Os autores apontam as principais questões que estarão em debate no “acontecimento mais esperado da saúde global”, em que “o compromisso renovado com a equidade será a chave para enfrentar os futuros desafios da saúde”. A seguir, o artigo completo.
Luiz Augusto Galvão, Paula Reges, Luana Bermudez e Paulo M. Buss
A Organização Mundial da Saúde (OMS) é uma agência das Nações Unidas, fundada há 75 anos. Conta com mais de 7 mil trabalhadores, lotados nos 150 escritórios espalhados pelo mundo, em repartições nos Estados-membros, seis escritórios regionais e na sede. A criação da OMS representa um marco na saúde global. A organização é responsável pela formulação de normas sanitárias internacionais, pela produção de guias e materiais técnicos em prevenção e controle de doenças, manuais de boas práticas, criação e implementação de programas de controle e erradicação de doenças, promoção de cooperação técnica com os estados-membros, formulação de relatórios de situação e análises de risco, e, ainda, o fomento de pesquisas em saúde.
Durante os 75 anos de existência da OMS, desde 7 de abril de 1948, muito se fez para implementar o primeiro item do preâmbulo da Constituição de princípios da organização, que diz: “A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade”.
Nesse período, a população global cresceu e mudou características, e o conceito de saúde foi ampliado, agregando-se sua determinação social. O cenário do fim da década de 40 deu lugar ao que temos hoje: uma miscelânea política, econômica e social, que forja a sociedade global.
Olhando para os próximos 75 anos, a OMS enfatiza o compromisso renovado com a equidade na saúde, chave para enfrentar os futuros desafios sanitários. À sombra da pandemia de Covid-19, o roteiro da OMS para a recuperação inclui mudança urgente de paradigma para promover a saúde e o bem-estar e prevenir doenças, abordando suas causas profundas e criando as condições para que a saúde prospere.
Nos últimos cinco anos, a OMS investiu em ciência e saúde digital, criando uma Divisão de Ciência liderada pela primeira cientista chefe da Organização. Isso ocorreu em um momento em que a ciência está sob ataque constante todos os dias. Os países devem proteger o público contra a desinformação. O futuro da saúde depende de quão bem a potencializamos por meio da ciência, pesquisa, inovação, dados, tecnologias digitais e parcerias.
76ª Assembleia Mundial da Saúde
As decisões da Organização são tomadas pela Assembleia Mundial da Saúde (AMS), órgão supremo, compondo-se de delegações de todos os 194 Estados-membros da OMS e que se reúne anualmente, em maio, em Genebra, Suíça. Em 2023, a AMS realiza-se de 21 a 30 de maio.
As principais funções da Assembleia são:
- Determinar as políticas da OMS
- Nomear o diretor-geral
- Supervisionar as políticas financeiras
- Rever e aprovar a proposta de orçamento-programa
- Considerar relatórios da Conselho Executivo (Executive Board)
- Instruir a Diretoria Executiva em relação a assuntos sobre os quais possam ser necessárias outras ações, estudos, investigações ou relatórios.
A AMS toma decisões por maioria de dois terços dos Estados-membros presentes e votantes. Em alguns casos, é necessário o voto por maioria simples. É ainda apoiada pela Diretoria Executiva (Executive Board), composta por 34 membros tecnicamente qualificados, indicados pelos Estados-membros, eleitos para mandatos de três anos e que se reúnem duas vezes por ano.
A Diretoria Executiva tem como principais atribuições:
- Preparar a agenda para a AMS
- Auxiliar a AMS no desempenho de suas funções
- Aconselhar o diretor-geral sobre a política e o programa de trabalho globais da OMS
- Supervisionar a implementação das decisões da AMS
- Elaborar relatório à AMS sobre suas atividades
A OMS também tem uma série de comitês técnicos e órgãos consultivos, que fornecem aconselhamento e apoio à AMS, à Diretoria Executiva e ao diretor-geral. Esses comitês e organismos são compostos por peritos dos Estados-membros e de outras organizações.
As decisões na OMS são tomadas por meio de um processo de negociação e construção de consensos. A AMS e a Diretoria Executiva esforçam-se para chegar a decisões aceitáveis para todos os Estados-membros. A sociedade civil e outros organismos internacionais desempenham papel muito importante nesse processo, promovendo atividades antes, durante e depois das reuniões da Diretoria Executiva e da AMS.
Nos períodos intermediários, a secretaria da organização – composta de seis organizações regionais, incluindo a Opas, na região das Américas, e inúmeros departamentos técnicos – coordena a implementação das decisões da AMS.
Este ano, a 76ª sessão da Assembleia terá como tema OMS em seus 75 anos: salvando vidas e levando saúde para todos. O evento se realiza no Palais de Nations, sede das Nações Unidas, em Genebra. Os temas da agenda estão divididos em quatro eixos principais, definidos quando se estabeleceu o 13º Programa Geral de Trabalho da OMS (13 GPW) e o triplo bilhão (triple billion) da OMS. O desenho proposto de gestão de demandas visa tornar a arquitetura da saúde global mais eficiente e sustentável:
- Pilar 1: Mais um bilhão de pessoas se beneficiando da cobertura universal de saúde
- Pilar 2: Mais um bilhão de pessoas melhor protegidas de emergências de saúde
- Pilar 3: Mais um bilhão de pessoas desfrutando de melhor saúde e bem-estar
- Pilar 4: OMS mais eficaz e eficiente, fornecendo melhor apoio aos países
A agenda provisória prevista para a Assembleia é vasta; contudo, a agenda não se esgota em si. Sendo o evento mais esperado e que congrega diferentes atores do cenário da saúde global, as temáticas extrapolam o Palais. É o momento do ano em que diferentes entidades, agências, organizações da sociedade civil e não governamentais, ministros, diplomatas, representantes de organismos internacionais, manifestações científicas, entre diversos outros participantes, discutem formalidades, chegam a acordos e parcerias, fomentam trocas e buscam novas alianças em prol de um mundo mais saudável, além de interesses próprios.
Tratado sobre pandemias e revisão do Regulamento Sanitário Internacional
Entre os diversos temas da 76ª AMS, os mais importantes giram em torno da arquitetura global de preparação e resposta a emergências de saúde pública. Isso por meio da revisão do Regulamento Sanitário Internacional (RSI), documento vinculante da OMS; e da construção da proposta de um Instrumento sobre pandemias, também vinculante, que indiretamente assentarão novas bases para a diplomacia da saúde global e para a governança global em saúde.
Esse processo começou depois que o relatório independente encomendado pela AMS trouxe à baila as grandes fragilidades do sistema multilateral de saúde global. Alguns dos pontos críticos são a equidade em saúde, as consequências àqueles que compartilham informações, a propriedade intelectual e o acesso a tecnologias em saúde, a perda de credibilidade devido às notícias falsas e as responsabilidades comuns entre os países, porém diferenciadas devido às respectivas capacidades de resposta.
Diante do comunicado recente do diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom, sobre o fim da fase emergencial da Covid-19 e da mpox, muito ainda precisa ser discutido sobre como garantir que erros não se repitam e que estejamos prontos para novos desafios. Nessa área, os dois processos mencionados caminham em paralelo: a revisão do RSI (working group on International Health Regulations) e o Órgão Intergovernamental de Negociações do Tratado Pandêmico (Intergovernamental Negotiating Body). Ambos, a partir de diferentes abordagens e obrigações, buscam traçar estratégias e criar mecanismos de garantia para um mundo mais resiliente e equitativo, sob a perspectiva da prevenção, preparo, resposta e recuperação frente às emergências de saúde pública. Para isso é necessário promover boa governança, com transparência, responsabilidade e participação inclusiva. É esperado que ambos os trabalhos finalizem em 2024, e, apesar de ainda haver um caminho sinuoso a ser seguido, relatórios intermediários serão apresentados nesta AMS.
Ameaças contínuas de outras doenças zoonóticas, insegurança alimentar, desafios de resistência antimicrobiana, bem como a degradação do ecossistema e as mudanças climáticas demonstram claramente a necessidade da resiliência de sistemas de saúde e ação global acelerada. Em um contexto global que combina mais movimentações humanas, crise climática, mais interações homem-animal, tragédias migratórias devido a conflitos e escassez de recursos, é instado que todos os países e as principais partes interessadas devam priorizar Saúde Única na agenda política internacional.
Em um mundo de tantas desigualdades, seria incoerente tratar países de acordo com suas diferentes demandas? Um dos eixos quentes de discussões dá-se em torno do conceito de responsabilidades comuns, porém diferenciadas, ou CBDR da sigla em inglês (common but differentiated responsibilities). Um princípio orientador no regime internacional ambiental funcionaria como base normativa para definir responsabilidades diferenciadas entre os países para enfrentar ameaças à saúde pública. A adaptação do princípio CBDR ao regime internacional de saúde tem o potencial de reforçar a governança global da saúde, fortalecer a preparação e resposta global a pandemias por meio da cooperação e solidariedade internacional e proteger o mundo de futuras pandemias.
Por um lado, os países desenvolvidos defendem que CBDR é contra o princípio de universalidade e que provocaria uma divisão. Porém, os países em desenvolvimento defendem que aqueles com mais capacidades devem agir para garantir que todos tenham as mesmas condições de resposta a uma futura pandemia. O posicionamento do governo brasileiro até o momento é que se deve adotar o reconhecimento da importância de um tratamento diferenciado, de acordo com as capacidades de cada país.
Cabe destacar que o Brasil, sob coordenação da Divisão de Saúde Global do Ministério das Relações Exteriores (MRE), vem fazendo uma série de reuniões interministeriais para definir o posicionamento brasileiro nas negociações do instrumento internacional sobre pandemias, principalmente nos temas de maior tensionamento. A Fiocruz tem participado dessas reuniões com expertos nas distintas áreas de interesse.
Equidade e determinantes sociais da saúde
O compromisso renovado com a equidade na saúde será a chave para enfrentar os futuros desafios da saúde. À sombra da pandemia de Covid-19, o roteiro da OMS para a recuperação inclui mudança urgente de paradigma para promover a saúde e o bem-estar e prevenir doenças, abordando suas causas profundas e criando as condições para que a saúde prospere. A OMS convoca os países a propiciar melhores condições de saúde, priorizando a atenção primária como base da cobertura universal.
Pela definição, determinantes sociais de saúde (DSS) são os fatores extra-setoriais que influenciam os resultados em saúde. São as condições nas quais as pessoas nascem, crescem, trabalham, vivem e envelhecem, e o conjunto mais amplo de forças e sistemas que moldam as condições da vida diária. Essas forças e sistemas incluem políticas e sistemas econômicos, agendas de desenvolvimento, normas sociais, políticas sociais e sistemas políticos.
Os DSS têm uma influência importante nas iniquidades em saúde – as diferenças injustas e evitáveis no estado de saúde observadas dentro e entre os países. E sobretudo sobre aqueles à margem, como populações indígenas, grupos minoritários, pessoas em situações de vulnerabilidade, migrantes. E apesar de a Covid-19 ter amplificado tais injustiças, existem diversos outros fatores interligados que colaboram nesse decréscimo de qualidade de vida, dos conflitos armados à crise climática, da insegurança alimentar ao alto custo de vida.
O trabalho tem se concentrado no desenvolvimento de um novo Quadro Operacional (Operational Framework), que proporá uma forma de medição, avaliação e abordagem dos determinantes sociais da equidade na saúde. Além disso, compartilhará os principais desafios e as formas de superá-los. Está vinculado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e outros esforços intersetoriais, uma vez que a governança e a colaboração multissetorial são fundamentais para abordar os determinantes sociais da equidade na saúde.
Saúde dos povos indígenas
Considerando tal âmbito de ações, a retomada brasileira com ativa participação nas discussões e no cenário internacional é exemplificada com a proposição de uma resolução sobre a saúde dos povos indígenas, tema nunca abordado diretamente pela Assembleia Mundial da Saúde. É sabido ser prioridade para o Brasil a busca pela garantia que essas populações gozem do seu direito à saúde, de acordo com suas próprias necessidades, especificidades e sob sua própria administração. Desde que a proposta foi apresentada em fevereiro deste ano, sete consultas informais foram feitas, com a participação dos Estados-membros interessados na construção do documento final, que foi enviado ao Secretariado da OMS no dia 12 de maio para ser incluído entre os documentos que serão discutidos na Assembleia. A partir de um chamado de apoio aos Estados-membros, a OMS, bem como outras organizações internacionais e todos aqueles que se preocupam em não deixar ninguém para trás, o Brasil traz para essa AMS o tema, com ênfase em dar o devido reconhecimento a essa importante questão tantas vezes negligenciada.
Os chamamentos de renovação do compromisso pela equidade em saúde devem sempre estar presentes, e para todos. Nessa Assembleia, a proposição brasileira de resolução para saúde das populações indígenas será um marco para um avanço concreto nesse sentido. A situação de vulnerabilidade dos povos indígenas reflete a perversidade e exclusão social enfrentadas por essas populações, o que caracteriza um problema de saúde global, e não algo específico do país. Com base no envolvimento da Opas nessa questão no passado, o Brasil ressaltou que agora é hora de também a OMS abordar o tema.
A proposta de resolução pede a elaboração de um Plano Global para a Saúde dos Povos Indígenas, em consulta com os Estados-membros; o fornecimento de apoio técnico para o desenvolvimento de planos nacionais com estratégias específicas voltadas para territórios e comunidades indígenas; a proteção e melhoria da saúde dos povos indígenas; o incentivo à pesquisas sobre a saúde dos povos indígenas; a incorporação de uma abordagem intercultural no desenvolvimento de políticas públicas; o fortalecimento dos sistemas tradicionais de saúde dos povos indígenas; e a promoção de mecanismos de consulta prévia aos povos indígenas para a tomada de decisões sobre questões que os afetem. O que deve ser feito em consulta com Estados-membros, povos indígenas, atores relevantes da ONU e do sistema multilateral, bem como sociedade civil, academia e outras partes interessadas.
Outros temas
Outros temas importantes a serem discutidos durante a 76ª Assembleia Mundial da Saúde incluem:
. Doenças não transmissíveis: As doenças não transmissíveis (DCNTs) são a principal causa de morte e incapacidade no mundo. A Assembleia se concentrará em formas de prevenir e controlar as DCNTs, como doenças cardíacas, AVCs, diabetes e câncer. Os países discutirão como melhorar o acesso a alimentos saudáveis, atividade física e medicamentos essenciais.
. Saúde mental: A saúde mental é parte crítica da saúde geral. A Assembleia discutirá a importância da saúde mental, como lidar com o estigma associado à doença mental e como melhorar o acesso aos serviços de saúde mental.
. Cobertura universal de saúde: A cobertura universal de saúde (UHC) significa que todos têm acesso aos serviços de saúde de que precisam, quando precisam, sem dificuldades financeiras. A Assembleia analisará o progresso na meta da Agenda 2030 de alcançar a UHC.
. Mudança climática e saúde: As alterações climáticas são grande ameaça para a saúde. A Assembleia discutirá o impacto das mudanças climáticas na saúde e como mitigar os riscos. Os países também discutirão como se adaptar aos efeitos das mudanças climáticas.
. Resistência antimicrobiana: A resistência antimicrobiana (RAM) é a capacidade crescente de bactérias e outros micróbios de resistir às drogas projetadas para matá-los. A Assembleia centrar-se-á na crescente ameaça da RAM e na forma de preveni-la. Os países discutirão como desenvolver novos antibióticos e outros antimicrobianos e como melhorar o uso dos antimicrobianos existentes.
Assim, o mês de maio é mais uma vez cenário catalisador para discussões fundamentais para todos nós. São pautas que guiam a saúde global na busca constante por um mundo mais equitativo e saudável.
* Pesquisadores do Grupo de Trabalho sobre Saúde Global e Diplomacia da Saúde do Centro de Relações Internacionais em Saúde (Cris/Fiocruz)