Saúde no G20: de Gandhinagar rumo ao Rio de Janeiro

Saúde no G20: de Gandhinagar rumo ao Rio de Janeiro

Já leu

“A saúde é a riqueza suprema e o meio para todos os propósitos” (आरोग्यं परमं भाग्यं स्वास्थ्यं सर्वार्थसाधनम्). Foi com essa frase em sânscrito que o Primeiro-Ministro da Índia, Shri Narendra Modi, iniciou a sua fala de saudação aos ministros da saúde do G20, no último dia 18 de agosto. De fato, sem mente e corpo sãos, é impossível haver prosperidade, desenvolvimento social, econômico e ambiental, sendo a saúde um pré-requisito para o desenvolvimento sustentável.

O G20 (Grupo dos Vinte) é um fórum internacional composto pelas principais economias do mundo, que se reúnem para discutir questões econômicas e financeiras de importância global. Desde a sua criação, em 1999, o G20 tem desempenhado um papel fundamental na promoção da cooperação e na busca por soluções conjuntas para os desafios econômicos enfrentados pela comunidade internacional. Após a crise financeira global em 2008, o papel do G20 expandiu-se consideravelmente, tornando-se um fórum de encontro para Chefes de Estado e de Governo dos países membros do grupo. Desta forma, o fórum assumiu um papel central na coordenação das políticas econômicas com impacto global, com objetivo, ao menos retórico, de promoção do crescimento inclusivo, redução das desigualdades e resposta aos desafios globais como as alterações climáticas, o comércio e o desenvolvimento sustentável. (AITH; FREITAS; ESTEPHANIO, 2023)

A Presidência do G20 ocorre de maneira rotativa, pelo período de um ano, durante o qual há a organização de diversas reuniões e eventos, sendo a cúpula dos líderes dos países membros, o principal deles. Além disso, como o Grupo não dispõe de um secretariado permanente, a presidência é apoiada pela Troika (Presidências anterior, atual e futura). A Índia ocupa a presidência do G20 em 2023 e a Troika é composta por Indonésia, Índia e Brasil, respectivamente. (G20 SECRETARIAT, 2023a)

Especificamente em relação à discussão sobre saúde, em 2017, O Grupo de Trabalho de Saúde (GT SAÚDE) foi criado pela Presidência Alemã para melhorar o diálogo e informar questões importantes de saúde global aos líderes do G20. O GT SAÚDE deve trabalhar para criar sociedades sustentáveis de bem-estar, comprometidas em alcançar uma saúde equitativa para a atual e futuras gerações. Isso inclui questões relativas à preparação dos sistemas de saúde para emergências sanitárias, abordagem de Saúde Única (One Health), Saúde Digital, Cobertura Universal de Saúde (UHC), conformidade com as normas do Regulamento Sanitário Internacional (RSI), financiamento sustentável, dentre outras prioridades. (G20 SECRETARIAT, 2023b)

Este artigo possui dois grandes objetivos: (i) trazer um panorama geral a respeito das reuniões sobre saúde no G20, que ocorreram entre 16 e 19/08/2023 em Gandhinagar, na Índia, com destaque especial à reunião dos ministros da saúde (18 e 19/08); e (ii) analisar o documento resultante dessa reunião de Ministros da Saúde do G20 publicado após a reunião ministerial, que se encontra anexo. Dessa forma, pretende-se indicar, a partir de lições aprendidas na Índia, recomendações para a presidência do Brasil em 2024.

Saúde no G20, Gandhinagar, 2023

Entre 16 e 19 de agosto, ocorreram em Gandhinagar na Índia, diversas reuniões que se debruçaram sobre os desafios globais de saúde, dentre reuniões oficiais do G20 e eventos paralelos, a saber:

  • Reuniões oficiais do G20

    • 17/08 – 4° GT SAÚDE

    • 18 a 19/08 – Reunião dos Ministros da Saúde do G20

    • 19/08 – Reunião conjunta entre os Ministros da Saúde e de Finanças

  • Eventos paralelos

    • 16 a 17/08 – “Sustain, Accelerate and Innovate to end TB in the South-East Asia Region”, organizado pelo escritório regional da OMS para o sudeste da Ásia.

    • 17 a 18/08 – “One Earth One Health – Advantage Healthcare India 2023”, organizado pelo governo da Índia em associação com a Federação Indiana da Câmara do Comércio e da Indústria (FICCI).

    • 17 a 18/08 – “WHO Tradicional Medicine Global Summit, 2023: Towards health and well-being for all”, organizado pela OMS e co-hospedado pelo governo da Índia.

    • 17 a 19/08 – “India MedTech Expo 2023”, organizado pelo Ministério de Químicos e Fertilizantes do governo da Índia em associação com a Federação Indiana da Câmara do Comércio e da Indústria (FICCI).

O artigo focará nas reuniões oficiais do G20. Caso o leitor queira se aprofundar nos eventos paralelos, é possível encontrar os links dos eventos nas notas de rodapé.

Além dos 20 países membros do G20, a Índia convidou os outros países para participar das reuniões do G20: Bangladesh, Egito, Ilhas Maurício, Holanda, Nigéria, Omã, Singapura, Espanha e Emirados Árabes Unidos; bem como, 28 organizações internacionais, a exemplo de OMS, Fórum Econômico Mundial, DNDI, GAVI, PATH, FIND, Welcome Trust, OCDE, União Africana e outras. Foram um total de 158 delegados que participaram e deliberaram sobre várias prioridades no setor de saúde, entre 16 e 19 de agosto de 2023, na cidade de Gandhinagar.

A trajetória para a construção da Declaração dos Ministros da Saúde, ilustrada pela Figura 1, foi longa, intensa e enfrentou uma série de desafios para o alcance do tão desejado consenso entre os membros. O principal deles foi a questão geopolítica da guerra da Ucrânia, a qual será abordada mais adiante.

O Draft da declaração dos ministros da saúde começou a ser elaborado/negociado (Draft 0) quando da segunda reunião do Grupo de Trabalho da Saúde (GT SAÚDE) que ocorreu de 17 a 19 de abril, sendo necessário mais 2 encontros presenciais, totalizando 4 encontros do GT SAÚDE, mais 8 reuniões virtuais para finalizar o texto da declaração. A Fiocruz participou da última reunião virtual (11/08) e do 4° GT SAÚDE em Gandhinagar (17/08), um dia antes do início da reunião dos ministros da saúde.

Como as questões polêmicas não se resolvem somente na mesa de negociação, seja presencial ou virtual, foram necessárias várias reuniões bilaterais para alinhar posicionamentos e buscar apoios para os pleitos dos países. A delegação brasileira, somente durante o período de 16 a 19/08, participou de 20 reuniões bilaterais com países membros, países convidados, e organizações internacionais.

Em algumas reuniões bilaterais, os países e organizações internacionais procuraram obter do Brasil informações sobre as orientações preliminares da presidência brasileira do G20 em 2024, seja para captar as prioridades na área da saúde que serão trabalhadas pelo Brasil, para prestar apoio ou para expressar a expectativa de participação no processo, em 2024, caso de países não-membros e organizações internacionais. Além disso, houve a negociação pontual de questões específicas que foram propostas por ou estavam sob reserva do Brasil.

Figura 1. Do Draft até a Declaração de Ministros da Saúde do G20

Fonte: Elaboração própria.

Especificamente sobre a Guerra na Ucrânia, conforme já publicado em outras edições do Cadernos CRIS, diversas reuniões ministeriais, em diversos espaços geopolíticos, não conseguiram incorporar o tema nas respectivas declarações pelos impasses que suscitava. Quando isso ocorre, é usual que seja publicado um “Resumo do Presidente” com um relato da discussão havida, sem o status de declaração.

Foi o caso da reunião em tela. Após longas negociações o impasse permanecia: de um lado, os países do G7 e a União Europeia insistiam numa manifestação contundente contra a Guerra na Ucrânia, e, de outro, Rússia e China alegavam que o G20 não é um fórum para tratar de questões geopolíticas. A presidência indiana propôs, então, um Outcome Document, que contém os consensos alcançados, e um parágrafo referente à Guerra na Ucrânia, considerado um ‘Resumo do Presidente’ (Chair’s Summary), que também inclui uma nota de rodapé, com a posição de Rússia e China sobre o assunto.

Em relação à discussão geopolítica sobre a guerra da Ucrânia, o Brasil se manteve neutro. Além disso, não levantou temas que estavam ausentes da versão oferecida à discussão na reunião, como saúde de povos indígenas, migrantes, refugiados e de outras populações vulnerabilizadas. As reuniões sobre saúde no G20 poderiam ter sido utilizadas para marcar o protagonismo do Brasil na discussão sobre saúde de populações indígenas, iniciado na 76ª Assembleia Mundial da saúde, quando o Brasil, aliado a outros países, apresentou a resolução WHA76.16 (The Health of Indiginous People). Não houve menções a migrantes, refugiados ou indígenas na Declaração, como será evidenciado na segunda parte deste artigo. Consideramos imprescindível que o Brasil se posicione sobre estas questões candentes no mundo contemporâneo durante sua presidência do Grupo.

Os posicionamentos do governo brasileiro nas reuniões do G20 em Gandhinagar foram pautados pela busca de (i) equidade nos sistemas de saúde e de (ii) processos decisórios na saúde global mais inclusivos e participativos para os países de baixa e média renda (LMICs da sigla em inglês). Além disso, foram estabelecidas ou fortalecidas conexões bilaterais muito profícuas, no que tange a busca de apoio para a presidência do grupo em 2024.

A delegação brasileira atuou de forma bastante consistente nas três reuniões oficiais do G20 realizadas no período. Foi chefiada pela ministra da saúde, Nísia Trindade, tendo o embaixador Alexandre Ghisleni (Chefe da AISA/MS) atuado como ponto focal do Brasil nas negociações finais da declaração de ministros da saúde. A secretária Ana Estela Haddad (Secretaria de Saúde Digital) e o secretário Carlos Gadelha (Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Complexo da Saúde) também participaram da reunião ministerial. Na reunião conjunta entre finanças e saúde, houve a participação do Ministro da Fazenda do Brasil, Fernando Haddad, por videochamada.

Nesta reunião, os Ministros das Finanças e da Saúde do G20 concordaram no reforço contínuo da arquitetura global da saúde para a prevenção, preparação e resposta a pandemias (PPR), por meio de uma colaboração reforçada entre os Ministérios das Finanças e da Saúde. Além disso, falaram sobre o Framework para Vulnerabilidades e Riscos Econômicos (FEVR), sobre o Relatório sobre Mapeamento de Opções e Lacunas de Financiamento da Resposta à Pandemia e sobre o Relatório sobre Melhores Práticas em Arranjos Institucionais de Finanças e Saúde durante a Covid-19. Não houve uma declaração conjunta dos ministros, somente, a publicação de um comunicado da presidência indiana sobre a reunião.

Em relação às prioridades de saúde que serão abordadas pela presidência brasileira do G20 em 2024, motivo de indagações dos países e organizações internacionais durante as reuniões bilaterais, a ministra da saúde brasileira, tanto em seus discursos quanto nas próprias reuniões bilaterais, indicou preliminarmente quatro grandes temas:

  • Preparação, prevenção e resposta a emergências de saúde pública

  • Cobertura universal de saúde

  • Saúde digital

  • Mudança climática e saúde

A análise da Declaração dos Ministros da Saúde do G20, a seguir, será feita com base nesses temas elencados pela ministra da saúde brasileira, de modo a gerar proposições para a discussão sobre os temas de saúde para a presidência do Brasil em 2024.

A Declaração dos Ministros da Saúde do G20 de 2023 (G20 SECRETARIAT, 2023c) contém 3.422 palavras (dentre 988 palavras diferentes, desconsiderando artigos, preposições etc.), que estão distribuídas em 25 parágrafos, sendo:

  • Os 3 primeiros parágrafos (1°, 2° e 3°) introdutórios;

  • O 4° parágrafo sobre a Força Tarefa conjunta entre saúde e finanças (JFHTF);

  • O 5° parágrafo sobre os temas discutidos pela presidência indiana em eventos paralelos, como: tuberculose, mudança climática e saúde, hipertensão e diabetes, segurança alimentar e nutrição e bem-estar dos jovens e dos adolescentes.

  • O 6° parágrafo reafirmando o papel central e de coordenação da OMS na arquitetura global em saúde.

  • O parágrafo 22 sobre a questão geopolítica da Guerra da Ucrânia (o qual é considerado como Chair’s Summary)

  • Os 3 últimos parágrafos (23°, 24° e 25°) de considerações finais/agradecimentos; e 

  • Os 15 restantes sobre as prioridades em saúde definidas pela Índia, a saber: 

    • Prevenção, Preparação e Resposta [PPR] a emergências em saúde (com foco na abordagem Saúde Única e na resistência antimicrobiana [AMR]) - 6 parágrafos (7 a 12)

    • Fortalecendo a cooperação com o setor farmacêutico com foco na disponibilidade e no acesso a contramedidas médicas (vacinas, terapêuticos e diagnósticos) seguras, eficazes, de qualidade e acessíveis - 5 parágrafos (13 a 17)

    • Inovação em Saúde Digital e soluções para suportar a Cobertura Universal em Saúde e para melhorar a entrega de serviços em saúde - 4 parágrafos (18 a 21)

Antes de fazer a análise inferencial focada nos quatro temas indicados como prioritários pela ministra da saúde do Brasil, faz-se necessário analisar brevemente a declaração segundo as prioridades definidas pela Índia, a saber:

  • Prevenção, Preparação e Resposta [PPR] a emergências em saúde (com foco na abordagem Saúde Única e na resistência antimicrobiana [AMR])

    • A presidência indiana conseguiu, em conjunto com a OMS, lançar o primeiro summit sobre Medicina Tradicional e Complementar (T&CM) e, após alinhamento com a China, conseguiu incluir um parágrafo sobre T&CM na declaração.

    • O parágrafo sobre AMR está bastante completo na perspectiva conceitual e, apesar de não lançar nenhuma iniciativa nova, traz ações concretas, pelas quais os membros do G20 podem demonstrar o seu compromisso no combate à resistência antimicrobiana, por meio da abordagem da Saúde Única. O parágrafo também trouxe uma menção importante ao UNGA High Level Meeting sobre AMR que ocorrerá em setembro/2024, ao qual o Brasil deverá estar atento, pois ocorrerá durante a presidência brasileira do G20.

    • Mais ainda, destacou que estão sendo negociadas, por meio do INB (Órgão de Negociação Intergovernamental), uma convenção, acordo ou outro instrumento internacional da OMS sobre PPR pandêmico e provisões para AMR no âmbito do WHO CA+ 

  • Fortalecendo a cooperação com o setor farmacêutico com foco na disponibilidade e no acesso a contramedidas médicas (vacinas, terapêuticos e diagnósticos) seguras, eficazes, de qualidade e acessíveis

    • A criação de um mecanismo interino de coordenação de contramedidas médicas sob a tutela da OMS, por meio de um processo inclusivo e considerando arranjos para a tomada de decisão inclusivos que considerem a representação efetiva dos LMICs. A inclusão da representação efetiva dos LMICs neste mecanismo ocorreu por sugestão e defesa do Brasil.

    • Os membros de G20 se comprometeram a finalização bem-sucedida do INB e do WGIHR (Grupo de Trabalho sobre o Regulamento Sanitário Internacional). Tal compromisso foi sugerido pelo Brasil com o objetivo de assegurar a inclusão e representatividade de LMICs, com base na preocupação de que o INB e o WGIHR pudessem ser esvaziados após a criação do mecanismo interino de coordenação de contramedidas médicas, uma vez que a negociação no INB é inclusiva e considera a representação de todas as regiões do mundo.

  • Inovação em Saúde Digital e soluções para suportar a Cobertura Universal em Saúde e para melhorar a entrega de serviços em saúde

    • Lançamento da Iniciativa Global em Saúde Digital estabelecida pela OMS em parceria com a Índia, que pode colaborar para (i) reduzir a fragmentação, (ii) fornecer convergência das iniciativas em saúde digital com fundos voluntários, inclusive por meio da promoção de fonte aberta interoperável e de padrões abertos de soluções digitais, como definido na Estratégia Global em Saúde Digital da OMS 2020-2025, (iii) coordenar o trabalho com os esforços existentes de organizações multinacionais, e (iv) promover um repositório de soluções em saúde digital com qualidade assegurada.

Encontra-se, a seguir a análise inferencial da declaração com base nos 4 temas elencados pelo governo brasileiro como temas prioritários:

  • Preparação, prevenção e resposta a emergências de saúde pública

A presidência indiana tratou o tema de PPR junto com One Health e AMR. De certa forma, esta aglutinação faz sentido, tendo em vista que a abordagem Saúde Única está relacionada com a parte de prevenção do PPR. Já o enfoque brasileiro no tema de PPR deve se direcionar para a preparação (desenvolvimento do Complexo Econômico e Industrial da Saúde [CEIS]) e resposta (produção local de contramedidas médicas), considerando a força que o Brasil tem nas políticas públicas de produção local que fomentam o estabelecimento de parcerias público-privado, por meio de diversos arranjos, a fim de desenvolver o CEIS.

Portanto, o Brasil deve dar continuidade nas discussões sobre o mecanismo interino de coordenação de contramedidas médicas, bem como no seu esforço de garantir que seja um mecanismo participativo e inclusivo.

  • Cobertura Universal de Saúde (UHC)

A declaração não fala muito sobre o conceito de UHC ou quais iniciativas seriam necessárias para que os membros do G20 alcancem o UHC. A menção a UHC que dá algumas pistas sobre o conceito de UHC utilizado é a seguinte: “Reconhecemos também a importância de integrar uma perspectiva de gênero ao conceber sistemas de saúde, considerando as necessidades específicas das mulheres e meninas, com vistas a alcançar a equidade de gênero nos sistemas de saúde. Isto facilitaria alcançar a Cobertura Universal de Saúde (UHC), com o objetivo de fortalecer a atenção primária e melhorar os serviços essenciais de saúde e os sistemas de saúde para níveis melhores do que os anteriores à pandemia, idealmente dentro dos próximos dois a três anos, e as metas relacionadas à saúde da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável e seus objetivos, bem como, a Agenda de Ação da UHC.”

Interessante notar que, apesar dos esforços no estabelecimento de uma meta para retorno dos níveis de atenção primária anteriores ao da pandemia de COVID-19, essa meta parece mais retórica do que algo concreto a se medir e alcançar, justamente porque “níveis anteriores à pandemia” é muito vago e algo difícil de mensurar. Além disso, o texto dá a entender que a UCH está somente no fortalecimento/melhoria da atenção primária, sem trazer um contexto amplo de promoção da universalidade, equidade e integralidade.

A declaração não faz nenhuma menção a migrantes, refugiados, indígenas e populações de baixa renda, apesar de mencionar populações vulnerabilizadas de maneira geral na seguinte frase no segundo parágrafo: “Afirmamos que a necessidade do momento é convergir, consolidar e criar um futuro mais saudável, bem como, a importância de fortalecer os sistemas nacionais de saúde, inclusive através do envolvimento efetivo da comunidade e do princípio subjacente de “Não deixar ninguém para trás” e considerando as populações vulneráveis que vivem em configurações afetadas por crises.

O tema ‘migrações / migrantes / refugiados’ é bastante polêmico, com diferentes interesses entre os países. Foi possível observar durante as reuniões do GT SAÚDE o quão é difícil conseguir consenso entre os países mesmo sobre questões menos polêmicas. Talvez seja esse o motivo que inviabiliza mencionar algo concreto sobre a saúde de migrantes e refugiados. É fundamental que o Brasil consiga encontrar uma forma de superar essa dificuldade para abordar essa questão durante as negociações da declaração de ministros da saúde em 2024.

Entretanto, falar sobre saúde de povos indígenas não parece ser tão polêmico, tendo em vista a aprovação da Resolução WHA76.16 (The Health of Indiginous People) na última 76ª Assembleia Mundial da Saúde. Assim como, a menção a populações de baixa renda, no âmbito das populações vulnerabilizadas, parece ser menos complicado que a menção a migrantes e refugiados, já que abordar as necessidades de saúde de populações de baixa renda seria muito menos polêmico que abordar a inclusão e a participação na tomada de decisão de LMICs em processos decisórios internacionais. No caso concreto desta declaração em análise, o próprio governo brasileiro, durante as negociações, conseguiu propor uma redação que chegasse ao consenso no que tange a inclusão de LMICs no mecanismo interino de contramedidas médicas, mesmo que essa questão tenha demandado muitas horas de discussão.

Portanto, não só é necessário abordar a saúde destas populações vulnerabilizadas como parece haver espaço para a discussão, considerando a habilidade diplomática do governo brasileiro, apesar da polêmica que envolve o tema da migração e refúgio.

  • Saúde Digital

Os aspectos sobre a saúde digital já foram abordados acima quando da análise das prioridades estabelecidas pela presidência indiana do G20.

Cabe destacar que o Brasil deve encarar a saúde digital como transversal às outras prioridades uma vez que ela pode ter impactos positivos na PPR, na UHC e na discussão sobre mudança climática e saúde, conforme fica evidenciado pelo próprio texto da declaração: ”nós percebemos a importância da saúde digital e da modernização dos dados de saúde para o fortalecimento dos sistemas de saúde e na melhoria dos serviços de saúde, incluindo imunização de rotina, saúde mental, nutrição e serviços de saúde sexuais e reprodutivos que sejam acessíveis e equitativos para todos. A saúde digital é importante para um melhor sistema de saúde e pode apoiar a criação de registros eletrônicos de saúde baseados em padrões, permitir vigilância da saúde pública quase em tempo real, atendimento personalizado, melhorar a qualidade do atendimento através de sistemas de apoio à decisão clínica, permitem a continuidade do cuidado, facilitam a autogestão de saúde pelos pacientes.”

  • Mudança climática e saúde

O tema foi tratado de maneira indireta no âmbito da prioridade sobre PPR e One Health. Os ministros e ministras da saúde congratularam o trabalho da Rede Internacional de Vigilância de Patógenos (IPSN), da qual a Fiocruz faz parte, e da oportunidade de trabalhar em estreita colaboração com o Centro de Inteligência sobre Pandemias e Epidemias da OMS e seu esforço para expandir globalmente as comunidades de prática, e para estabelecer programas de intercâmbio de conhecimento que disseminam e compartilham boas práticas. Congratularam, também, a liderança técnica e o papel norteador da Quadripartite (OMS, FAO, OMSA e PNUMA) na promoção de PPR de emergências de saúde, orientados pelo Plano de Ação Conjunto da Saúde Única (2022-2026).

É preciso que o governo brasileiro avance mais na discussão com propostas concretas de como lidar e/ou mitigar os impactos das mudanças climáticas na saúde das populações.

A presente análise não tem a pretensão de esgotar todos os pontos discutidos na declaração de ministros da saúde do G20 em 2023, mas, por meio do seu desenho metodológico, visou a levantar informações qualificadas e críticas para subsidiar o governo brasileiro no seu esforço de preparação e organização das discussões sobre saúde no G20 durante a presidência do Brasil em 2024.

Recomendações

Considerando os achados acima, recomenda-se que o governo brasileiro, em seu esforço para planejar, organizar e conduzir as discussões sobre saúde no G20, durante sua presidência em 2024:

  1. Seja norteado pela busca da equidade e solidariedade, ao mesmo tempo em que se utilize a Saúde Digital e o Planejamento Estratégico como elementos instrumentais transversais às prioridades elencadas.

  2. Alinhe as prioridades em saúde elencadas pelo Brasil no G20 com as agendas da saúde global da OMS, que pode ser acessada e conhecida revisitando as políticas vigentes e as resoluções aprovadas nas últimas Assembleias Mundiais da Saúde. 

  3. Aborde de maneira direta o tema “saúde de populações vulnerabilizadas” (migrantes, refugiados, povos indígenas, grupos étnicos marginalizados, populações de baixa renda, mulheres e crianças, idosos dentre outras), já que não houve compromissos relacionados a este tema nas declarações de ministros da saúde e na declaração de líderes dos anos anteriores. Especialmente sobre saúde de povos indígenas, visando manter o protagonismo do Brasil nessa temática, iniciado na 76ª Assembleia Mundial da Saúde com a apresentação pelo Brasil da Resolução WHA76.16 (The Health of Indiginous People) e sua aprovação. 

  4. Trate a Cobertura Universal em Saúde (UHC) como Saúde Universal sob a perspectiva da saúde coletiva e do fortalecimento de sistemas públicos universais, equitativos, integrais e de qualidade (perspectiva de direitos humanos).

  5. Proponha pelo menos uma iniciativa concreta, que tenha efeitos práticos, para cada prioridade em saúde elencada.

  6. Discuta as guerras como fenômenos que atentam contra a vida e dignidade humana, mencionando não somente a Guerra da Ucrânia, caso ainda esteja acontecendo, mas as demais guerras e conflitos bélicos que estiverem ocorrendo no mundo. É preciso que o G20 se posicione veemente contra guerras e a favor da paz.

  7. Fique atento às Call to Action em saúde feitas durante a presidência da Índia para organizar eventos paralelos e discussões de alto nível (no âmbito do T20 ou do governo) relacionadas às mesmas, a exemplo de:

    1. Continuar a discussão sobre o mecanismo de contramedidas médicas.

    2. Aprofundar a discussão sobre AMR, considerando o UNGA High Level meeting sobre AMR.

    3. Dar continuidade à Iniciativa Global em Saúde Digital estabelecida pela OMS em parceria com a Índia.

 

*João Miguel Estephanio, assessor especial da presidência da Fiocruz e pesquisador do Cris- Fiocruz;
Pedro Burger, coordenador adjunto do Cris e
Paulo Buss, coordenador geral do Cris

 

Referências

AITH, F.; FREITAS, R. DE; ESTEPHANIO, J. M. La révision du règlement sanitaire international (RSI) au G20. Journal de Droit de la Santé et de l’Assurance Maladie, v. 37, p. 173–177, 2023. 

BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2016. 

G20 SECRETARIAT. About G20G20 INDIA. [s.l: s.n.]. Disponível em: <https://www.g20.org/en/about-g20/#members>. Acesso em: 24 ago. 2023a.

G20 SECRETARIAT. G20 - Background Brief. [s.l: s.n.]. 

G20 SECRETARIAT. G20 Health Minister’s Meeting Outcome Document & Chair’s Summary. Gandhinagar: [s.n.].