Saúde como oportunidade de desenvolvimento, inovação, geração de empregos e garantia de bem-estar
Se a grave crise sanitária, por um lado, revelou situações dramáticas, como o desigual acesso dos países às vacinas, por outro, “mostrou que a saúde, por sua importância, pode nos ajudar a repensar um novo padrão de desenvolvimento”, destacou o economista Carlos Gadelha, coordenador do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz, no webinário Desenvolvimento, saúde e mudança estrutural, promovido pelo Centro Internacional Celso Furtado, em 05/07/2021. “A pandemia inaugurou um novo tempo no qual torna-se explícita a necessidade de construção de alternativas para o futuro”, alertou Gadelha, que dividiu a mesa com os pesquisadores José Cassiolato, do Instituto de Economia da UFRJ, e Denis Gimenez, do Instituto de Economia da Unicamp, com mediação de Wilson Vieira (UFRJ).
Eles compõem uma rede que conecta 35 pesquisadores de dez instituições científicas, em torno do projeto de pesquisa Desenvolvimento, Saúde e Mudança Estrutural: o Complexo Econômico-Industrial da Saúde 4.0 no contexto da Covid-19, sob a coordenação de Gadelha. O projeto teve seus primeiros resultados publicados em março, por meio de uma parceria firmada com o Centro Internacional Celso Furtado, que dedicou ao tema uma edição inteira da revista Cadernos do Desenvolvimento (nº 28).
“O que estamos assistindo hoje no mundo é uma barbárie, 75% das doses de vacinas administradas serem concentradas em apenas dez países”, apontou Carlos Gadelha. Em sua opinião, o acesso diferenciado às vacinas, durante a pandemia, “é apenas a ponta de um iceberg”, no que se refere à situação da saúde no mundo, e reflete o aprofundamento de tendências estruturais globais que vêm sendo amadurecidas desde os anos 1980. Trata-se de “frutos da disfuncionalidade do sistema econômico mundial, que levou, por exemplo, a inequidade a piorar no mundo em mais de 30%, em um ano, e a riqueza ficar retida em 1% da população”, como observou o pesquisador. “Estamos colhendo o que ocorreu com a desregulamentação dos mercados, a dimensão financeira dominando a dimensão produtiva, de inovação e de geração de empregos qualificados”, considerou.
Estamos pensando em um projeto de desenvolvimento nacional que alie inovação, bem-estar, equidade, sustentabilidade ambiental e democracia (Carlos Gadelha)
As análises reunidas na edição especial sobre o Complexo Econômico e Industrial da Saúde (Ceis), no contexto da transformação tecnológica trazida no bojo da revolução 4.0, de acordo com Gadelha, têm como foco o modo como essa transformação está ocorrendo e seus dilemas. Em 12 capítulos, com ensaio introdutório do professor da Unicamp Luiz Gonzaga Belluzzo e apresentação da presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima, as contribuições científicas repensam o espaço econômico da saúde – o Complexo Econômico Industrial –, e “politizam a saúde como um espaço central para viabilizar um projeto humanitário, de cooperação social e coletivo, e de sustentabilidade ambiental”. Dessa forma, apresentam “uma nova visão de mundo, alternativa ao que a pobre teoria econômica vinha nos dando até recentemente”, conforme definiu Gadelha.
Tal visão considera a saúde e o bem estar oportunidades de desenvolvimento e requer, segundo Gadelha, articulação da dimensão econômica, social, ambiental, de Estado, das finanças públicas e da macroeconomia. “Estamos pensando em um projeto de desenvolvimento nacional que alie inovação, bem-estar, equidade, sustentabilidade ambiental e democracia”, ressaltou, enfatizando que todas essas dimensões do desenvolvimento são discutidas tendo como base de reflexão a saúde.
Em referência, ainda, à publicação, Gadelha observou tratar-se de “um encontro simbólico entre Celso Furtado e Sergio Arouca”. A partir dele, explicou, foi pensada a “superação dos bloqueios estruturais, da inovação, do desenvolvimento econômico, da relação centro-periferia, da reconstrução de um Estado com capacidade de planejamento e execução de políticas públicas”, marcas de Celso Furtado, e “um encontro com toda a tradição da saúde pública, que permitiu a criação do Sistema Único de Saúde, um sistema universal e não um sistema para pobres”.
O pesquisador disse esperar que o encontro entre o pensamento de Furtado e Arouca sirva como convite para que economistas e teóricos do desenvolvimento façam “um esforço de articulação disciplinar, transdisciplinar e interinstitucional” para repensar um novo projeto de país. Esse projeto deve se basear em uma proposta inovadora de desenvolvimento, que considere não apenas sua dimensão econômica e ofereça uma nova inserção do país no cenário internacional.
Tanto do ponto de vista governamental, quanto da sociedade civil e do setor privado, jamais se falou em gerarmos tecnologias, como se fosse ‘coisa de cachorro grande’ (José Cassiolato)
O pesquisador José Cassiolato destacou a sobreposição da “crise aguda” trazida pela pandemia de Covid-19, a uma “crise crônica” gerada pelo capitalismo nos últimos quarenta anos, com aprofundamento do neoliberalismo em escala global, “que levou a economia mundial a situações desesperadoras”. Conforme assinalou o pesquisador, no entanto, reforçando a análise de Carlos Gadelha, a pandemia também revela possibilidades, que se abrem ao se contar com uma economia e uma sociedade mais bem estruturadas e “uso inteligente” das tecnologias da indústria 4.0.
“O debate no Brasil sobre a indústria 4.0 era pobre, porque nos colocava passivamente frente às possibilidades trazidas pela tecnologia, limitando-nos a adotar essa tecnologia, em vez de produzi-la. Tanto do ponto de vista governamental, quanto da sociedade civil e do setor privado, jamais se falou em gerarmos essas tecnologias, como se fosse coisa de cachorro grande”. Para Cassiolato, “a pandemia nos mostra quão possível isso é, tanto do ponto de vista técnico, quanto do ponto de vista econômico”.
Cassiolato destacou alguns pontos da obra de Celso Furtado, que orientam o trabalho do grupo de pesquisa. O primeiro deles refere-se à importância de qualquer processo de desenvolvimento estar centrado nas necessidades de transformação social, pensando-se de forma sistêmica e olhando-se as questões que mais afligem a sociedade. E dá um exemplo: “Se vamos pensar em um processo de desenvolvimento e repensar a estrutura produtiva brasileira, não iremos pensar em como será a nova política para a indústria automobilística. Esqueçamos a indústria automobilística ou a forma tradicional de olharmos a estrutura produtiva, a partir de uma abordagem restrita e setorial. Vamos pensar na resolução dos problemas nacionais”, explicou. “Isso está voltando – ainda bem – ao centro do debate atual e é objeto de preocupação de vários de nós”.
Outro ponto citado pelo pesquisador diz respeito à discussão sobre dependência tecnológica e à antiga ideia de se considerar que, uma vez que já há avanço tecnológico em algumas regiões do planeta, não seria necessário redescobrir a roda. “Ainda bem que os chineses não entraram nessa bobagem; costumo dizer que os chineses talvez tenham lido Celso Furtado melhor que nós mesmos”, considerou, lembrando que todo o processo de desenvolvimento da China nos últimos quarenta anos calca-se na endogeneização do progresso técnico mundial. “Às vezes, é reinventar a roda, sim, porque você aprende a debulhar os problemas e a se organizar para desenvolver suas atividades produtivas voltadas ao desenvolvimento social”, defendeu.
Cassiolato citou, ainda, também a partir de Celso Furtado, a importância de se trazerem as especificidades do território para o centro de mudanças estruturais e das políticas públicas voltadas ao desenvolvimento. “Celso Furtado sempre destacou que o território é importante para o país. Não podemos pensar em soluções nacionais – e, às vezes, é difícil pensar até em soluções regionais. Cada território tem questões específicas que exigem soluções diferenciadas, que são possibilitadas pela funcionalidade e economicidade da tecnologia da indústria 4.0”, considerou, lembrando que “temos que continuar lutando contra essa atitude neoliberal de achar que o mundo pode continuar sendo o que foi nos últimos quarenta anos”.
A saúde neste momento é espaço de geração de bons empregos no Brasil (Denis Gimenez)
Denis Gimenez trouxe para o debate as relações estabelecidas no mundo do trabalho pensadas a partir das formulações do Complexo Econômico e Industrial da Saúde, apontado pelo pesquisador como espaço privilegiado de geração de empregos no país. “Um dos principais problemas do mundo contemporâneo é o mercado de trabalho e possibilidades de geração de emprego e renda”, destacou, trazendo dados relacionados ao Ceis, obtidos em seu grupo de pesquisa, a partir dos dados da Pnad [Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios] do IBGE: “Em 2019, tínhamos aproximadamente 8,7 milhões de ocupados no Ceis – quase 10% da população ocupada do país naquele ano”, apontou. “Se chegamos em 2019, pelos dados da Pnad, a esses 8,7 milhões, no período 2012-2019, a população ocupada no Ceis cresceu 33,9%, contra 6% da população ocupada em geral”, contabilizou, observando que, mesmo antes da pandemia, portanto, esse crescimento foi muito superior ao da ocupação no mercado de trabalho em geral.
Ainda no que diz respeito ao mundo do trabalho, Denis destacou a expansão de serviços em saúde cada vez mais sofisticados, já na atenção básica, que dependem de uma base produtiva forte. “A sofisticação da atenção à saúde no mundo contemporâneo é espaço de novas áreas de atividade”, afirmou. “Do ponto de vista do emprego, o avanço da estrutura produtiva em saúde abre possibilidades de suporte a um serviço que se propõe universal. Tudo indica que são crescentes os imperativos tecnológicos, de sofisticação dos serviços, para que sejam mantidas atividades básicas e as mais complexas”.
Em relação a esse cenário, Denis lembrou, ainda, que de 2008 a 2018, nos Estados Unidos, cerca de 45% dos empregos foram gerados em educação, saúde e assistência social, sendo que 2/3 em saúde. “A saúde neste momento é espaço de geração de bons empregos no Brasil”, afirmou. “O que vimos no Ceis, do ponto de vista do mundo do trabalho, são oportunidades de atividade econômica e espaço de expansão de empregos de boa qualidade, em todo território nacional, uma vez que é essa a abrangência do SUS”.
Para Denis, o Ceis, nesse sentido, é também um espaço de enfrentamento de desigualdades regionais e de homogeneização de um mercado de trabalho “marcado por traços profundos do nosso subdesenvolvimento”. E resumiu: “O Ceis é uma proxy de oportunidades produtivas, tecnológicas, financeiras, de política pública e de organização do Estado brasileiro. E talvez o grande espaço para pensarmos a retomada de um projeto de desenvolvimento nacional”.