SOS-ODS: o plano de resgate das Nações Unidas para a Agenda 2030
A meio do caminho do prazo final acordado pelos líderes mundiais para a transformação global rumo ao desenvolvimento sustentável, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, apresenta um relatório de progresso como subsídio à reunião do High Level Political Forum (HLPF) que se realizará em julho de 2023, sob os auspícios do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (Ecosoc), e as notícias não são animadoras.
Em 2015, quando se substituiu a Agenda do Milênio por um novo conjunto de objetivos e metas – os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs) –, a esperança era grande. Construída mais democraticamente do que o primeiro acordo, com visão mais abrangente e ambiciosa, tendo a intersetorialidade e a parceria global como princípios orientadores, a Agenda 2030 prometia não deixar ninguém para trás – nem as pessoas, nem o planeta. Contudo, faltando sete anos para o final do prazo definido, estamos em retrocesso. Segundo o relatório que será apreciado pelo HLPF, nos cinco primeiros anos que se seguiram ao acordo, foram feitos progressos em diversas áreas, contudo, a pandemia de Covid-19, a guerra na Europa e as crescentes consequências de eventos climáticos extremos em diversas partes do mundo vêm colocando os objetivos em marcha ré. É interessante notar que essa retórica, adotada também por outras instituições das Nações Unidas, apesar de verdadeira, ignora as fragilidades estruturais de um sistema internacional injusto e debitando excessivamente nas crises sistêmicas – eventos externos – a responsabilidade pelas dificuldades experimentadas até o momento.
Segundo o documento, apenas um terço dos países atingirá a meta de reduzir pela metade a pobreza; o mundo está de volta a fome com taxas compatíveis a 2005 e lidando com a inflação dos alimentos em patamares mais altos que no período de 2015-2019; até 2030, estima-se que 84 milhões de crianças estarão fora da escola e 300 milhões de crianças ou jovens escolares não conseguirão ler ou escrever; o dióxido de carbono continua a subir níveis não vistos em 2 milhões de anos; cerca de 660 milhões de pessoas permanecem sem eletricidade e cerca de 2 bilhões continuam a depender de combustíveis e tecnologias poluentes para cozinhar; ao mesmo tempo em que milhares de espécies seguem ameaçadas de extinção. Até agora, projeto falhou e, novamente, os mais pobres são os que sofrem as piores consequências.
Contudo, o ponto forte do relatório é apresentar cinco recomendações que ensejam novos acordos:
Na primeira, o documento reconhece que é preciso um compromisso único desta geração para revisar as bases do sistema financeiro e econômico internacional de modo que responda aos atuais desafios. Seria necessário revisitar o tratado de Bretton Woods e corrigir as injustiças históricas no núcleo do sistema financeiro internacional, para dar aos países mais vulneráveis uma chance justa de um futuro melhor, encorajando os Estados Membros a adotarem uma Declaração Política ambiciosa voltada para o futuro. Dito de outra forma, os países em desenvolvimento precisam estar em condições de: sanar suas dívidas, desvencilhando-se do alto serviço da dívida e os riscos de sobre-endividamento que drenam os recursos para a implementação da Agenda 2030.
A segunda recomendação apela aos governos para que promovam ações concretas, integradas e direcionadas para erradicar a pobreza, reduzir a desigualdade, promover economias verdes e acabar com a guerra contra natureza, capacitar os mais vulneráveis e criar empregos decentes, com foco particular no avanço dos direitos das mulheres e meninas. Faz um alerta geral para que os governos sigam o caminho dos ODS, com especial atenção para a adoção da Agenda de Aceleração do Clima, promovendo uma transformação justa e segura.
A terceira recomendação refere-se à governança, visando o fortalecimento da capacidade nacional e subnacional de instituições públicas para acelerar o progresso dos ODS. Ampliar o orçamento, melhorar o planejamento e os mecanismos de controle voltados para a implementação da Agenda nos níveis nacionais e locais.
Em quarto, está o alerta para que se renovem o compromisso de cumprir a Agenda de Ação de Adis Abeba, garantindo o financiamento para os ODS. Para isso, o HLPF conclama os Estados Membros a aplicar US$ 500 bilhões por ano, até 2030. A quarta recomendação também reforça a primeira, advertindo para a necessidade de reformas profundas da arquitetura financeira internacional, como o financiamento: da transição energética, da resiliência climática, da economia inclusiva e do acesso universal à saúde.
Finalmente, a quinta recomendação proclama o fortalecimento do multilateralismo, em especial o sistema das Nações Unidas. O documento avalia que é importante fortalecer as representações nos países das diferentes agências e estruturas do sistema ONU e enumera algumas das agendas para as quais a Organização se volta nos diferentes níveis de sua atuação: ir além do PIB, fortalecer a cooperação digital, impulsionar a participação juvenil na tomada de decisões, transformar a educação, estabelecer uma plataforma de emergência e avançar uma nova agenda para paz.
O gráfico abaixo apresenta a performance global da Agenda de acordo com cada objetivo, ilustrando a crise na implementação apontada no relatório de maneira geral e a crise no tema da saúde em particular.
Está claro que o propósito de “Assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todos em todas as idades” está ameaçado e as soluções discutidas no documento apontam algumas perspectivas importantes. Uma delas é necessidade de se fortalecer os sistemas de saúde.
É eloquente que, a partir de 2022, 68 milhões de crianças que não cumpriram o esquema completo de vacinação e do aumento da tuberculose e da malária particularmente em países de baixa e média renda. O documento aponta a vulnerabilidade dos sistemas de saúde em países de baixa renda, a necessidade de uma saúde global mais robusta e de sistemas de segurança em saúde para prevenir e responder a futuras pandemias. Assim, destaca como premente uma antiga reivindicação de sanitaristas, acadêmicos e gestores que chamam atenção para a necessidade de se investir no fortalecimento dos sistemas de saúde, pugnando por intervenções na saúde global de caráter mais estruturante, inclusivo e equitativo. O documento também destaca um aumento na força de trabalho em saúde, mas com permanência de profundas desigualdades, persistindo a regra de “onde mais se precisa, menos se tem”. Segundo dados de 2014-2021, a África subsaariana continua a ter a menor densidade de profissionais de saúde, com apenas 2,3 médicos e 12,6 pessoal de enfermagem e obstetrícia por 10 mil habitantes, enquanto, a Europa e EUA apresentam respectivamente 39,4 médicos e 152 profissionais de enfermagem e obstetrícia por 10 mil habitantes.
Outros dados preocupantes são apontados:
- Entre 2015 e 2020, a taxa global de mortalidade materna apresentou um tímido declínio, i.e., de 227 mortes maternas por 100.000 nascidos vivos para 223, ainda mais de três vezes superior à meta prevista de 70 mortes maternas até 2030, onde países de renda média e baixa concentram 95% desses óbitos.
- Entre 2020 e 2021, a taxa de incidência de tuberculose aumentou 3,6%, revertendo a tendência de declínio de cerca de 2% ao ano nas duas décadas anteriores;
- Em 2021, foram estimados 247 milhões de casos de malária. Um aumento global em comparação com os 224 milhões estimados para 2015;
Alguns indicadores positivos são registrados, ainda que estejam longe da meta proposta na Agenda, como:
- Grande progresso na redução da taxa de novas infecções por HIV;
- Redução da taxa de mortalidade em crianças com menos de 5 anos;
- Entre 2015 e 2023, a proporção de mulheres em idade reprodutiva (15-49 anos) com acesso aos métodos contraceptivos modernos métodos aumentou ligeiramente de 76,5% para 77,6%. Dessa forma, as projeções dessa taxa para 2030, se alteraram para 78,2%.
Mesmo com o quadro geral preocupante, o texto oferece um vislumbre do caminho possível, desde 2015. Mostra o progresso em algumas áreas-chave, como energia e acesso à Internet; governos, empresas setor privado e o público em geral adotando os ODS como matriz discursiva e orientadora. É com base nesse potencial que o texto propõe aos líderes mundiais, na Cúpula dos ODS em setembro próximo, apresentando um Plano de Resgate para as Pessoas e o Planeta centrado em três grandes eixos:
• Equipar a governança e as instituições para uma gestão sustentável e transformação inclusiva;
• Priorizar políticas e investimentos que tenham efeitos multiplicadores em todas as metas.
• Garantir um aumento no financiamento dos ODS e um ambiente global propício para países em desenvolvimento.
Dentre essas linhas gerais, o documento reitera temas já tratados na Agenda 2030. Reafirma o caráter indivisível dos objetivos, a necessidade de apropriação pelos governos e iniciativa privada, de melhores mecanismos de prestação de contas. Contudo, dentre os temas importantes que merecem atenção está, por exemplo o alerta para o reforço dos sistemas de proteção social, tema que é tratado desde uma perspectiva da prevenção de crises e, mais importante, também desde a ótica dos direitos humanos. O documento aponta que a cobertura de proteção social muitas vezes deixa de fora aqueles que dela mais precisam, como trabalhadores informais, mulheres e pessoas com deficiências, principalmente em países de baixa renda, o que tende a agravar a desaceleração econômica global.
Outro tema importante é o financiamento para o desenvolvimento sustentável e a ideia do esgotamento do modelo de funcionamento das principais instituições do sistema financeiro internacional. A meio do caminho do prazo acordado na Agenda 2030, os países em desenvolvimento lutam para obter acesso equitativo ao mercado global em um sistema comercial onde o círculo virtuoso dos benefícios das novas tecnologias, frutos da ciência e da inovação, continuam a favorecer os países ricos ao passo em que um círculo vicioso de pobreza, subdesenvolvimento e exploração continua a ameaçar os pobres.
Como ressaltamos, é importante que os acordos e a mobilização em torno da Agenda 2030 sejam renovados e que se discuta meios de implementação. A Agenda 2030 como um pano de fundo para se reafirmar a importância de temas como o fortalecimento dos sistemas de saúde e de seguridade social e o enfrentamento da hegemonia do capital financeiro internacional nas relações internacionais é positivo, mas diante da situação atual onde se corre contra o tempo, os países precisam repactuar de forma efetiva seu compromisso com a implementação da Agenda. O alerta do Secretário-Geral é importante, mas ele precisa encontrar eco e mais contundência entre outras lideranças globais, especialmente por parte dos chefes de estado com maior capacidade de vocalização de uma agenda transformadora de desenvolvimento.
*Artigo publicado nos Cadernos Cris 09/2023, maio/junho, publicação do Centro de Relações Internacionais em Saúde da Fiocruz (Cris/Fiocruz).
Referências: