Revisão dos debates raciais para Agenda 2030: novo ODS 18?

Revisão dos debates raciais para Agenda 2030: novo ODS 18?

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Apesar da ampla cobertura dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) que compõem a Agenda 2030, áreas importantes não são abordadas ou são insuficientemente enfatizadas na atual estrutura. A partir dessa constatação e com base no Relatório de 2022 sobre formas contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerâncias relacionadas, produzido pela relatora especial das Nações Unidas E. Tendayi Achiume, os pesquisadores Ana Luisa Jorge Martins e Rômulo Paes de Sousa, da Fiocruz Minas, fazem uma detalhada análise do teor dos ODS enfatizando “uma superficialidade de compromisso com a justiça racial e igualdade” e apontando para a possibilidade de um 18º ODS voltado às questões raciais.

Conforme destacam, a discussão em torno de um possível 18º objetivo internacional ainda está em andamento e a decisão de adicioná-lo à Agenda 2030 implicaria um processo de negociações e consultas entre os Estados-membros da ONU, assim como com partes interessadas, incluindo sociedade civil, setor privado e academia. “A operacionalização de um novo Objetivo de Desenvolvimento Sustentável na Agenda 2030 requer um processo cuidadoso e deliberado”, observam.

“Primeiramente, deve-se definir o objetivo, as metas associadas e os indicadores para medir o progresso. Um ponto importante para a sua implementação se refere aos indicadores, que devem ser robustos, mensuráveis, universalmente aplicáveis, mas sensíveis ao contexto local”, apontam, observando que uma estrutura de governança forte e a garantia de que seja factível e alcançável dentro do tempo restante da Agenda 2030, bem como de recursos tecnológicos e humanos, são outras pré-condições para a implementação bem-sucedida de um novo ODS.

Uma das falhas mais críticas observadas, de acordo com o relatório 2022, escrevem, é a ausência de qualquer menção à Declaração e Programa de Ação de Durban[1] (2002), “que representa o plano de ação mais abrangente da Organização das Nações Unidas para combater o racismo e a intolerância relacionada”. O texto reconheceu que os afrodescendentes foram vítimas de escravidão, tráfico de escravos e colonialismo e continuam sendo vítimas de suas consequências. “Embora a Agenda 2030 tenha visto alguma reforma em seus objetivos e métodos de desenvolvimento, ela ainda preserva processos e condições que contribuem para o subdesenvolvimento e a violação sistêmica dos direitos humanos de grupos raciais e étnicos marginalizados”, registram os autores, citando Achiume.

Como exemplo, citam o ODS 10 (Redução das Desigualdades), que visa reduzir a desigualdade dentro e entre as nações, mas não menciona raça ou etnia em seus indicadores, “o que implica prioridade menor ou desconsideração pela desigualdade nessas bases”. Destacam, ainda, a “discrepância entre as metas e indicadores dos ODS”: enquanto as metas estabelecem resultados específicos usados ​​para medir a realização de objetivos individuais, os indicadores usados ​​para rastrear o progresso, muitas vezes, não fazem referência explícita à raça, etnia ou origem nacional.

O artigo aponta, ao mesmo tempo, que Achiume reconhece o “potencial inexplorado” da Agenda 2030 para avançar em âmbito internacional nos direitos humanos e nos princípios de igualdade racial e não discriminação. “No entanto, transformar esse potencial em realidade requer mais do que modificações superficiais. Exige interrupção fundamental dos paradigmas econômicos dominantes que exacerbam as violações sistêmicas dos direitos humanos e contribuem para a marginalização contínua de grupos raciais e étnicos desfavorecidos”, consideram.

Os autores destacam algumas das recomendações de Achiume para retificar as deficiências na Agenda 2030 em sua forma atual, no que diz respeito a combater a discriminação racial, como revisão do Quadro de Indicadores Globais dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, inserindo-se indicadores específicos desagregados por raça e etnia; incentivo a Estados-membros e instituições de desenvolvimento multilaterais a usar e institucionalizar as Diretrizes Operacionais sobre a Inclusão de Afrodescendentes, adotada em dezembro de 2020, na 26ª Sessão do Grupo de Trabalho de Especialistas em Afrodescendentes; identificação do racismo e da discriminação racial como impedimentos significativos ao desenvolvimento; planos de ação nacionais contra o racismo integrados aos compromissos da Agenda 2030; ratificação da Convenção nº 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais (1989); concessão às minorias raciais e étnicas e povos indígenas participação e controle em relação às iniciativas de desenvolvimento;

As recomendações da relatora incluem também colaborar com a secretaria da Década Internacional dos Afrodescendentes (2015-2024), declarada pelas Nações Unidas em 2013, e o Fórum Permanente de Afrodescendentes, em iniciativas de desenvolvimento e garantir que suas práticas econômicas, culturais, políticas, humanitárias e de desenvolvimento estejam alinhadas com a Declaração e Programa de Ação de Durban.

Os autores também apresentam suas recomendações, lembrando que 2024, além de ser o último ano da Década Internacional dos Afrodescendentes, demarca os 75 anos da criação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, uma “oportunidade para que a comunidade internacional realize um compromisso real de reforçarem seus esforços para implementar medidas que forneçam proteção contra o racismo, a discriminação racial, a xenofobia e a intolerância relacionada”.

Entre as recomendações, propõem: definição clara do novo objetivo do ODS, com metas associadas e indicadores robustos, mensuráveis e universalmente aplicáveis; cumprimento da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial e da Convenção nº 169 da OIT; coleta, divulgação, monitoramento e avaliação de dados estatísticos desagregados por raça e etnia para cada ODS; implementação das políticas públicas de combate à pobreza, levando em consideração as necessidades e realidades específicas dos afrodescendentes e demais diretamente afetados pelas desigualdades raciais; educação de qualidade acessível e disponível em áreas onde vivem esses grupos; políticas de inclusão no mercado de trabalho; medidas para melhorar o acesso dos afrodescendentes a serviços de saúde de qualidade; garantia de moradia segura e adequada para os diretamente afetados pelas desigualdades raciais; políticas e programas para proteger contra formas múltiplas, agravadas ou interseccionais de discriminação racial; e que as vozes dos afrodescendentes e demais afetados pelas desigualdades raciais sejam ouvidas e suas preocupações, atendidas.

Leia o artigo completo.

 

[1] Declaração e Plano de Ação de Durban: III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, Durban. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000126814