Reindustrialização e sustentabilidade em debate na PUC-Rio
Reindustrialização e sustentabilidade foram tema do debate O desenvolvimento que queremos: pautas para um presente urgente, o segundo da série Seminário da Graduação, da PUC-Rio, realizado em 11/5/2023. O evento, voltado aos alunos, teve a participação do secretário executivo do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz Antonio Ivo de Carvalho (CEE-Fiocruz), Marco Nascimento, que dividiu a mesa com o professor Carlos Corrêa, da Fundação Getúlio Vargas, e a professora Julia Torracca, do Instituto de Economia da UFRJ, com moderação de Sérgio Veloso, professor de Relações Internacionais da PUC-Rio.
Acesse a íntegra do seminário aqui.
“Discutir o tema da reindustrialização é, antes de tudo, um alívio, pois aponta para a superação da discussão quanto a se dever ou não reindustrializar”, observou Marco, iniciando sua exposição. “Estamos discutindo que tipo de reindustrialização será, entendendo, portanto, que haverá alguma. Isso é um salto cognitivo enorme, porque faz muito pouco tempo que ouvíamos frases como ‘a melhor política industrial é não ter política industrial’. Ministros da Fazenda, grandes autoridades internacionais diziam que potato chip e computer chip são a mesma coisa. E não são!”, considerou.
Para Marco, é preciso olhar para o passado e aprender, fazendo ajustes voltados às características e circunstâncias do cenário atual. “Estou aqui, em certa medida para conectar essa discussão com o papel que a saúde está desempenhando, hoje, em termos de produção e inovação, de criação de novas tecnologias”, destacou, apontando o CEE-Fiocruz e “a Fiocruz como um todo” como defensores de um novo caminho.
“A Fiocruz é exemplo de uma cadeia, que vai desde a formação – tem desde escola de ensino médio, até a produção de biotecnologia –, com um grande sistema de inovação verticalizado, com a percepção de que o conhecimento leva à capacidade de autonomia na produção de certos produtos estratégicos para sociedade”.
Ao falar de autonomia nacional, o secretário executivo do CEE citou o período da pandemia de Covid-19. “Quando estourou a pandemia, a América Latina era a região mais atrasada em produção de vacinas, mas graças a instituições públicas, como na Argentina e no Brasil, e a esse histórico de construção de capacidade estatal, conseguimos alcançar a vacina, e a Fiocruz e o Butantan são exemplos”, lembrou.
Para ele, a discussão sobre a reindustrialização é oportuna, “porque conecta a necessidade de reindustrializar com a chance de orientar essa industrialização às demandas da sociedade”.
Marco citou, também, a pesquisadora Mariana Mazzucato, referência na discussão acerca do papel do Estado, para abordar o conceito de políticas públicas orientadas por missões.
De acordo com o pesquisador, esse tipo de política orienta para a capacidade de resolução, diante de algum problema que uma instituição tenha, e “é preciso fazer a mesma coisa com a gestão do Estado: identificar o problema e orientar a resolução”.
Ao falar de investimento para a saúde, Marco alertou para forma como os recursos escoam do Brasil. “São quase 20 bilhões dólares em insumos para saúde que importamos por ano, o que corresponde quase ao próprio orçamento do Ministério da Saúde. O que gastamos com saúde vai lá para fora e nosso orçamento fica sempre comprometido. No longo prazo, isso será insustentável”.
Para Marco, diante desse cenário, a grande pergunta que fica é: “por que não direcionamos a obrigação de ter que gastar esse dinheiro, garantido constitucionalmente, à produção e à inovação dentro do país? Algo que garanta a soberania e a participação altiva do Brasil no sistema internacional de produtos para a saúde. Essa é a síntese da ideia do Complexo Econômico-Industrial da Saúde”, pontuou.
De modo a apontar a importância de um desenvolvimento pautado pela sustentabilidade, e afirmando que não há como “pensar em saúde, em longo prazo, de outra forma”, ele trouxe o exemplo da pandemia, que “tem um componente de agressão à sustentabilidade que é central”. “Foi a transmissão de um patógeno, que saiu de um mamífero e contaminou o ser humano. Isso tem a ver com perda de habitat, de diversidade, que são questões centrais para a sustentabilidade”.
No que diz respeito à soberania do Brasil e as estratégias de geopolítica diante de fenômenos globais como a pandemia de Covid-19, Marco destacou os aprendizados deixados pela emergência sanitária, lembrando como os países centrais, na busca por garantir autonomia interna, se fecharam e saíram na frente, com a capacidade de compra que tinham. “Temos a obrigação de aprender com a pandemia, mas sem cometer o erro de considerar que a pandemia foi boa. Foi horrível! Mas temos essa obrigação de tentar extrair o máximo de informação dessa experiência. E uma das coisas que vivemos foi o da acumulação de recursos, vendo os países centrais saindo na frente, com a capacidade de compra deles”, lembrou.
Marco citou também um estudo de uma universidade na Suíça que avaliou como as medidas protecionistas avançaram junto com a pandemia. “Saindo do Oriente para o Ocidente e, à medida que isso foi acontecendo, os países foram fechando as suas portas para saída de produtos de saúde, de modo a garantir a autonomia interna”, lembrou.
De acordo com o pesquisador, é previsível que, em meio a uma crise, as medidas de cooperação internacionais podem falhar e, nesse sentido, “precisamos nos dar o direito de expressar alguma autonomia e de termos, também, um sistema de defesa regional”.
Isso porque, conforme destacou, “não dá para contar com o caráter humanitário internacional, diante de uma emergência sanitária em curso”, observou Marco, lembrando que durante a crise sanitária, o centro global tinha pelo menos quatro vacinas para cada cidadão, enquanto os países periféricos não tinham nenhuma. “Vivemos isso, esse sistema falhou, e nós não seguramos a mão de todos”, lamentou.
Para Marco, o Brasil tem possibilidade de investir em autonomia e de buscar garantir, em termos de cooperação internacional, a segurança sanitária, inclusive, de seus vizinhos.
No que diz respeito à produção industrial, o pesquisador trouxe uma reflexão sobre a capacidade de absorção e de transferência, em especial, a licença compulsória para uso de determinadas tecnologias. Para ele, ter uma receita com o passo a passo, não significa conseguir reproduzi-la. “Ainda mais quando se trata de questões tecnológicas muito profundas”.
Fazendo um contraponto com a área da saúde, Marco explicou que uma coisa que se aprende a duras penas nessa área é que, “quando não sabe fazer, não sabe nem comprar; e, portanto, não se sabe quais são as etapas envolvidas quando se está negociando”.
Para exemplificar, ele lembrou como se deu a aquisição de respiradores pelo país durante a pandemia. “Compramos toneladas que não serviram, porque diziam respeito a outras aplicações. Os compradores não sabiam que, para entubar uma pessoa e instalar um ventilador, é necessário contar com sedativos. E tivemos aquele quadro horrível de pessoas amarradas na cama porque faltou sedativo”, apontou. “Coisas que acontecem quando não se tem uma compreensão sistêmica do que está acontecendo”, completou.
Marco lembrou, ainda, que tivemos no Brasil, o caso da licença compulsória para medicamento para Aids, na gestão do ex-ministro da saúde José Gomes Temporão, atualmente pesquisador no Centro de Estudos Estratégicos. “Foi um certo momento em que convergiram muitas situações, houve uma incapacidade de negociação com o fornecedor desse medicamento e a licença compulsória acabou sendo uma solução viável. Deu certo, o Brasil virou exemplo no controle da epidemia de HIV/Aids. Mas quanto à vacina da Covid, apenas a licença compulsória não resolveria o nosso problema. É um bom mecanismo para se tirar um pouco do poder desproporcional dos grandes fornecedores globais dessas tecnologias, mas não é o suficiente”.
Para o coordenador do CEE, isso nos conduz à conclusão de que “a grande assimetria global é de conhecimento, em que se as pessoas não sabem fazer, não têm acesso ao grande componente da autonomia global que é saber fazer. Trata-se, então, de garantir transferência de tecnologia e um caráter mais concreto aos acordos de cooperação – em vez da competição”.
Marco resgatou, também, que a área da Saúde vem servindo como vitrine para apresentação de tecnologias de inteligência artificial, como o chat GPT. “Está muito em voga nas principais corporações de saúde do mundo uma atualização tecnológica na área médica”. E citou o CEO da Apple ao dizer que “no futuro, ao se olhar para trás, veremos que a grande contribuição da empresa terá sido na área da Saúde. Isso porque eles acham que a capacidade de monitoramento de sinais vitais e processamento desses dados são também um dispositivo médico. Muitas pessoas não querem exatamente se tratar. A moda é: me rastreie e me diga o que eu tenho que tomar”.
O pesquisador ressaltou a importância de não sermos mais uma vez, apenas consumidores diante do uso das tecnologias emergentes. “É preciso estarmos atentos, estamos como meros consumidores de pacotes de tecnologia embutidos e incorporados em produtos que vamos consumir. E isso não diz respeito apenas à classe média. O uso de big data, de processamento de grande base de dados para a atenção primária à saúde – por exemplo–, é fundamental para termos, capacidade de previsão de novas emergências sanitárias”, pontuou. “Precisamos ter capacidade de cobrir pelo menos uma parte do gap tecnológico, de forma a trazer para o cenário brasileiro a forma como esses produtos serão inseridos em nossa sociedade”, completou.
Para Marco, temos que fazer com que essas tecnologias sejam processadas de forma adequada à circunstância brasileira, e cita o secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Complexo da Saúde do Ministério da Saúde, Carlos Gadelha, também coordenador científico do CEE, como uma das vozes mais poderosas na defesa do conceito da saúde como motor do desenvolvimento. “É possível extrapolar esse conceito para outras áreas sociais. Esse raciocínio associado à saúde como motor do desenvolvimento pode ser extrapolado para outras demandas nacionais”, destacou.
Marco defendeu, ainda, a criação de um sistema nacional de ciência, tecnologia, inovação, produção e pesquisa também para frear a fuga de cérebros, “um aspecto tristíssimo da nossa circunstância. Há pesquisadores que se identificam muito com a questão nacional, estão sempre vinculados ao que está acontecendo aqui, mas acabam sendo levados a sair do país”. Ao concluir, Marco afirmou a necessidade de se ter um sistema que indique um potencial para expansão dessas capacidades pessoais. “Falávamos de capacidades estatais, institucionais, mas há também as pessoais. Temos que abrir espaços para isso”.
O pesquisador destacou também a importância de uma mudança de paradigma no que diz respeito ao consumo, de forma a se induzir o caminho a ser trilhado. “Em termos de economia circular, não sei até que ponto é possível fazer voltar para cadeia de produção tudo que foi gerado. Mas, pelo menos, tender a aumentar a quantidade de produtos que precisam ser reabsorvíveis de forma sustentável é fundamental”, considerou. “Temos que discutir que consumo queremos induzir e quais as consequências do consumo de cada produto para a sociedade”, defendeu.