Reforma sanitária, desigualdade e democracia: por onde recomeçar?
Reforma Sanitária como legado histórico, democracia, desigualdade e retrocessos orientam as análises da deputada estadual Renata Souza (PSOL-RJ) e das pesquisadoras Ligia Giovanella e Silvia Gerschman (fotos), em vídeos para o CEE-Fiocruz. Elas participaram das comemorações dos 65 anos da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), em 4/9/2019. Renata Souza criticou a política de segurança do Estado, tomada como uma necropolítica, implementada a partir da cultura do medo. “A lógica do medo naturaliza uma política de segurança que reproduz desigualdade e racismo estrutural e estruturante”, analisa. Ligia assinalou os avanços no SUS, com institucionalidade democrática e inovações no modelo assistencial, e falou dos desafios da Atenção Primária à Saúde em contexto de restrição de direitos. “É um desafio lidar com o subfinanciamento crônico e o desfinaciamento agudo do SUS, devido à Emenda Constitucional 95, que congela investimentos na saúde por 20 anos”. Já Silvia destacou o legado da Reforma Sanitária Brasileira para consolidação do SUS e da democracia. “Os princípios da Reforma Sanitária são a universalidade da atenção, a integralidade em suas diversas esferas e a participação social. A reforma não acontece sem um processo democrático”, observa. “Políticas sociais são resultantes de direitos”.
Renata Souza, que também é presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), defende que o debate é fundamental para pensar o processo de desigualdade, democracia e políticas sociais e em como combater as iniquidades em momento no qual se "naturalizam mortes de corpos negros, a partir da cultura do medo".
A lógica do medo naturaliza uma política de segurança que reproduz desigualdade e racismo estrutural (Renata Souza)
“E quem são esses corpos matáveis? É o jovem negro, os moradores de favela e periferia. Corpos matáveis na política pública de segurança que olha para favela e para a periferia como lugar do medo, onde mora essa juventude negra". Nesse caminho, observa, todas as operações policiais em favelas são naturalizadas. "Ali pessoas são mortas, inclusive, crianças. Constrói-se uma lógica em que é natural isso acontecer, porque ali estão as pessoas de quem temos medo”, analisa a deputada, apresentando dados que revelam que a cada dez pessoas assassinadas, sete são jovens negros. Estamos numa situação em que há corpos matáveis, e esses corpos são negros. Precisamos humanizar as políticas públicas".
É um desafio lidar com o subfinanciamento crônico e o desfinaciamento agudo do SUS, com a Emenda Constitucional 95, que congela investimentos na saúde por 20 anos (Ligia Giovanella)
Pesquisadora do Departamento de Administração e Planejamento em Saúde da Ensp/Fiocruz, Ligia Giovanella abordou os avanços, desafios e ameaças ao Sistema Único de Saúde em seus 30 anos. E destacou a institucionalidade democrática e as inovações alcançadas no modelo assistencial. “A constituição dos conselhos de Saúde teve participação bastante importante na conformação da institucionalidade democrática e participativa do SUS. A mudança do modelo de proteção social em saúde, garantiu um modelo de seguridade social em que os direitos sociais e as políticas sociais são alcançados pela condição de cidadania, com base nos princípios da criação do sistema público universal de saúde que são: integralidade, universalidade e equidade”, assinala
Lígia destacou também os avanços no modelo assistencial, com a instituição da Estratégia Saúde da Família e suas equipes multiprofissionais. “A atenção primária à saúde integral, alia o cuidado individual oportuno de qualidade com a ação coletiva e o olhar para o território", explica. Nesse sentido, a pesquisadora apresenta críticas à Medida Provisória 890/19, que institui uma agência ou serviço autônomo sem fins lucrativos para o desenvolvimento da atenção primária, lembrando que a iniciativa é de natureza jurídica privada. A MP relaciona-se à implementação de uma continuidade do Programa Mais Médicos – agora, Médicos pelo Brasil –, mas não estabelece uma carreira de Estado para esses médicos que serão pagos também por bolsas e quem sabe depois de dois anos contratados por CLT, como lembra Ligia
Para ela, a MP aponta para indícios de privatização da Atenção Primária à Saúde. “Vemos entidades médicas apoiando, principalmente, a Unimed, que é um seguro privado de saúde, e dizendo que irão estabelecer parcerias com o setor público, com SUS, para prestação da atenção primária à saúde. Seria então dupla terceirização?”, indaga.
Para dar continuidade ao que foi conquistado, "resistir e recomeçar", ela propóe discutir e analisar cada uma das ações e se mobilizando, participar dos movimentos sociais e resistir "nas ruas a essas políticas de desmantelamento das políticas sociais e ao desmantelamento da democracia no nosso país”.
É um momento difícil. Num momento de retrocesso tão grande como esse, temos que continuar trabalhando na medida em que possamos fazer com que o SUS não morra nesse processo (Silvia Gerschman)
“O SUS foi praticamente um filho da 8° Conferência Nacional de Saúde”, observa a pesquisadora Silvia Gerschman, ao abordar as origens da Reforma Sanitária Brasileira e a importância da 8ª Conferência, realizada em 1986 e tomada como uma pré-Constituinte, no que diz respeito à Saúde e à Seguridade Social. Silvia reitera como os pilares da Reforma Sanitária a universalidade e a integralidade da atenção à saúde em suas diversas esferas: primária, secundária e terciária, bem como a participação social.
“A Reforma Sanitária não é possível senão junto com o processo democrático”, afirma. “Políticas sociais são resultantes de direitos, direitos dos cidadãos, cidadania e civil, e isso inclui a saúde. Portanto, políticas sociais relacionam-se a todos aqueles direitos que trazem bem estar, como educação, moradia e saúde. E a democracia fundamenta a existência desses direitos", define, destacando a importância de "continuarmos resistindo frente aos retrocessos" em prol do SUS. "Num momento de retrocesso tão grande como esse, temos que continuar trabalhando para fazer com que o SUS não morra ".