O Qualis Periódicos da Capes e a avaliação a produção intelectual da pós-graduação brasileira

O Qualis Periódicos da Capes e a avaliação a produção intelectual da pós-graduação brasileira

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Novo critério de avaliação de periódicos adotada pela Capes com vistas à produção intelectual dos cursos de mestrado e doutorado brasileiros utilizou o conceito de área-mãe para a estratificação dos periódicos científicos, promovendo monumental ruptura com o modelo de classificação das revistas científicas iniciada em  2009. 

A pós-graduação stricto sensu no Brasil é avaliada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) a cada quadriênio, sendo a última em 2022. A Capes avalia comparativamente o desempenho de cada Programa de Doutorado e Mestrado (Acadêmico e Profissional) com base em indicadores de qualidade, efetividade do ensino e produtividade intelectual1.

A análise da qualidade da produção intelectual (livros, artigos e produtos técnicos) é crucial nesse processo. Para este quesito, a Capes adotou o conceito de área-mãe para a estratificação dos periódicos científicos, promovendo monumental ruptura com o modelo de classificação das revistas científicas por 49 áreas de conhecimento iniciada em  2009 2,3.

Essa ruptura está contida em quatro diretrizes para a classificação dos periódicos divulgada pela Capes em 2023. O novo modelo do Qualis seguiu os seguintes princípios:

1.  Cada periódico só recebe um estrato de qualidade (Classificação única);

2.  O estrato é atribuído por uma única área de avaliação, chamada área-mãe;

3.  O estrato é obtido a partir de uma referência objetiva (metodologia que considera  indicadores objetivos e um modelo matemático);

4.  A referência são os indicadores bibliométricos e seus percentis4.

A classificação única do periódico é dada pela área em que o periódico possua maior uso, denominada de área-mãe.  Para se conseguir um histórico mais representativo do uso,  foram  considerados os registros na Plataforma  Sucupira desde 2013 até 2019.   Nos casos de empate entre duas ou mais áreas na contabilização das produções associadas ao periódico, foi considerada área-mãe aquela em que o número de publicações no periódico foi mais representativo em relação ao total de produções da área. O período de referência adotado para definição das áreas-mãe de cada um dos periódicos não levou em consideração o ano de 2020, pois a coleta dos dados desse ano base ainda não havia sido concluída4.

Os indicadores bibliométricos consideraram o número de citações do periódico dentro das bases Scopus (CiteScore), Web of Science (Fator de Impacto) e Google Scholar (índice h5). Como primeiro critério de estratificação, foi considerado o percentil do CiteScore e/ou do Fator de Impacto.

Nos casos de empate entre duas ou mais áreas na contabilização das produções associadas ao periódico, foi considerada área-mãe aquela em que o número de publicações no periódico foi mais representativo em relação ao total de produções da área. O período de referência adotado para definição das áreas-mãe de cada um dos periódicos não levou em consideração o ano de 2020, pois a coleta dos dados desse ano base ainda não havia sido concluída.

O Quadro 1 mostra que 33% dos 5.016 periódicos avaliados ficaram na classificação A1 e A2 no novo Qualis da Capes.

 

TABELA 1 – DISTRIBUIÇÃO DOS PERIÓDICOS NOS ESTRATOS DO QUALIS CAPES DE  2022
Fonte: [https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/veiculoPublicacaoQualis/listaConsultaGeralPeriodicos.jsf]
 

Para alcançar a estratificação ampliada de periódicos como de “alto prestígio científico”, foram adotadas duas formas de agrupamentos dos indicadores:

1.  QR 1: uso do CiteScore e JCR como principais, utilizando-se os percentis definidos pelas  respectivas bases, e, na ausência destes, uso do h5, sendo o percentil definido por modelagem matemática;

2.  QR2: uso apenas do índice h (h5 ou h10) para definição do percentil. 

O Colégio de Ciências Exatas, Tecnológicas e Multidisciplinar e o Colégio de Ciências da  Vida utilizaram  predominantemente o agrupamento  QR1, e o Colégio de Humanidades, o  agrupamento  QR24. Como mostra o Quadro 2, a área de Saúde Coletiva escolheu, paradoxalmente, a agrupação dos seus periódicos pelo critério do Colégio de Humanidades, pela adoção do QR2, enquanto que as áreas da Biomedicina e as vinculadas às profissões da saúde enfermagem, nutrição e odontologia, com exceção da psicologia, optaram pela permanência na avaliação sob o critério bibliométrico3. A escolha da Saúde Coletiva é paradoxal, porque a área tem concentrado massivamente a produção científica em periódicos com elevados Cite Score e JCR3,4.

 

QUADRO 2 – AGRUPAMENTOS ESCOLHIDOS PELAS ÁREAS DE AVALIAÇÃO

Fonte: Capes - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Documento Técnico do Qualis Periódico. Disponível em: [ttps://www.gov.br/capes/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/avaliacao/relatorios-tecnicos-e-grupos-de-trabalho]. Acessado em 23/01/2023.
*Por se tratar de um uma área que engloba diferentes perfis do conhecimento, foi permitido um modelo misto que envolveu em partes os agrupamentos QR1 e QR2.

O produto desses procedimentos preservou a estratificação como A1 vários periódicos de alto prestígio acadêmico e relevantes, mesmo que com padrões bibliométricos considerados baixos segundo as bases Scopus (CiteScore) e Web of Science (Fator de Impacto). Para a área das Ciências Sociais, por exemplo, a nova classificação  permitiu que importantes revistas com o índice H5 alto na área mãe fossem classificadas no estrato A1. Cabe destacar que a cultura de citação das Ciências Sociais não segue a lógica da disseminação e repercussão dos artigos observada no campo da Saúde Coletiva.

O Quadro 3 mostra, por exemplo, a notável discrepância da média do índice H5 de quatro importantes revistas brasileiras de Ciências Sociais no estrato A1 do novo Qualis com as quatro mais importantes da Saúde Coletiva no índice H5 (a média do 5 da Saúde Coletiva é 49 em comparação à média 17 observada nos periódicos das Ciências Sociais). Cabe ressaltar que a revista Saúde em Debate com o índice H5 de 46 em 2022 –  ou seja, com 46 artigos que foram  citados 46 vezes - foi classificada no estrato A4 do novo Qualis. É evidente a necessidade de aperfeiçoamento da metodologia adotada pela Capes para superar discrepâncias similares. É corretada a demanda do Colégio de Humanidades do estabelecimento agrupamento QR3 para a avaliação da produção científica das áreas de Ciências Sociais e Humanas5.

 

QUADRO  3 – DISTRIBUIÇÃO DO ÍNDICE H5 DE PERIÓDICOS NOS PERIÓDICOS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E SAÚDE COLETIVA
 
Fonte: [https://scholar.google.com.br/citations?view_op=top_venues&hl=pt-BR]

A insatisfação com o critério classificatório do novo Qualis Periódicos veio recentemente ao conhecimento do grande público pelo debate promovido pela comunidade docente da área de Economia. Segundo a Folha de S. Paulo, docentes  de instituições de pesquisa econômica renomadas não aceitaram a equiparação na classificação única de periódicos sobre “religião e dermatologia” a “publicações internacionais de prestígio da área”6.

Em resposta à manifestação de acadêmicos da Economia, os membros do comitê da área na Capes advogam em defesa da classificação única em todas as  49 áreas de conhecimento:  “Por decorrência, deixou de existir a figura do Qualis da Economia, onde, em cada ciclo avaliativo, a respectiva Comissão Qualis definia as notas dos periódicos a partir de critérios próprios da área, respeitados os parâmetros mais gerais de participação relativa dos periódicos nos estratos de nota”7.

Antes disso, em agosto de 2019, a Associação Brasileira em Saúde Coletiva (Abrasco) já tinha expressado desconforto com a nova metodologia  ao alertar para os riscos de fuga de artigos científicos para periódicos de outras áreas (afins)  com melhor qualificação; o uso com parâmetro de revistas com alto fator de impacto na categoria Saúde Pública que não são efetivamente da área de Saúde e a concentração em periódicos de língua inglesa, dominantes nas bases consideradas no Qualis Periódico. Estas condições , segundo a Abrasco,  restringiriam o acesso aos leitores especializados e limitariam a difusão de conhecimentos que subsidia a formação, a formulação e a implementação de políticas públicas nacionais7

A tomada de posição da Abrasco contra o Qualis Único foi ratificada por Editorial dos Cadernos de Saúde Publica da Fundação Oswaldo Cruz, observando-se que “a premissa da adoção de um único critério para avaliação de periódicos científicos é questionável, considerando as profundas diferenças entre as áreas acadêmicas na produção e divulgação do conhecimento, o que gera resultados desastrosos a periódicos já consolidados em suas áreas de atuação”8.

O Quadro 4 mostra que a classificação única do novo Qualis disponibiliza aos pesquisadores 4.558 publicações nas várias áreas de conhecimento (quando excluídos os de baixa qualidade no estrato C). Os estratos A1 e A2 correspondem a 1/3 dos periódicos das revistas listadas. A classificação pelo viés da área mãe favoreceu a inclusão dos periódicos do antigo Qualis, herdado das 49 áreas de conhecimento, nos estratos superiores da distribuição.

Destaca-se, como já mostrado no  Quadro 3, a presença de importantes periódicos das Ciências Sociais no estrato nos estrato A1, apesar do baixo índice H5. Essa constatação indica o fortalecimento da posição de publicações nacionais na divulgação científica, ao contrário da reforma do Qualis de 2015, que rebaixou de modo geral os periódicos nacionais.2

Cabe lembrar, nesse sentido, que as versões anteriores do Qualis Periódicos já eram hegemonizadas por periódicos editados em inglês3. Na  classificação única atual, a participação proporcional das revistas científicas nacionais foi ampliada nos estratos A1 e A2 para 13,5% e 22% respectivamente, como mostra o Quadro 3. Ainda assim, como ratifica o Gráfico A, os periódicos publicados fora do país são prevalentes de modo avassalador nos estratos A1, A2, A3 e A4, além de B2. Os estratos B1, B3 e B4 contemplam majoritariamente periódicos nacionais.
 

QUADRO 4 – DISTRIBUIÇÃO DOS PERIÓDICOS SEGUNDO A ESTRATIFICAÇÃO E NACIONALIDADE NO QUALIS DE 2022

Fonte: [https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/veiculoPublicacaoQualis/listaConsultaGeralPeriodicos.jsf]

 

GRÁFICO A                –       DISTRIBUIÇÃO DOS ESTRATOS DO QUALIS PERIÓDICOS 2022 POR NACIONALIDADE.

Fonte: [https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/veiculoPublicacaoQualis/listaConsultaGeralPeriodicos.jsf]

 

O Quadro 5 detalha a distribuição dos 947 periódicos do estrato A1 em dois grupos distintos. O grupo 1 contempla os periódicos de Ciências Humanas, Sociais Aplicadas e Saúde Coletiva e  grupo 2 abrange  os periódicos de Biomedicina, Engenharias, Ambiente e outras. Observa-se que a participação dos periódicos nacionais no grupo 2 da Biomedicina e Engenharias é extremamente residual (6% do estrato).

 Os docentes dos programas desse grupo publicam majoritariamente em periódicos internacionais editados em inglês. Já nas Ciências Humanas e Sociais a participação da publicação docente em periódicos nacionais é expressiva, contemplando 60% dos estratificados como A1. Isto é um indicativo da alta preferência dos docentes das Ciências Humanas, Sociais e da Saúde Coletiva pelas revistas editadas em português. Esta distribuição indica ainda a sobrevivência da diversidade das culturas epistêmicas na Pós-Graduação Stricto Senso do país, que foi contemplada na nova versão do Qualis Periódico.

 

QUADRO 5 – DISTRIBUIÇÃO DOS PERIÓDICOS NO ESTRATO A1 DO QUALIS CAPES 2022 POR ÁREA E LÍNGUA DA PUBLICAÇÃO

Fonte: [https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/veiculoPublicacaoQualis/listaConsultaGeralPeriodicos.jsf] 
 

Não resta dúvida que o aperfeiçoamento pelo debate entre pares e na sociedade do Qualis Periódicos da Capes deve estar no radar das 49 áreas da Pós-Graduação Stricto Senso. As lideranças da área de Economia alertam, nesse sentido, para a necessidade do “olhar atento da comunidade acadêmica que garante que erros e omissões sejam eliminados e que se alcance aquilo que é o desejo geral: que o sistema de pós-graduação se fortaleça em todas as suas dimensões, preservando-se a salutar diversidade de perfis de programa”6.  A boa notícia é que a Capes promoveu em janeiro de 2023, já no começo do governo Lula, o acesso público aos Relatórios dos Grupos de Trabalho “Qualis Periódicos” e o detalhamento das áreas-mãe dos periódicos que determinaram em última instância a classificação única4.
 

Referências

  1. Barata, Rita Barradas. Mudanças necessárias na avaliação da pós-graduação brasileira. Interface. 2019, vol.23, e180635.
  2. Baseggio Crespi, TB; Preusler,TS; Luna, NA; Portugal, MF. Novo Qualis: Impacto na Avaliaação da Produção Intelectual dos Pesquisadores em Administração. Revista de Ciências da Administração, 2017, 19 (47): 131-147.
  3. Costa, NR. A avaliação da produção intelectual e o declínio da interdisciplinaridade na Saúde Coletiva. Physis,  2012, .22 (2):.681-699.  
  4. Capes - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Documento Técnico do Qualis Periódico. Disponível em: [ttps://www.gov.br/capes/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/avaliacao/relatorios-tecnicos-e-grupos-de-trabalho]. Acessado em 23/01/2023.
  5.  Blog Pensar a Educação. Carta do Colégio das Humanidades ao Presidente da CAPES, Disponível em [https://pensaraeducacao.com.br/blogpensaraeducacao/carta-do-colegio-das-humanidades-ao-presidente-da-capes/]. Acessado em 15/01/2023
  6.  Folha de São Paulo, 05 de Janeiro, 2023. Economistas se Rebelam contra Mudança no Ranking das Revistas Científicas. [https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2023/01/economistas-se-rebelam-contra-mudanca-em-ranking-de-revistas-cientificas.shtml]. 

6- Associação Brasileira de Saúde Coletiva Discute Nova Proposta do Qualis Periódico [[https://www.abrasco.org.br/site/noticias/institucional/abrasco-discute-criterios-nova-proposta-do-qualis-periodicos/42166/].

7- Cadernos de Saúde Pública. Editorial: Contribuições ao debate sobre a avaliação da produção científica no Brasil. [http://cadernos.ensp.fiocruz.br/csp/artigo/880/contribuicoes-ao-debate-sobre-a- avaliacao-da-producao-cientifica-no-brasil]