Propriedade intelectual e acesso a tecnologias em saúde: caminhos e descaminhos no Brasil
Embora o acesso a medicamentos e tecnologias tenha sido um assunto presente na agenda da Saúde nos últimos pelo menos 25 anos, a propriedade intelectual está cada vez mais presente na discussão sobre o confronto entre saúde e comércio, entre direitos coletivos e direitos individuais. Esse tema tem marcado também as discussões e deliberações da política brasileira, na nossa avaliação, como avanços e também como retrocessos; caminhos e descaminhos. Em especial, estes últimos dias e semanas têm sido pródigos em manter o tema na agenda prioritária de discussão nacional.
O ministro do STF Dias Toffoli concedeu a liminar para declaração de inconstitucionalidade presente no parágrafo único do artigo 40 da nossa lei de propriedade industrial, a Lei 9.279/1996. Embora não seja um passo final, representa a compreensão de que a extensão de patentes para além dos vinte anos que o Acordo Trips exige, deve ser considerada uma arbitrariedade e um elemento Trips-plus [mais restritivo, referente ao avanço normativo para além do padrão mínimo de proteção estabelecido pelo Trips e à limitação de flexibilidades] na nossa legislação. Ao permitir que as solicitações de patentes sejam estendidas para o mínimo de dez anos após sua concessão em consideração ao backlog do INPI, na verdade, criam uma concessão legal adicional, pois, enquanto o pedido é examinado, a expectativa da concessão da patente já cria por si um monopólio no Brasil. O mundo inteiro acompanha esse processo no Brasil e espera que o mesmo seja colocado novamente como exemplo para o mundo na possibilidade de avançar políticas públicas (ver aqui).
Esse tema tem estado presente, em especial, nos questionamentos da eficiência do INPI, embora em lugar de fortalecer instituições típicas de Estado e de caráter indelegável, o governo tenha optado por tentar implementar arremedos de soluções incabíveis, como foi incluir a demora na análise de patentes pelo INPI na Comissão Mista de Desburocratização, propondo o deferimento sumário como fórmula mágica para eliminar esse atraso, podendo mergulhar o Brasil em uma enxurrada de aprovações de patentes que seriam equivocadas (ver aqui).
Outras iniciativas têm surgido, incluindo a terceirização das análises de patentes e o reconhecimento das patentes aprovadas em outros países, mas todas desconsiderando o papel estratégico do INPI e o rigor necessário nas análises das solicitações de proteção patentária.
Vimos também de maneira negativa o rolo compressor que do governo federal, nesta última semana, para evitar que o PL 12/2021, do senador Paulo Paim, fosse aprovado (ver aqui), permitindo a discussão, mas definindo a retirada de pauta no Senado, até assegurando sessões posteriores de discussão ao longo da semana. Entretanto, fica muito claro, que ao pressionar o governo com relação à discussão em curso na OMC, a aprovação desse PL representaria para o governo brasileiro o risco de ter que optar por apoiar (ou não) a iniciativa de dois terços dos países membros da OMC, a liderança de Índia e África do Sul e os naturais parceiros do Brasil, tal a identidade do PL com a proposta do waiver em curso na OMC, da suspensão temporária de determinados elementos no Acordo Trips e que permitiria o licenciamento compulsório das tecnologias associadas à pandemia (ver aqui).
Nada mais distante, na posição do governo brasileiro, das lutas dos países em desenvolvimento nos grandes foros internacionais. Inicialmente alinhado com a negativa dos EUA de Trump e de países centrais, depois se omitindo nas discussões na OMC, a Nota à Imprensa nº 37, divulgada em 9/04/2021, revela o desespero, as incertezas e a necessidade de se aliar com outros países para romper o isolacionismo que recebe críticas nos grandes veículos de imprensa mundiais. Entretanto, vemos a adesão do Brasil à alternativa da terceira via, proposta pela OMC, como oportunista e desprovida de articulação maior e necessária com o setor produtivo nacional, na linha da capacitação nacional e em nome da necessária soberania sanitária. Uma iniciativa dessas teria que estar fundamentada na discussão ampla com o setor produtivo nacional, em investimentos importantes em Ciência, Tecnologia e Inovação e com o fortalecimento do Complexo Econômico e Industrial de Saúde, e uma política industrial no curto, médio e longo prazos, na contramão da asfixia do setor público que vem sendo promovida.
Vivenciamos também a Comissão Geral para debater “a quebra de patentes das vacinas para o combate ao vírus Covid-19 e o posicionamento brasileiro frente a essa proposta, em debate tanto na Organização Mundial do Comércio (OMC), quanto na Organização Mundial da Saúde (OMS)”, atendendo ao Requerimento nº 313/2021 da deputada federal Alice Portugal, na Câmara dos Deputados e que teve receptividade ampla em considerar as tecnologias para a Covid-19 como prioritárias e, portanto, passíveis de serem sujeitas a licenciamento compulsório (ver aqui). É necessário esclarecer que a discussão girou em torno de tecnologias em sua totalidade e não de forma restrita às vacinas para Covid-19. O acesso às vacinas envolve uma série de iniciativas em curso, entendendo que as medidas para as possibilidades de licenças compulsórias efetivamente automáticas, como outros países vêm implementando e em atendimento a recomendações do Painel de Alto Nível do Secretário-Geral das Nações Unidas em acesso a medicamentos, lidam com o acesso a todas as tecnologias, incluindo vacinas, medicamentos, diagnósticos, reagentes, dispositivos médicos, equipamentos de proteção individual, suprimentos e quaisquer outras tecnologias utilizadas para atender às necessidades de saúde relacionadas à emergência.
É necessário louvar os contratos de transferência de tecnologia implementados pela Fiocruz e pelo Instituto Butantan e que vêm permitindo a vacinação efetiva da população brasileira, mediante a importação, formulação nacional e detenção dos processos tecnológicos na direção da nossa soberania sanitária, na definição de novas maneiras de abordar a produção nacional e as parcerias público-privadas numa política industrial em saúde de longo alcance, que gera emprego, incorpora tecnologia e nos coloca diante das expectativas de desenvolvimento social e econômico compatíveis com a expectativa de sonharmos com um Brasil melhor para nossas futuras gerações.
Já nos referimos em diversas oportunidades ao apartheid da saúde que vem sendo promovido nos países em desenvolvimento e, em especial, nos países mais pobres pela disputa predatória e compra antecipada de vacinas pelos países ricos, deixando de lado a solidariedade que foi anunciada e se buscou com a declaração da pandemia em escala global (ver aqui, aqui e aqui). A sociedade civil pressiona o Brasil para que deixe seu lugar de país pária no mundo e discuta e implemente os mecanismos para assegurar o acesso da nossa população às tecnologias necessárias para confrontar a Covid-19. Diversos projetos de lei atualmente no Congresso Nacional e apresentados por parlamentares propõem o licenciamento compulsório automático para as tecnologias relacionadas à pandemia, mediante a suspensão temporária dos direitos de propriedade intelectual. Há no mundo diversos medicamentos que vêm sendo testados e que, eventualmente, podem vir a ser eficazes no tratamento. Na outra extremidade, temos hoje mais de 2 mil solicitações de patentes de medicamentos relacionados com Covid-19 submetidos no mundo, buscando cada vez mais o exercício de monopólios e a possibilidade de arbitrar preços elevados. Temos que ter a coragem de enfrentar monopólios e assegurar as tecnologias como insumos em saúde e não como mercadorias, priorizando direitos coletivos em detrimento de direitos individuais.
A Saúde como direito de todos é cláusula pétrea da nossa Constituição Federal, e defender o SUS é defender a vida!
* Pesquisador da Ensp/Fiocruz e pesquisador parceiro do CEE-Fiocruz
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