Presente e futuro, esperança e ação, nas reflexões de Carlos Gadelha e Carlos Brandão, em aula inaugural na Fiocruz Brasília
“Estamos assistindo à reprodução e ao acirramento, em novas bases, da dependência, da exclusão e da subordinação”, afirmou o economista Carlos Gadelha, coordenador do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz Antonio Ivo de Carvalho, em sua exposição na aula inaugural da 1ª Mostra da Escola de Governo Fiocruz-Brasília, realizada em 15/03/2022, de forma remota. Gadelha dividiu a mesa com o antropólogo Carlos Brandão, professor colaborador da Unicamp e da Universidade Federal de Uberlândia e visitante da Universidade Federal de Goiânia, ambos fazendo suas exposições a partir do tema da aula inaugural, Construção coletiva de cidadania e utopia para o fortalecimento do SUS, para além dos tempos de crise. “Se alguma esperança há, essa esperança está em nós, no que estamos dispostos a fazer”, afirmou Brandão.
Gadelha lembrou que a visão de utopia concebida no Iluminismo “cola o futuro com o presente”. E observou: “A transformação se faz parte do presente. A utopia deixa de ser algo inatingível na perspectiva iluminista; a perspectiva é a da utopia como um futuro, as forças do conhecimento e da razão para transformar a sociedade com vistas ao bem comum”, considerou.
Gadelha citou o filósofo alemão Jürgen Habermas que aponta três respostas possíveis para o pensamento utópico. “Uma resposta seria o vitimismo, do éramos felizes e não sabíamos, da volta ao passado”, apontou. “Não se trata apenas de uma volta. Teremos que reconstruir, detectando onde erramos, o que temos que aprender, e fazer de modo diferente, em um contexto que mudou e em que o passado também é incerto – não só o futuro!”.
A segunda resposta ao pensamento utópico de acordo com Habermas, prosseguiu Gadelha, refere-se a um novo conservadorismo. “É onde estamos no momento: o capitalismo turbinado, sem regulação, sem Estado. Experiências globais de um novo conservadorismo, que fere, inclusive, as bases do pensamento liberal clássico, em que a democracia é relativizada”, analisou.
Como terceira resposta, Gadelha citou a negação. “É o entendimento de que tudo o que está aí não presta, de que não tem como haver mais crescimento e ficaremos estagnados, seguindo em frente na destruição do planeta”, explicou, acrescentando que, para Habermas, nenhum desses caminhos leva a uma reconstrução do futuro. “Convoco alunos e professores a pensar com liberdade a construção de um futuro que não caia no neoconservadorismo e na descrença, na negação, nem no ato de apenas esperar – ficar à espera – porque nada há a fazer”.
O pesquisador conclamou a se discutirem as questões estruturais, não só as conjunturais, ainda que estejamos premidos pela emergência do cenário atual. “A questão central é estrutural, para cumprirmos a Constituição e garantirmos acesso equânime e integral não só na pandemia, em que a maior parte da população dos países de baixa renda foi deixada para trás – na distribuição de vacinas contra a Covid-19, o Haiti não tinha sequer uma pessoa vacinada.
Gadelha abordou a “dimensão social e econômica da Saúde”, alertando para o risco da uma “dependência colonial 4.0” e buscando apontar caminhos para um novo projeto nacional de desenvolvimento, que “alimente a utopia com inéditos viáveis”, como define. “Não dá para discutir saúde, sem pensar em sua base econômica e social. Não se trata dessa economia vulgar, da saúde entendida como alocação de recursos escassos. Falamos da saúde como espaço de desenvolvimento”. De acordo com o pesquisador, as políticas públicas, não só da área social, como da econômica e de ciência e tecnologia, voltadas ao bem estar, não só cabem no PIB, como são também solução para o PIB, fazendo a renda per capita voltar a crescer.
Temas como racismo estrutural e desigualdade estrutural, apontou Gadelha, remetem a uma estrutura econômica e social que reproduz uma sociedade desigual, na renda, no acesso à saúde. Ele dá um exemplo: “Aquelas empresas que dominam o mundo da informação – Facebook, Google, Microsoft, Apple, Amazon – propagam, no discurso, práticas e ações antirracistas. Mas ao olharmos a estrutura de emprego nessas empresas, a diferença salarial do homem branco para a mulher negra aumentou. Isso é racismo estrutural”, observou. “Quando o Brasil volta a ser produtor de bens primários, estruturalmente, também estamos gerando a desigualdade. A mãe de toda desigualdade é a desigualdade no conhecimento, conforme artigo que escrevi com a presidente [da Fiocruz] Nísia Trindade”, citou.
Gadelha abordou, ainda, aspectos relacionando o Sistema Único de Saúde e a cidadania. “Falo aos estudantes: o SUS não é um sistema pobre para pobres, é um sistema universal, que garante, por exemplo, uma fila única para a vacina. Sem SUS, não combatemos o racismo estrutural. Sistema universal reflete um projeto de país, não é para servir as pessoas de baixa renda e sim para construir uma sociedade mais feliz e equânime estruturalmente”.
Como afirmou Gadelha a esse respeito, “o Estado nacional não morreu”. Estamos em um regime capitalista, observou, “mas podemos defender que o Estado seja Estado, que oriente o capital”. Para ele, é preciso repensar o Estado de forma vinculada aos desafios nacionais, “inclusive no centro do capital, um Estado que gere círculos virtuosos”.
Para o pesquisador o investimento em inovação representa mudança estrutural. “O Brasil atingiu 20 bilhões de dólares em dependência de importação, o que representa um orçamento inteiro do Ministério da Saúde, sem gerar emprego, renda, sem aproveitar a ciência e a tecnologia no campo da Saúde. O Complexo Econômico-Industrial da Saúde (Ceis) é a ponta do iceberg de uma nova visão de desenvolvimento pra o país”, defendeu. “Não é verdade que não crescer melhora a equidade e a sustentabilidade ambiental. Os dados mostram o contrário. Nós não crescemos e, no entanto, ficamos mais desiguais. Não se investiu em energia limpa, não se pegou o Ceis como o grande motor do século 21”.
Para Gadelha, não existe separação entre economia, política e sociedade. “Países que querem poder político têm que ter poder econômico. E o Brasil, se quiser isso, tem que reconstruir a economia nacional, também para ter autonomia para fortalecer o SUS. Falta de máscaras, ventiladores, que vimos durante a pandemia, significa o fracasso da economia nacional”, apontou, ressaltando que “estamos em um país riquíssimo, que teve a ousadia de criar o maior sistema universal do mundo nos trópicos, e um sistema de C&T potente”. Para Gadelha, temos tudo para avançar e liderar, pela saúde, “um processo solidário de globalização a la Milton Santos, voltado à solidariedade”.
A ênfase na esperança pautou a exposição do professor Carlos Brandão, que abriu a mesa da aula inaugural. “Quando me perguntam sobre o futuro da humanidade e como imagino o planeta no ano 2050 eu respondo que estou pensando no planeta no ano 2 milhões 250 mil 250. Imagino uma humanidade destinada a povoar o universo, pessoas que serão seres de luz”, apontou, ao mesmo tempo, considerando que, diante da realidade atual, a pergunta seria: há lugar para a esperança?
“Faz sentido estarmos aqui trabalhando essas ideias em ambiente carregado de ternura, afeto e parecendo tão ilusórios?”, indagou, compartilhando que vem colecionando trechos de análises produzidas por cientistas políticos, educadores, entre outros pensadores, que tratam de esperança. Entre as passagens de sua coletânea, citou Darcy Ribeiro – “(...)Somei mais fracassos que vitórias nas minhas lutas. Mas isso não importa. Seria horrível estar ao lado dos que me venceram nessas batalhas” – e Boaventura Sousa Santos – “Esperar sem esperança é a maior maldição que pode cair sobre um povo. E a esperança não se inventa, se constrói(...)”.
O professor trouxe também, como um alerta, outra citação, do economista francês Jacques Attali, extraída do Dicionário do século XXI, no verbete Educação. De acordo com o verbete, “se os direitos do mercado se instalarem na Educação, ela vai tornar-se uma indústria do espetáculo submetida {as leis do lucro”. E, ainda: “Onde prevalecer a lei do mercado, a Educação não será mais um serviço, vai industrializar sua produção para criar mais valor (...) dirigida, coordenada, não por educadores de formação, mas por gstores, especialistas em gestão do capital (...).
Contrapondo-se a essa “crítica desesperançosa” apontada no verbete, Brandão destacou as “microconquistas” que vêm sendo alcançadas pela “porta dos fundos”, ou pelos que “vêm de baixo”. Para ele, há o outro lado da moeda. “Ao olharmos para a mesma realidade de pandemia e pandemônio, não pelo noticiário, mas pelo que vem pela porta dos fundos, temos razões muito grandes para esperançar, para acreditar que somos capazes de reverter essas visões e previsões tão escuras a respeito do futuro”, considerou. “Se olharmos de baixo para cima, da periferia para o centro, a quantidade de microconquistas que vão se entrelaçando e formando uma teia tem poder de enfrentamento e de luta maior do que imaginamos”.