Pobreza e fome em ascensão
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Francisco Menezes*
Registra-se, desde 2015, um acentuado crescimento da pobreza e da extrema pobreza no Brasil. Essa situação é visível tanto nas cidades quanto no campo e confirmada por dados oficiais recentes.
O antigo Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) trabalhava com linhas de pobreza e extrema pobreza referenciados nos patamares estabelecidos para o Programa Bolsa Família em junho de 2011, quando era considerada extremamente pobre a pessoa com renda mensal igual ou menor do que R$ 70 e em condição de pobreza aquelas com renda mensal maior do que R$ 70 e até R$ 140.
Seguindo esses patamares e realizando a devida correção (deflacionados/inflacionados pelo INPC para os meses de referência de coleta da PNAD), estimou-se a população em situação de pobreza e extrema pobreza no período de 1992 até 2017[i][1][2] (Gráfico abaixo).
Observa-se, então, que: i) a pobreza e a extrema pobreza descreveram uma tendência fortemente declinante entre 2003 e 2014, retomando um movimento ascendente a partir de 2015; ii) o grupo mais pobre cresceu mais acentuadamente desde 2015, inclusive ultrapassando o grupo considerado pobre, em 2017; iii) o número de pessoas nesse patamar de extrema pobreza voltou em 2017 à situação de doze anos atrás, enquanto o outro grupo retrocedeu à condição de oito anos atrás.
O número de pessoas nesse patamar de extrema pobreza voltou em 2017 à situação de doze anos atrás, enquanto o grupo considerado pobre retrocedeu à condição de oito anos atrás
Em dezembro de 2018, o IBGE divulgou a Síntese de Indicadores Sociais (SIS) com os mesmos dados que tinham se tornado públicos em abril do mesmo ano. Nessa Síntese, é adotada a linha de pobreza proposta pelo Banco Mundial (rendimento de até US$ 5,5 por dia, ou R$ 406 por mês). Seguindo esse critério, a proporção de pessoas pobres no Brasil era de 25,7% da população, em 2016, e subiu para 26,5%, em 2017. Em números absolutos, esse contingente variou de 52,8 milhões para 54,8 milhões de pessoas, no período. Nessa mesma análise, a proporção de crianças e adolescentes de 0 a 14 anos que viviam com rendimentos de até US$ 5,5 por dia passou de 42,9% para 43,4%, no mesmo período. Já o contingente de pessoas com renda inferior a US$ 1,90 por dia (R$ 140 por mês), que estariam na extrema pobreza de acordo com a linha proposta pelo Banco Mundial, representava 6,6% da população do país em 2016, contra 7,4% em 2017. Em números absolutos, esse contingente aumentou de 13,5 milhões em 2016 para 15,2 milhões de pessoas em 2017.
Os números que seguem as linhas do MDS e as agora adotadas pelo IBGE sobre os mesmos dados divergem, como seria de se esperar, mas a tendência de crescimento da pobreza e da extrema pobreza confirma-se.
Na mídia e em outros espaços, quando aparece a discussão sobre as causas desse crescimento de pobreza e extrema pobreza atribui-se quase sempre à crise política e econômica. Pouco se menciona a forma de enfrentamento dessa crise, cujo modelo em diferentes países é chamado de austeridade.
No Brasil, essa austeridade é apresentada como necessidade inelutável. Tem sido através dessa concepção que se aprovou a chamada PEC dos gastos (EC 95) e a Reforma Trabalhista, e agora se tenta aprovar a reforma da Previdência, em meio a outras tantas medidas de natureza retracionista que foram implementadas.
Com a PEC dos gastos desencadearam-se cortes orçamentários importantes, em especial sobre as políticas sociais, justamente quando estas deveriam ser fortalecidas frente às perdas que vêm ocorrendo. A reforma trabalhista não cumpriu a promessa ilusionista que fez para ser aprovada, de que os investidores privados recuperariam a confiança nas possibilidades de crescimento do país e voltariam a investir e de que o emprego voltaria a crescer. Ao contrário, o número de desempregados, subempregados e em desalento não baixou e a informalidade cresceu acentuadamente. A reforma da Previdência, com apreciação pelo Congresso em curso, também adotou a mesma linha ilusionista de promessas de retomada do crescimento econômico, embora, nesse caso, parecendo que vai prevalecer uma versão que atenua em alguns pontos a proposta inicial do governo.
Portanto, não há indícios de que se possa reverter em curto prazo a atual tendência de expansão da pobreza e extrema pobreza no país. Esta última correlaciona-se diretamente com a fome.
No Brasil, essa ‘austeridade’ é apresentada como necessidade inelutável. Tem sido através dessa concepção que se aprovou a chamada PEC dos gastos (EC 95) e a Reforma Trabalhista, e agora se tenta aprovar a reforma da Previdência, em meio a outras tantas medidas de natureza retracionista que foram implementadas.
O Brasil saiu do Mapa da Fome da ONU, em 2014, por força de dois fatores: a significativa redução da extrema pobreza e a efetividade de um conjunto de políticas de segurança alimentar e nutricional (SAN), como o Pronaf, PAA, Programa de Cisternas, PNAE, programas específicos para povos e comunidades tradicionais, programas de saúde e nutrição, entre outros. Contou, também, com uma nova legislação (Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional) que começou a organizar o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan), ao mesmo tempo em que estabeleceu uma estrutura institucional com forte participação social (Consea e Conferências).
Como já foi sugerido, o crescimento da extrema pobreza e os profundos cortes orçamentários nos programas sociais e de segurança alimentar e nutricional criam o ambiente para o retorno da fome como uma manifestação substantiva no atual contexto da realidade brasileira. Esta advertência foi divulgada no Brasil em 2017 pelo Grupo de Trabalho 2030 da sociedade civil, que faz o monitoramento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), e posteriormente levado à ONU. De lá para cá não só se deixou de rever o chamado ajuste econômico de enfrentamento da crise, como o desmonte das políticas sociais e de SAN [Segurança Alimentar e Nutricional] se acentuou.
Cabe assinalar o atual apagão estatístico que o país vem vivendo desde a entrada do atual governo
Há que se registrar, ainda, a decisão do atual governo de extinção do Consea, perdendo o país a oportunidade de contar com um órgão de reconhecida capacidade no tema, bem como o processo de liberação de agrotóxicos – alguns de notória periculosidade – em uma escala nunca antes experimentada.
Por fim, cabe assinalar o atual apagão estatístico que o país vem vivendo desde a entrada do atual governo. Não bastassem as frequentes desqualificações que o presidente produz sobre o IBGE, verificam-se medidas e práticas que privam o país de informações e dados essenciais para o exercício das políticas públicas e o acompanhamento da realidade atual. Exemplo disso é o tratamento que está sendo dado à realização do Censo 2020, assim como a demora na divulgação dos resultados de pesquisas já realizadas. No caso das informações pertinentes aos temas da pobreza e extrema pobreza continuam desconhecidos os dados referentes ao ano de 2018 e para a fome, a não divulgação do Suplemento de Segurança e Insegurança Alimentar, baseado em pesquisa realizada em agosto do ano passado.
* Economista, pesquisador do Ibase e consultor de ActionAid Brasil.
O conteúdo desta publicação é de exclusiva responsabilidade do(s) autor(es), não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz.
[1] Em 2017, a linha de extrema pobreza corrigida tinha como patamar o valor de R$ 102,44 e da pobreza, o valor de R$ 204,88.
[2] Utilizado como fonte os dados divulgados pelo IBGE da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), até 2012, e da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD-C), em seu módulo Renda. O último módulo de rendimento da PNAD-C foi divulgado em abril de 2018, quando foram apresentados os dados referentes ao ano de 2017.