Paulo Buss: É hora de discutir a renda mínima de cidadania

Paulo Buss: É hora de discutir a renda mínima de cidadania

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Nesta quarta semana de isolamento social, tem recrudescido o debate em torno da crise econômica que essa medida deve trazer. Se por um lado especialistas em saúde defendem essa ação como uma forma de evitar o colapso nos sistemas de saúde, podendo levar a mortes em massa, de outro há o temor de que a roda da economia, além de parar, não volte a girar na mesma intensidade. O que pesa mais, a saúde ou a economia? Para o médico e pesquisador em saúde pública Paulo Buss, esse é um falso problema. “A saúde é geradora de uma população saudável e mais capaz de contribuir para o desenvolvimento, e o movimento que não se preocupar com a saúde está cavando sua própria sepultura, porque uma população não saudável é uma população não produtiva”, sintetiza, na entrevista concedia à IHU On-Line.

A dicotomia entre saúde e economia que tem sido trazida para o bojo das discussões sobre a pandemia, dificultando ações de prevenção, na opinião do médico e pesquisador em saúde pública Paulo Buss,  é falsa. Afinal “uma população não saudável é uma população não produtiva”. Paulo Buss sublinha a importância do entendimento ampliado do conceito de desenvolvimento, abarcando os princípios da saúde pública.  “A economia precisa se preocupar com a população, com o povo, com a periferia e com a favela porque, caso contrário, para”, explica o ex-presidente da Fiocruz.

A ameaça do coronavírus nas periferias pobres e nas favelas, lembra o pesquisador, vem se somar a tantos outros problemas estruturais dessas regiões, marcadas pela extrema desigualdade social. Suas populações convivem com questões graves como moradias inadequadas, falta de abastecimento de água, não existência da coleta de esgoto adequada e de lixo e drenagem urbana ineficaz, que tornam as medidas de prevenção de doenças um  desafio difícil de ser enfrentado.  

O médico elogia as ações preconizadas pelo Ministério da Saúde, especialmente as medidas de contenção da circulação do vírus por meio do resguardo das pessoas em casa. Entretanto, para que os efeitos da quarentena sejam minimizados, ele ressalta que é preciso garantir uma renda mínima às pessoas para que elas possam se alimentar, comprar água e produtos de higiene pessoal. “Não é possível que as pessoas se cuidem sem renda”, diz o pesquisador, referindo-se aos pobres, aos autônomos e àqueles que perderam seus empregos. Segundo Paulo Buss, a pandemia pode mudar a relação do Estado com a sociedade, transformando o chamado “coronavoucher” numa renda mínima de cidadania. “ (...) Um conceito e um projeto que, em sua opinião,  deverá estar no centros da discussões políticas do Congresso Nacional, ampliando a inclusão social por meio de políticas sustentadas pelo orçamento nacional.

 

 

Confira a entrevista do IHU Online. 

 

 O coronavírus entrou no Brasil através dos fluxos de viajantes e começou acometendo pessoas das classes média e alta. O fato de a doença não ter começado pela periferia influenciou em alguma medida as ações estatais e do sistema de saúde?

De fato o coronavírus entrou pelo fluxo de viajantes que chegaram de avião, vindos provavelmente da Itália, e, portanto, começou a acometer pessoas de classe média. As ações estatais do sistema de saúde, obviamente, foram influenciadas por esse tipo de situação, já que as mensagens que começaram a ser construídas nas coletivas e a própria fala de pessoas na televisão, de médicos etc., sempre se dirigiam a um tipo de público que moraria em casas e apartamentos de classe média ou mais abastados. Mas com relação às medidas do sistema de saúde propriamente dito, além desse fator relacionado à comunicação, creio que não houve diferença. Desde o início foram preconizadas - pelo Ministério da Saúde, em especial - medidas corretas de contenção da circulação do vírus por meio do resguardo em casa, entre outras.

 Como compreender a resistência e a solidariedade da favela em tempos de pandemia? Em que medida essas ações atualizam a luta diária pela vida na periferia?

 É impressionante ver como houve uma mobilização, e eu consegui observar isso particularmente no Rio de Janeiro, onde vivo, mas houve uma grande mobilização nas favelas, principalmente pelas associações de moradores que não se encontram sob o comando do tráfico ou da milícia. Quando essas associações são legítimas - e também por meio de outros grupos, como grupos de cultura, de música, de dança, toda essa variedade de expressões organizativas que nós temos nas favelas, não só no Rio de Janeiro, mas também em outros lugares do Brasil, principalmente nas maiores cidades -, vemos que há uma intensa mobilização em situações difíceis.

E esses episódios tão terríveis, como uma epidemia dessas que é tão letal, também trazem junto outras coisas, entre as quais a descoberta do valor da saúde, de que a economia não deve girar só em torno dos abastados e do lucro da ciranda financeira, mas precisa se preocupar com a população, com o povo, com a periferia e com a favela porque, caso contrário, a economia para. Esse é o paradoxo. E é um paradoxo que não interessa também aos proprietários de casas comerciais e de indústrias, pois não querem que a economia pare. Aliás, é melhor que ela pare agora e retome depois, porque o que vai de fato prejudicar a economia é se nós tivermos uma epidemia grave e prolongada.

Mas, voltando à pergunta, acho que sim, a solidariedade tem se mostrado intensa, principalmente entre os próprios moradores dessas favelas e de periferias pobres.

 O coronavírus é hoje o maior problema das periferias brasileiras? Por quê?

Creio que não, ele é mais um problema que se soma aos tantos graves problemas que as periferias pobres, principalmente, sofrem. O problema de abastecimento de água, a questão da moradia, a não existência da coleta de esgoto adequada e da mesma forma a coleta de lixo, a drenagem urbana e consequentemente os desabamentos, a pobreza, a desigualdade, todos esses são problemas estruturais e realmente grandes das periferias do Brasil.

Aliás, digamos, são esses os problemas das periferias sociais, econômicas, muito mais quanto a sua localização territorial na cidade. Vamos chamar, na verdade, de periferia a profunda desigualdade brasileira, a concentração de renda, a pobreza em si, a extrema pobreza, esses são os problemas estruturais da periferia brasileira e uma mobilidade social quase inexistente. Ainda houve uma migração das classes mais pobres para as classes médias por meio das políticas públicas de inclusão, como o Bolsa Família, o Benefício de Prestação Continuada, o acesso à universidade com a derrubada de algumas barreiras pelo acesso diferenciado como cor da pele ou renda, mas, na verdade, os problemas das periferias brasileiras ainda são questões estruturais de fundo.

 Essa experiência da pandemia pode, em alguma medida, mudar a relação do Estado, de um modo geral, e da sociedade na relação com a periferia?

Eu tenho dúvidas se essa pandemia pode mudar a relação do Estado com a sociedade. Acho que se houver uma mobilização social de intelectuais, de economistas, a Saúde vai ter de ser mantida. A questão da renda, da moradia, é fundamental. E se a questão da renda é fundamental, então, a política de Estado vai ter que mudar no sentido de transformar o chamado “coronavoucher” numa renda mínima de cidadania, que é um conceito e um projeto que durante muito tempo no Brasil esteve nas periferias políticas e, agora, deverá ser discutido no centro da política no Congresso Nacional.

Há a oportunidade de se discutir a renda mínima de cidadania, que seria uma garantia junto com os outros programas iniciados na primeira década deste século e depois muito atacados nos governos que sucederam ao impeachment de Dilma Rousseff, isto é, o governo Temer e o atual governo. Ou seja, políticas que eram importantes para a ampliação da inclusão através desses mecanismos sustentados pelo orçamento nacional, porque, afinal, esse orçamento é público e é de todos porque é gerado pelos impostos. Essas políticas deverão persistir dependendo, obviamente, do grau de mobilização que houver pela reivindicação de que elas permaneçam.

Mas o fato é que essa situação do coronavírus e dessa economia é tão grave que foi capaz de despertar o Estado e a sociedade para esses problemas e para a necessidade de medidas duradoras e estruturais de inclusão e de responsabilização do Estado e da sociedade brasileira como um todo em relação aos mais pobres, aos extremamente pobres e aos excluídos.
 

Como evitar que ações de combate e contenção da doença não se tornem mais um objeto de coerção e cerceamento de liberdades, especialmente no contexto das periferias?

 Esse ponto diz respeito, sobretudo, às expressões das comunidades. É preciso que as comunidades que lá estão organizadas, as ONGs que trabalham com o foco na questão da liberdade de expressão, contra o cerceamento de liberdades, estejam atentas. Essas distorções podem perfeitamente ser possíveis. Temos o exemplo tão forte da Hungria, em que o ditador – ou ditador travestido de presidente [o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán] – aproveitou para tornar muito menos claros os cerceamentos de liberdades, utilizando o tema da pandemia e dizendo que é para evitar que circulem informações que contradizem as ordens do poder público. Essa questão é muito importante, temos diversas ONGs trabalhando com isso e acho que a própria comunidade organizada precisa se preparar para denunciar caso isso venha a ocorrer.

 Quais os desafios para inserir as pautas da saúde pública como um dos elementos para a busca pelo desenvolvimento, tomando a realidade de um país como o Brasil?

Tenho pensado muito nisso, porque existe um conceito de saúde em todas as políticas que colocam a saúde como um elemento imprescindível para haver desenvolvimento econômico, mas, sobretudo, desenvolvimento, que é um conceito muito mais amplo do que desenvolvimento econômico exclusivo. E é importante também que o desenvolvimento, ou um modelo de desenvolvimento, se preocupe com as consequências sobre a saúde. É o que chamamos de “saúde em todas as políticas” e “saúde com todas as políticas”, que é o compromisso da sociedade e o comprometimento explícito de que quando uma política pública vai ser negativa para a saúde da população, vai ser negativa para o ambiente, porque vivemos num ambiente que condiciona nossa saúde.

Esse tema da saúde em todas as políticas é um conceito que tem cerca de dez anos e que tem ‘n’ iniciativas da Organização Pan-Americana da Saúde, dos ministros da Saúde que se reúnem todos os anos, da Organização Mundial da Saúde - OMS, que chama a governança das cidades, as governanças estaduais e nacionais e a própria governança global a se preocuparem com o impacto de determinadas políticas. São, por exemplo, políticas que geram desemprego, como ajustes estruturais, e o desemprego tem uma ligação direta com o adoecimento; não há dúvida alguma.

E, por outro lado, a omissão de políticas, a não política, também é um problema. Por exemplo, uma política não formulada ou mal formulada no campo do saneamento ou da moradia também pode ser geradora de muitos problemas de saúde para a população, principalmente aquela que vive no limite entre viver ou sucumbir. Ou seja, situação da maioria das populações pobres ou muito pobres do Brasil, da América Latina, do mundo.
 

 Em que consiste o conceito de desenvolvimento sustentável e qual o espaço da saúde nesse desenvolvimento? O senhor tem exemplos positivos de lugares que implementaram isso?

 Creio que já toquei nesse ponto de certa forma na questão anterior. A saúde é um dos objetivos para o desenvolvimento sustentável da agenda 2030, do ODS3 [terceiro Objetivo de Desenvolvimento Sustentável], e ali está enunciado assim: assegurar saúde e bem-estar para todos em todas as idades. Então, o enunciado do ODS3 que, afinal de contas, é uma receita, uma sugestão para o mundo adotada por todos os países na Assembleia Geral das Nações Unidas, também foi assinado pelo Brasil.
 

De novo: a saúde é geradora de uma população saudável e mais capaz de contribuir para o desenvolvimento, e o movimento que não se preocupar com a saúde está cavando sua própria sepultura, porque uma população não saudável é uma população não produtiva. Foi a Conferência Rio+20, de 2012, a Assembleia Geral das Nações Unidas de 2015, que adotou a Agenda 2030 e seus ODS como locus da saúde e parte central do desenvolvimento. Ou seja, de novo, cobrando que todas as políticas sejam pensadas também em relação às consequências que têm sobre a saúde, positivas ou negativas, estimulando as que têm influências positivas e procurando deter ou substituir as que têm impacto negativo sobre a saúde da população.

 

Exemplos

Acerca de exemplos positivos, existem muitas cidades no mundo que se colocam como cidades saudáveis, que é o Movimento Cidades Saudáveis. No Brasil existem diversos exemplos, mas que sucumbem, às vezes, com as mudanças de governo. Campinas, em São Paulo, foi, em determinada época, considerada uma cidade exemplar na questão da preocupação com uma população saudável, e não apenas por meio de um sistema de saúde que funciona, mas também através de outras políticas. Temos várias descrições de cidades saudáveis na internet, basta buscar por municípios saudáveis que se encontrão diversas iniciativas sub-regionais, municipais ou intermunicipais que tratam de diversos aspectos, procurando comprometer as políticas públicas com seus impactos na saúde da população.
 

 Uma das críticas aos sistemas de saúde é de que se trata a doença e não a saúde. Quais os desafios para mudar essa perspectiva? Em que medida programas como PSF (Programa Saúde da Família) e o trabalho de agentes comunitários de saúde são importantes para um sistema que vise à saúde e não apenas ao tratamento da doença?

De fato, os sistemas de saúde tendem a tratar a doença, quando na verdade é importante incluir no atendimento aos doentes a promoção da saúde e a prevenção de fatores de risco, a prevenção de doenças e situações negativas para a saúde. E, nessa medida, o Programa de Saúde da Família e os agentes comunitários são muito importantes. Criado já há muitos anos, o PSF teve forte impulso principalmente no governo Lula, mas também no da Dilma, e depois um enfraquecimento com a PEC do Teto de Gastos que tirou bilhões de reais do orçamento da saúde e, com isso, causou um impacto muito negativo nas unidades básicas de saúde, nos programas de atenção primária ou de saúde da família.

Aqui no Rio de Janeiro, o prefeito, para economizar, de uma forma extremamente irresponsável, fechou mais de 150 equipes de saúde da família, deixando áreas da cidade sem esse atendimento e voltando a um modelo em que a pessoa só tem chance de ser atendida quando vai para uma emergência de hospital, se submetendo a uma demora imensa, convivendo com outros problemas muito sérios que ali estão, ocupando um lugar que seria para emergência e com todas as questões negativas que cercam uma situação assim.

 No contexto de uma favela, da periferia, qual a importância de um agente comunitário de saúde?

 Os agentes comunitários são oriundos, em geral, da comunidade ou do território em que estão trabalhando. Essa recomendação de que eles sejam recrutados do próprio território em que vão trabalhar e que sejam capacitados no geral, mas também no específico do território, é muito importante. Afinal, as favelas não são iguais, os territórios não são iguais, as periferias não são iguais, assim como as cidades não são iguais. E quando nós falamos em saúde isso tem uma particularidade ainda mais forte, porque a composição etária, o quadro epidemiológico, a situação de saúde, a própria capacidade do sistema de saúde, a existência ou não de políticas públicas sensíveis ao impacto que elas têm sobre a saúde, tudo isso configura diferentes situações.

Então, o agente comunitário tem um papel de contribuir com a população para organizá-la, detectando problemas e fazendo disso um momento de reflexão com a comunidade e um componente reivindicatório daquela comunidade, daquela população. Além disso, ele tem as funções específicas da saúde que são muito importantes, como o acompanhamento da terapia assistida da tuberculose, as visitas à mulher que está grávida, a crianças pequenas, aos idosos, aos diabéticos, aos doentes em geral, e também uma importante função quanto à promoção da saúde. E, ainda, dentro da promoção da saúde, tem a educação para a saúde, que vai se ter levando em conta a situação concreta que é vivida ali, se tem água ou não etc.

São várias situações e o agente comunitário talvez seja o agente, entre os profissionais de saúde, que mais conhece a sua comunidade e pode formular junto com essa mesma comunidade um processo ou programa de trabalho que responda às especificidades daquela comunidade, daquele território no qual ele foi recrutado e no qual ele trabalhará. Esse é o melhor modelo.

 Como avalia a política de saúde pública dos últimos governos do Brasil, ainda antes da pandemia? E podemos acreditar em mudança desse quadro depois do coronavírus?

 A política de saúde no Brasil se materializa na construção de iniciativas, de práticas de saúde e teve um especial brilho de qualidade na primeira década do século e até o final dos governos Lula e Dilma. Ali tivemos o ápice do sistema quanto à atenção primária, quanto à imunização, que já vinha de outros tempos, pois nada é invenção desses governos, mas eles souberam manter e fortalecer. Depois disso houve, principalmente com a PEC do Teto de Gastos, um expressivo desfinanciamento do sistema de saúde, e aí não tem Deus que acuda. Se não houver recursos financeiros, pessoal bem treinado, não vamos conseguir fazer um sistema de saúde adequado e com uma visão, como já se falou aqui, que não é só da doença, mas também é uma visão que prioriza o tema da saúde.

Eu acho que nós vamos sair mudados dessa epidemia, sem dúvida. A sociedade está valorizando profundamente a sua saúde, a saúde coletiva, ao respeitar na maior parte do tempo o isolamento social e quando não acata os péssimos exemplos do presidente da República. O que vemos é isto, que as pessoas estão mudando. A saúde vai preocupar durante dois ou três meses; a proteção, a prevenção, o cuidado, a própria higiene, tudo isso vai estar no nosso cotidiano, nos cercando durante todo esse tempo que durar o esforço de resguardo.

Quanto ao sistema de saúde, o ministro [da Saúde, Luiz Henrique] Mandetta, tem sido extremamente didático, tem mostrado que a população vai sair sabendo muito mais sobre o sistema de saúde e valorizando muito mais o Sistema Único de Saúde, o SUS. Aliás, um SUS que é tão combatido até agora e que está mostrando sua fortaleza, sua capacidade de responder a uma situação tão grave da melhor forma possível, apesar de se ter lançado nos últimos dois ou três anos o financiamento que se agudizou nos governos Temer e Bolsonaro. Apesar disso tudo, o sistema tem mostrado sinais de robustez, de qualidade e respeito da população, que aplaude os médicos e profissionais de saúde em quase todos os finais de noite, tanto em lugares ricos como nos lugares pobres.

Eu tenho certeza que vamos sair mudados, agora, o que vai acontecer nesse governo que tem ainda mais de dois anos pela frente é o que nós não sabemos. No retorno ao que é dito, entre aspas, “à normalidade”, não sabemos como será o repuxo da crise econômica e quanto a saúde vai ser afetada também em seus orçamentos. Os cortes poderão ocorrer para poder compensar que se continue pagando a dívida pública. Ou seja, vamos ter de tomar medidas sérias quanto a essa economia que vive para si mesma e não para as pessoas.
 

 Qual a sua avaliação sobre a produção científica no Brasil? Como estamos diante das pesquisas em torno do coronavírus?

 Toda produção científica brasileira tem dado demonstrações sobejas da sua qualidade. Eu quero exemplificar com a própria Fundação Oswaldo Cruz, onde trabalho, porque fomos capazes de, rapidamente, fazer testes, produzir insumos, treinar pessoas, qualificar outros laboratórios e, depois, quando tudo explodiu em termos de demanda, claro, devem ser colocadas outras instituições que não apenas uma instituição científica como a Fiocruz.

Mas é preciso se ter consciência de que a ciência brasileira, a saúde pública, é tão científica quanto o biológico, tanto quanto o social. Nós temos três pernas para a produção científica, que é saúde e bem-estar, a questão biológica e a questão das ciências clínicas, falando na área da saúde. Tanto a clínica como a saúde pública e a ciência básica na área da saúde têm dado essas demonstrações, respondendo de forma qualificada. E, agora, começaram também a ser resgatadas as condições de financiamento de ciência no Brasil pela imposição que essa epidemia do coronavírus colocou para os governantes e políticos tradicionais do Congresso Nacional. É aí nós esperamos que agora também a ciência seja mais valorizada a partir da situação em que se encontra o país no enfrentamento das questões relacionadas a essa epidemia.

 A quarentena, a redução das interações sociais, é um remédio duro com efeitos econômicos, sociais e mesmo psicológicos. Mas, ainda assim, diante do atual quadro, por que é importante manter o distanciamento social?

 Não há dúvidas de que o distanciamento social é importante, a experiência vem mostrando isso. E não é um conceito e uma prática brasileira, é a referência mundial que nos colocou esta como uma das principais alternativas para que a epidemia transcorra com menos mortes. Para isso, precisamos ter um sistema de saúde preparado, e a não explosão de casos, sobretudo dos que precisam de hospitalização e principalmente leitos de tratamento intensivo, só pode ser evitada efetivamente com a implementação desse distanciamento social. Essa medida é dura, tem efeitos de toda ordem, econômicos, sociais, psicológicos, mas tem uma importância capital.

Nós devemos manter essa situação, claro, lembrando sempre que há determinados setores que precisam estar liberados para que circulem alimentos, medicamentos. Há uma série de atividades que, com cuidados, devem ser praticadas, mas protegendo essas pessoas da forma como tem sido preconizado pelo Ministério da Saúde.

Gostaria de fazer uma menção também aos profissionais de saúde, pois são eles que estão na linha de frente, são eles que estão em contato com os portadores, doentes da Covid-19 e eles precisam ter uma proteção também das secretarias de saúde. Precisamos que os itens de proteção individual cheguem com qualidade e abundância para que os profissionais de saúde não se infectem. Lembrem-se de que em países como a Espanha, 14 a 15% dos casos confirmados são de profissionais da saúde que caíram no campo de batalha. O Brasil precisa evitar isso dando toda ênfase possível à proteção dos trabalhadores da saúde.

 Quais as suas recomendações para que se possa minimizar os efeitos da quarentena sobre a vida das pessoas?

Para essas recomendações existem várias dimensões. A primeira é a dimensão econômica. Não é possível que as pessoas se cuidem sem renda, como no caso dos pobres e extremamente pobres ou no caso, como já se falou muito, dos autônomos e daqueles que perderam seus empregos. Primeiro, tem que ter essa preocupação e um economista já disse: tem que emitir moeda, é o fim da questão orçamentária, da responsabilidade fiscal, de todas essas coisas. Nesse momento, precisa fazer chegar dinheiro às pessoas para que elas possam se alimentar, possam comprar produtos de higiene pessoal, possam comprar água, pois muitas favelas não têm nem água; enfim, que possam prover as coisas mínimas para sua vida.

Em segundo, temos os efeitos psicossociais. É preciso, também, que as pessoas descubram algum benefício em ficarem retidas em suas casas. As piadinhas que circulam na internet são das mais variadas configurações, como quantos divórcios vão ocorrer etc. Ou seja, tratam sobre os conflitos gerados por se permanecer um período tão longo de limite de liberdade. Por isso a internet se faz tão importante neste momento. Praticamente todos têm WhatsApp, claro que existe um grande contingente que é excluído da era digital no Brasil, mas temos muita gente que já tem esse acesso. Por isso tem que liberar gratuitamente a internet, porque por ela o sistema de saúde poderá se comunicar e as pessoas poderão se comunicar entre si, reduzindo a sensação de isolamento. Assim, entramos no terceiro ponto.

E, por fim, podendo acessar canais, contatos, grupos de psicólogos ou psiquiatras – e o sistema de saúde pode prover isso também – que possam conversar com a pessoa que está mais sozinha e se sentindo desesperada. Eu acho importantíssimo que isso seja imediatamente acionado e também faz parte do sistema de saúde. Não vi o ministro nem ninguém falar sobre esse ponto, mas isso também precisa ser acionado com urgência, pois o auxílio psicológico e a forma de quebrar o isolamento passa, neste momento, pelo acesso à internet.

 

Paulo Marchiori Buss é médico, graduado pela Universidade Federal de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, mestre em Medicina Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e doutor em Ciências pelo Programa de Saúde Global e Sustentabilidade da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. Também é professor emérito da Fundação Oswaldo Cruz, possui residência médica em Pediatria e é especialista em Pediatria e em Saúde Pública. Pesquisador e professor titular da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, ainda é membro titular da Academia Nacional de Medicina do Brasil e membro honorário da Academia Portuguesa de Medicina e da Academia Nacional de Medicina da Argentina. Atualmente é diretor do Centro de Relações Internacionais em Saúde da Fiocruz e do Centro Colaborador em Saúde Global e Cooperação Sul-Sul da Organização Pan-americana/Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS).

Pubicado no IHU Online, em 08 Abril 2020.