Rossano Cabral fala sobre patologização da infância, na segunda temporada do Enloucast – o podcast ‘fora da caixinha’

Rossano Cabral fala sobre patologização da infância, na segunda temporada do Enloucast – o podcast ‘fora da caixinha’

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A segunda temporada do Enloucast – o podcast fora da caixinha – está começando e traz como convidado o psiquiatra Rossano Cabral Lima, professor associado do Instituto de Medicina Social da Uerj e líder do grupo de pesquisa do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental da Infância e Adolescência (Lepsia) do Instituto. 

Em entrevista às apresentadoras Camila Motta e Jéssica Marques, da equipe do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (Laps/Ensp/Fiocruz), Rossano, que também é secretário nacional do Capítulo Brasileiro da Associação Mundial para Reabilitação Psicossocial (WAPR-Brasil) e autor do livro Somos Todos Desatentos? O TDAH e a Construção de Bioidentidades, alerta para o cuidado ao definirmos o que é patológico em crianças, devido à ampliação de diagnósticos de transtornos mentais observada na atualidade.

Conforme explica Rossano, essa cautela é fundamental para evitar a medicalização desenfreada. “Definir o critério de patologia é muito mais difícil em crianças, porque elas estão em mudança permanente, e situações consideradas normais em determinada etapa da infância podem ser consideradas patológicas em outras”, alerta.

Para o professor, observar certos referencias e comportamentos ajudam a orientar definir se uma situação está dentro da normalidade ou se há necessidade de uma avaliação, de um diagnóstico e, se for o caso, um tratamento. Uma vez identificada alguma patologia, observa, é “importantíssimo” que o trabalho desenvolvido seja multiprofissional, intersetorial, integrado. “No SUS, em nível de atenção básica, o diagnóstico pode ser feito por um pediatra. Mas em casos mais complexos o psicólogo e o Psiquiatra têm papel importante, inclusive, no combate ao estigma que, geralmente, está ligado ao tratamento em saúde mental”, explica.

Rossano também chama atenção para o aumento na patologização de transtornos mentais e na prescrição de remédios, em especial para crianças, destacando a “onda” mundial de diagnóstico de TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade), observada no final dos anos 1990, e, mais recentemente, o diagnóstico de autismo.

“O que estou chamando de onda, não desqualifica o diagnóstico, muito menos as pessoas que se tratam e recebem esse diagnóstico, mas questiono o aumento na incidência da patologia”, explica.

Conforme lembra o professor, nas últimas décadas, tivemos um aumento do nível de conscientização sobre saúde mental infantil-juvenil, quanto ao fato de que crianças e adolescentes podem sofrer, podem adoecer mentalmente – o próprio acesso a serviços e tratamento, que era muito pequeno antes, vem aumentando gradualmente. “Mas, isso vem tendo como efeito colateral, uma certa inflação de diagnósticos e consequentemente também do uso de psicofármacos”, avalia.

Rossano explica que a medicalização traz uma série de efeitos colaterais indesejáveis e é preciso ter cautela ao expor a criança a esse tipo de substâncias. “Medicamentos classificados na categoria dos antipsicóticos são usados de maneira geral para questões comportamentais. No entanto, podem levar a alterações metabólicas importantes, como aumento de apetite, ganho de peso, aumento de glicose, insulina, colesterol, triglicerídeos, e alterações endócrinas, como aumento da prolactina”, observa.

Há também, conforme salienta o professor, outra classe de medicamentos, os estimulantes, substâncias próximas do grupo das anfetaminas, usados para transtornos de déficit de atenção e hiperatividade, como a ritalina e o venvanse, que vão produzir efeito quase oposto ao dos antipsicóticos. “Geralmente, produzem redução do apetite, um emagrecimento que precisa ser acompanhado, e, em algumas crianças, o uso prolongado pode levar a uma desaceleração da curva do crescimento”, diz.

Rossano recomenda que crianças muitos pequenas, com menos de cinco anos de idade, tenham acompanhamento pediátrico ao lado do acompanhamento psiquiátrico, e orienta que, por não haver muita evidência, de segurança e efetividade dos psicofármacos nessa faixa etária muito precoce, “é preferível que sejam evitados e que se lance mão de outras estratégias terapêuticas, psicoterapias, terapias ocupacionais etc.”.
 

Redes sociais e pandemia no contexto da saúde mental

Rossano também aborda no podcast o cenário recente da Covid-19, no que diz respeito à saúde mental. “Ainda estamos avaliando a real dimensão dos impactos da pandemia na vida e na saúde mental das crianças, principalmente, em médio e longo prazo”, diz.

Conforme observa o professor, alguns estudos revelam que houve na pandemia uma onda de detecção de sintomas emocionais, mas é preciso cuidar para não se encaixar tudo num diagnóstico psiquiátrico. “A pandemia acabou também dando mais visibilidade a temas de saúde mental, inclusive voltadas a infância e a adolescência”, diz.  

Quanto às redes sociais, Rossano lembra que, mesmo antes da pandemia, já havia estudos mostrando, principalmente na adolescência, uma relação entre o uso excessivo de telas e uma incidência maior de sintomas ansiosos e depressivos, não necessariamente transtornos. Para o professor, o difícil é saber o que foi causa e o que é consequência. “Foram as telas que levaram ou levam a sintomas ansiosos ou depressivos? Ou são adolescentes com mais ansiedade e depressão que buscam mais as telas?”, indaga.

De todo modo, Rossano enfatiza que os contextos sociais e econômicos estão intrinsicamente ligados a esse problema e alerta para necessidade de se pensar a saúde mental não apenas enxergando “esse fenômeno por meio da lente do sofrimento psíquico individual, mas também por meio do sofrimento social”.
 

Sobre a série Enloucast 

Enloucast, o podcast fora da caixinha, é uma iniciativa do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (Laps/Ensp/Fiocruz), em parceria com o Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz e o CEE Podcast, e teve seu lançamento em 9/11/2023, no 7º Seminário Internacional Epidemia das Drogas Psiquiátricas, com o objetivo de ampliar o debate sobre Saúde Mental para além dos muros da Academia.

O perfil dos entrevistados inclui usuários, ex-usuários, sobreviventes (expressão utilizada para identificar pessoas que conseguiram superar o modelo psiquiátrico de tratamento) e profissionais e pesquisadores de saúde mental, que desenvolvem práticas inovadoras. A ideia é trazer para a pauta a visão de uma saúde mental mais ampla, humanizada, para além da ausência de doença, da ideia de transtorno e que ultrapasse o caminho da medicalização. 

As entrevistas do Enloucast podem ser acessadas na plataforma Spotify, no canal do Laps no Youtube e no blog do CEE-Fiocruz.

 

Assista aos episódios da série Enloucast

2ª Temporada

Rossano Cabral fala sobre patologização infantil, em novo episódio do Enloucast – o podcast ‘fora da caixinha’ do CEE

1ª Temporada

Saúde mental, desmedicalização e humanização em pauta no ENLOUCAST, o programa ‘fora da caixinha’, que estreia no CEE Podcast – com Paulo Amarante

Hamilton Assunção, músico da banda Harmonia Enlouquece, é o novo entrevistado do Enloucast – o podcast ‘fora da caixinha’

Casa Tuxi, a pousada da inclusão e do acolhimento, em pauta no terceiro episódio do Enloucast 

Arte como terapia, em mais um Enloucast, o podcast ‘fora da caixinha’ do CEE-Fiocruz

Da esquerda para direita Jessica Marques, Rossano Cabral Lima e Camila Motta