Parar a violência e socorrer as vítimas!
O ataque mais letal já registrado sobre um serviço de saúde na história ocorreu no dia 17 de outubro de 2023, contra o Hospital Árabe al-Ahli, localizado no centro de Gaza, deixando 471 mortos e 342 feridos, segundo o Ministério da Saúde de Gaza[1], vítimas inocentes que incluem doentes, crianças, mulheres, médicos e outros profissionais de saúde.
De imediato, a OMS denunciou a bárbara ocorrência[2] e protestou com veemência, apelando pela imediata proteção dos civis e dos profissionais de saúde. A OMS também exigiu que as ordens de evacuação de hospitais devem ser revertidas e que o direito humanitário internacional deve ser respeitado, o que significa que os estabelecimentos de saúde devem ser ativamente protegidos e nunca visados.
É a mais recente atrocidade deste conflito brutal, crime de guerra passível de ser denunciado ao Tribunal Penal Internacional, como está explicitamente definido no Estatuto de Roma[3], ao qual o Brasil aderiu desde 2002, também previsto nas Convenções de Genebra[4], núcleo do direito humanitário internacional e que regula a condução de conflitos armados.
O bárbaro evento contra o já frágil sistema de saúde de Gaza mobilizou o mundo, gerando protestos na maioria dos países árabes do Levante[5], da Península Arábica e do norte da África, mas também em países do Ocidente. Todos os grandes jornais do mundo estamparam a notícia na primeira página, e no seu interior espelharam as duas narrativas sobre as responsabilidades pelo massacre: ataque de Israel ou foguete originário da Jihad Islâmica?
O lamentável episódio com mortes e feridos no hospital de Gaza também impactou a reunião do Conselho de Segurança da ONU, que votava a resolução sobre o conflito proposta pelo Brasil, que preside o órgão neste mês de outubro. A votação no Conselho de Segurança, realizada no dia 18 de outubro, produziu uma das maiores decepções e frustração na comunidade internacional, que não aprovou o texto devido ao anacrônico dispositivo do veto, acionado pelos Estados Unidos.
Contudo, a apresentação de um novo texto pelo Brasil não está descartada. Resta ainda uma ponta de esperança na cúpula internacional sobre a guerra, convocada pelo Egito, que será realizada dia 21 de outubro próximo, sábado, no Cairo.
A estas alturas, permitimo-nos recordar o leitor sobre a sequência de eventos da guerra entre o Hamas e o Estado de Israel.
Dez dias de horror e suas trágicas consequências
Nas primeiras horas de sábado, 7 de outubro de 2023, o grupo armado do Hamas em Gaza lançou milhares de foguetes sobre as regiões sul e central de Israel. O sistema de defesa antimíssil, conhecido como Domo de Ferro, conseguiu interceptar um grande número deles, mas infelizmente, dado o ataque massivo, outros conseguiram penetrar a rede de proteção aérea, causando mortes, feridos e destruição de infraestrutura.
Pouco mais tarde, membros militarizados do Hamas entraram em território israelense, tomaram cidades e quartéis próximos a Gaza e feriram e mataram civis e militares israelenses. Soube-se mais tarde que um total de 150 pessoas, entre militares e civis, haviam sido sequestrados e levados para Gaza, onde presumivelmente continuariam vivos.
A resposta do governo israelense não demorou e foi brutal. A Força Aérea conduziu o mais intenso e letal ataque sobre a Faixa de Gaza de que se tem notícia, uma banda estreita de terra de 10x40 quilômetros, onde moram pouco mais de 2 milhões de pessoas.
Segundo o jornal O Globo[6], até essa data, o impacto sobre infraestrutura resultante de ataques em Gaza foram: 8.840 residências destruídas e 5.434 danificadas; sete igrejas danificadas e 11 mesquitas destruídas; 167 unidades de ensino atingidas por ataques aéreos, sendo 20 ligadas à ONU e uma universidade; ao menos seis poços de água, três estações de bombeamento, 1 reservatório e 1 usina de dessalinização danificados.
A mesma fonte assinala que mais de 1 milhão de pessoas foram deslocadas em Gaza, mais de 352 mil estão em abrigos da ONU no sul e centro de Gaza e mais de 55 mil estão em abrigos ao norte. Segundo a OMS e a Organização Internacional das Migrações (OIM), pessoas deslocadas são as mais vulneráveis quanto à saúde, porque são as mais pobres, mais doentes e desnutridas, somando-se as novas circunstâncias, que pioram as condições de vida e, portanto, sua saúde.
Equipes de ajuda humanitária e de saúde, médicos e enfermeiros morreram e muitos estão feridos. Hospitais, postos de saúde e ambulâncias foram atingidos por bombas e total ou parcialmente destruídos. Neste caso, a mesma fonte6 informa que já ocorreram 57 ataques em unidades de saúde, com danos a 26 hospitais e 23 ambulâncias, além do já mencionado bombardeio do hospital. Quatro hospitais do norte de Gaza foram evacuados.
O bloqueio imposto à Faixa de Gaza, que já dura 16 anos, foi radicalmente intensificado e deixou seu sistema de saúde em frangalhos. Sem o suficiente financiamento, sem a necessária ajuda, o sistema de saúde da Faixa de Gaza que já estava na UTI entrou em colapso.
Além dos bombardeios, com o cerco total imposto fez-se o que parecia inimaginável. Piorou-se o que parecia trágico. Ninguém entra, ninguém sai. Foi cortado o fornecimento de água, luz, comida, ademais de todos os insumos de saúde – sangue e hemoderivados, soros, remédios, vacinas, material médico-cirúrgico, entre outros. O combustível para alimentar os geradores dos serviços de saúde está acabando, se é que já não acabou. Não há mais medicamentos para 350 mil pessoas que sofrem de doenças crônicas. Medicamentos e antibióticos para doenças infeciosas e ferimentos não existem mais. As equipes de saúde estão esgotadas, trabalhando sob um stress inimaginável.
No sábado, dia 14 de outubro, o governo israelense baixou ordem para evacuação imediata, em 24 horas, de 1,1 milhão de pessoas da parte norte de Gaza. A ordem de evacuação aplica-se também às equipes médicas e de enfermeiros e a todos os internados em hospitais. Evacuação forçada, como se sabe, representa grave risco de vida para todos os hospitalizados.
O deslocamento em massa, a superpopulação em abrigos precários, a falta de água e de saneamento representam não mais um risco (uma possibilidade matemática) à saúde, mas uma ameaça (volitiva e, portanto, criminal) à vida de todos os habitantes da Faixa de Gaza.
O número de mortes de crianças, mulheres e idosos, israelenses ou palestinos, é o mais recente testemunho da barbárie e da insensatez de um conflito que há muito deveria ter acabado, caso tivessem sido implementadas as resoluções relevantes do Conselho de Segurança das Nações Unidas: 242 (1967), 338 (1973), 446 (1979), 452 (1972), 465 (1980), 476 (1980), 478 (1980), 1397 (2002), 1515 (2003), 1850 (2008) e 2334 (2016)[7].
A Carta Aberta dos sanitaristas do mundo
Chocados com a desumanização obscena, os membros do World Federation of Public Health Associations[8] endereçaram Carta Aberta[9] ao Presidente do Conselho de Segurança das Nações Unidas, ao presidente da Assembleia Geral das Nações Unidas, ao secretário-geral das Nações Unidas, às autoridades máximas de Israel e da Palestina e aos respectivos ministros da saúde, ao diretor geral da OMS e ao Papa Francisco, entre outros, pedindo que usem sua voz, influência e poder para pôr um fim à mais cruel manifestação do Mal no século XXI, esse que tantas esperanças reunia.
Como diz a carta:
Nós vimos a vocês para pedir pela saúde e pela vida de inocentes, palestinos e israelenses, pegos nesta insana e desumana luta entre o Hamas e o Estado de Israel.
Neste momento, não tomamos partido sobre as diferenças políticas que conduziram à violência injustificável contra a vida humana. Como seres humanos, não podemos normalizar, sob pena de nos desumanizarmos, o sofrimento de nossos irmãos e irmãs.
Tudo que queremos de vocês é que usem seu poder, sua influência e sua voz para parar esta insanidade. Tragam luz, onde existe sombra; esperança onde há desespero e ajuda onde há precisão
Todos sabemos que o paradigma do olho por olho e dente por dente somente conduzirá a mais perdas e sofrimentos. Isto tem que acabar!
Os promotores da Carta urgem sobre o imediato cessar-fogo, verdadeira solução para a imensa crise humanitária e de saúde instaladas. Como essa solução têm grandes possibilidades de não ser acatada, devido à radicalização de posições, a Carta propõe a mitigação do imenso sofrimento humano, por meio da criação de corredores humanitários seguros para evacuação de feridos e doentes e entrada de insumos mínimos de sobrevivência (água, comida e insumos de saúde), o asseguramento de que instalações de saúde e refúgio de civis não sejam atacados, e a instalação de hospitais de campanha fora da faixa de Gaza, assim como a mobilização de navios-hospitais das marinhas de países neutros para receber e tratar os feridos e outras necessidades de saúde, com prioridade para criança, mulheres, idosos e outras populações reconhecidamente vulnerabilizadas.
A resolução do Conselho de Segurança da ONU e após
Em 18 de outubro o Conselho de Segurança da ONU reuniu-se para considerar e debater projeto de resolução sobre a crise Israel - Palestina apresentado pelo Brasil. Previa 11 pontos a serem cumpridos pelos envolvidos no confronto, entre os quais[10]:
- A condenação veemente a "toda violência e hostilidade contra civis e a todos os atos de terrorismo".
- A condenação "inequívoca dos ataques terroristas hediondos perpetrados pelo Hamas que tiveram lugar em Israel a partir de 7 de outubro de 2023 e a tomada de reféns civis".
- Sem mencionar nomes, a "libertação imediata e incondicional de todos os reféns civis, exigindo a sua segurança, bem-estar e tratamento humano, em conformidade com o direito internacional".
- Que todos os lados cumprissem totalmente com suas obrigações diante das leis internacionais, inclusive àquelas de direitos humanos e humanitários, de proteção a civis e a trabalhadores humanitários e de garantia de ajuda humanitária para os necessitados.
- A provisão contínua de bens e serviços essenciais a civis, "incluindo eletricidade, água, combustível, comida e suprimentos médicos", que garantam que os civis não estejam desprovidos de itens essenciais para a sobrevivência.
- A rescisão da ordem de evacuação das áreas ao norte de Gaza dada a civis e funcionários da ONU.
- Pausas para acesso de agências humanitárias, bem como estímulo ao restabelecimento de corredores humanitários e outras iniciativas de ajuda humanitária para auxílio a civis.
- O reforço da importância de mecanismos de notificação humanitários para proteger instalações da ONU e de demais postos humanitários, além de garantir a movimentação de comboios de ajuda.
- Respeito e proteção, em conformidade com o direito humanitário internacional, "de todo o pessoal médico e do pessoal humanitário exclusivamente envolvido em tarefas médicas, dos seus meios de transporte e equipamento, bem como dos hospitais e outras instalações médicas".
- Ênfase na importância de evitar repercussões na região e, neste contexto, "apela a todas as partes para que exerçam a máxima contenção e a todos aqueles que têm influência sobre elas a trabalharem para atingir este objetivo".
- A decisão de "continuar envolvido na questão"
A diplomacia brasileira trabalhou intensamente a proposta e encaminhou muito bem as negociações. Doze países[11] entre os 15 que compõem o Conselho aprovaram a proposta brasileira. Houve duas abstenções (Reino Unido e Rússia). Os Estados Unidos, usando o anacrônico e criticado poder de veto, vetou a resolução, tornando-se assim o responsável por uma das maiores frustrações da comunidade global, que ansiava pelo menos pelas urgentes medidas paliativas e mitigatórias contidas na proposta brasileira.
A despeito da imensa frustração, que impulsionou protestos contra os Estados Unidos e Israel no mundo todo, a apresentação de um novo texto pelo Brasil não está descartada. Resta ainda outra ponta de esperança na cúpula internacional sobre a guerra, convocada pelo Egito, que será realizada dia 21 de outubro, sábado, no Cairo.
É urgente parar a violência, socorrer as vítimas, estabelecer a confiança e relançar as bases para o diálogo em busca da paz. Caso contrário, de uma grande prisão a céu aberto que é hoje, Gaza pode se transformar num grande cemitério, onde civis inocentes pagaram com a vida a insensatez dos beligerantes e a omissão da comunidade internacional.
* Paulo Buss é médico, professor emérito da Fiocruz e diretor do Centro de Relações Internacionais em Saúde (Cris/Ficoruz) e membro titular da Academia Nacional de Medicina; Santiago Alcázar É diplomata de carreira, colaborador do (Cris/Fiocruz); Luis Eugênio Souza é presidente da World Federation of Public Health Associations (WFPHA) e professor do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA.
[1] Ver: https://www.moh.gov.ps/portal/en/
[2] Ver: https://www.who.int/news/item/17-10-2023-who-statement-on-attack-on-al-ahli-arab-hospital-and-reported-large-scale-casualties
[3] Ver: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4388.htm
[4] Ver: https://www.icrc.org/pt/guerra-e-o-direito/tratados-e-direito-consuetudinario/convencoes-de-genebra
[5] Levante é um termo geográfico impreciso que se refere, historicamente, a uma grande área que se estende desde o Oriente Médio até o sul dos Montes Tauro, sendo limitada, a oeste, pelo Mediterrâneo; a leste, pelo Deserto da Arábia setentrional e pela Mesopotâmia. Seus habitantes são chamados levantinos. Para alguns geógrafos, a região inclui Síria, Jordânia, Israel, Palestina, Líbano e Chipre; outros agregam porções da Turquia, do Iraque, da Arábia Saudita e do Egito.
[6] Jornal O Globo, edição no. 32.945, de 19/10/2023, pg. 15
[7] Ver: List of United Nations resolutions concerning Israel
[8] Para saber mais sobre a Federação, ver: https://www.wfpha.org
[9] A Carta está disponível em: https://www.wfpha.org/plea-for-peace-a-call-to-protect-innocent-lives/
[10] Fonte: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2023/10/18/hamas-x-israel-o-que-previa-proposta-do-brasil-para-conselho-de-seguranca-e-por-que-eua-vetaram.ghtml
[11] Brasil, França, Malta, Japão, Gana, Gabão, Suíça, Moçambique, Equador, China, Albânia e Emirados Árabes Unidos