Nota sobre as vacinas contra o SARS-CoV-2 – por Reinaldo Guimarães
1. A indústria de vacinas, hoje
Talvez o fato mais espetacular ocorrido no panorama farmacêutico internacional nas últimas décadas tenha sido a emergência e atual hegemonia dos medicamentos desenvolvidos por rota biológica, mormente no campo de macromoléculas, em substituição à mais que centenária rota de síntese química. Para as grandes empresas farmacêuticas esse fato colocou um problema e abriu uma imensa oportunidade. O problema foi a escassa competência tecnológica e fabril das farmacêuticas nessa nova rota: a oportunidade foi a descoberta daquela competência na indústria de vacinas. A resultante foi o início de um intenso processo de fusões e, principalmente,aquisições de indústrias de vacinas por grandes empresas farmacêuticas.
Entre 2005 e 2012, as 13 maiores compras e fusões desse tipo movimentaram cerca de US$ 220 bilhões e transformaram, em 2012, as farmacêuticas GSK, Sanofi, Pfizer, Merck e Novartis nos maiores produtores globais, sendo então responsáveis por cerca de 75% do mercado global de vacinas[1]. Atualmente o ranking pode estar modificado, mas o panorama permanece o mesmo.
Os retratos da indústria farmacêutica global (Big Pharma) em termos éticos e comerciais vêm sendo apresentados há muitos anos e são objeto de farta bibliografia acadêmica e de divulgação desde a publicação por Marcia Angell em 2004 de seu livro A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos[2]. O processo de fusões e aquisições que estamos relatando, entre outras consequências, fez com que as práticas éticas e comerciais da Big Pharmamigrassem para a indústria de vacinas, outrora bem mais comprometida com a saúde pública. Acresce a esse deslocamento, o fato de que a emergência de novas ameaças epidêmicas, algumas delas incidindo nos países do hemisfério norte, aumentaram brutalmente as receitas oriundas da comercialização de vacinas. Vacinas tornaram-se Big Business.
2. As vacinas contra o SARS-CoV-2
De acordo com a OMS, em 29/6/2020, havia 17 candidatas a uma vacina contra o Sars-CoV-2em fase clínica de estudos. Segundo a plataforma tecnológica envolvida, três utilizam vetor viral, quatro são de vírus inativado, cinco a partir de RNA, duas a partir de DNA e três a partir de subunidades proteicas.Em fase pré-clínica são 132 candidatas, sendo 33 utilizando a plataforma de subunidades proteicas e 17 utilizando vetor viral[3].
É saudável uma competição entre fabricantes, plataformas e países diferentes. Isso aumentará as possibilidades em termos de opções de oferta, de eficácia/efetividade e de preços razoáveis entre aquelas que chegarem à fase de registro nas agências nacionais de vigilância sanitária. Essas opções assumem grande importância porque há ainda vários aspectos técnicos que só poderão ser respondidos após o desfecho dos ensaios clínicos de fase III, e pelo menos uma que será respondida apenas após o registro. Esta diz respeito à duração da imunidade conferida pela vacina, o que determinará o lapso temporal de eventuais revacinações. Mas há ainda outras perguntas a serem respondidas, como o grau de proteção conferido pela vacina quando usada em larga escala. A esse respeito, o FDA estabeleceu como norma registrar vacinas contra o Sars-CoV-2 que apresentem, pelo menos, 50% de eficácia para prevenir a doença ou atenuar a gravidade dos casos[4].
Vacinas, mesmo que ferramentas essenciais para o enfrentamento da pandemia, não serão balas de prata, como parece estar sendo esperado por grande parte da população. De resto, o que está ficando claro, é que não haverá qualquer “bala de prata” no enfrentamento da Covid 19
Além disso, a efetividade da vacina dependerá também do número de doses na primo-vacinação, da via de introdução, da necessidade de cadeia de frio etc. Tudo isso garante que vacinas, mesmo que ferramentas essenciais para o enfrentamento da pandemia, não serão balas de prata, como parece estar sendo esperado por grande parte da população. De resto, o que está ficando claro, é que não haverá qualquer bala de prata no enfrentamento da Covid-19.
3. As estratégias multilaterais em curso no campo das vacinas contra o Sars-CoV-2
Durante a atual pandemia e com a participação da OMS, vêm sendo realizados esforços para o desenvolvimento, produção e ampliação de acesso de uma ou mais vacinas contra o Sars-CoV-2. Para unificar os esforços globais, a Global Alliance for Vaccine and Immunization (Gavi) – criada em 2000 com o propósito de ampliar o acesso a vacinas em países pobres e muito pobres – foi apontada como a organização mais adequada para essa tarefa. A Gavi é apoiada por organismos multilaterais (Unicef, Banco Mundial, OMS) e privados (Fundação Gates, indústria biofarmacêutica e outros). Para coordenar a estratégia relativa às vacinas, aGaviconstruiu uma proposta denominada Covax(Global Vaccine Access Facility (Covax Facility), que propõe a constituição de um pool de recursos financeiros para o apressamento no desenvolvimento de vacinas contra o Sars-CoV-2 destinados a todo o mundo.
Para os países pobres e muito pobres (LICs e LMICs[5]), trabalha com a possibilidade de subsídios e doações de vacinas. Para os países de renda média alta e os ricos (UMICs e HICs), propõe um mecanismo de financiamento público (compra antecipada) para que as empresas apressem o desenvolvimento e a produção de vacinas contra o compromisso de garantia de preferência no fornecimento das doses compradas e eventuais compromissos de doação aos países pobres e muito pobres – esse mecanismo, chamado genericamente de Advance Purchase Agreement, está na base do acordo que a Fiocruz estabeleceu com a AstraZeneca/Universidade de Oxford, no valor de US$ 127 milhões para a aquisição de 30,4 milhões de doses da vacina por eles desenvolvida e produzida, incluída a transferência de tecnologia para BioManguinhos e a possível abertura do mercado latino-americano para a vacina produzida aqui.
Embora haja de modo geral uma apreciação positiva desses mecanismos de financiamento com compras prévias ao licenciamento de vacinas e da constituição de um fundo destinado a garantir vacinas para países muito pobres, algumas vozes estão colocando perguntas que consideram não estar ainda adequadamente respondidas. Em resumo, essas questões dizem respeito à falta de transparência nas decisões da Gavi-Covax, à sua falta de experiência na negociação com os países ricos, à extrapolação de seu mandato – originalmente circunscrito a países muito pobres – e à pergunta sobre o motivo de a OMS não ser a formuladora e executora do plano. Um apanhado desses questionamentos pode ser encontrado em recente documento da organização Médicos Sem Fronteiras[6].
4. O lugar do Brasil no panorama das vacinas contra o Sars-CoV-2
A compra antecipada da vacina desenvolvida na Universidade de Oxford e produzida pela empresa britânica AstraZeneca foi anunciada pela Fiocruz em27 de junho passado[7]. A plataforma tecnológica dessa vacina é a de vetor viral. Essa decisão arrojada é correta, no meu ponto de vista, haja vista a garantia de algum grau de prioridade no fornecimento da mesma à população brasileira no caso de um final feliz para o produto. Igualmente relevante é a inclusão de cláusula de compensação tecnológica na compra da vacina,implicando em transferência da tecnologia, somente possível pelas capacidades tecnológica e produtiva já existentes em Biomanguinhos. Mas, a decisão do MS/Fiocruz não é isenta de riscos, haja vista o grau de incerteza sobre o sucesso do produto ao final dos ensaios clínicos. Informação pessoal dada a mim por ator qualificado aponta como algo de 70% a chance de sucesso neste momento.
No caso de sua vacina chegar ao mercado, AstraZeneca pretende produzir numa primeira fase um bilhão de doses. Em operação semelhante à realizada pelo Ministério da Saúde/Fiocruz, os Estados Unidos adquiriram 400 milhões de doses e a União Europeia outros 400 milhões, cada operação no valor de US$ 1,2 bilhão[8],[9]. Isso sugere que, na eventualidade dos ensaios clínicos em curso comprovarem a eficácia da vacina, poderá haver alguma disputa no estabelecimento de prioridade nas entregas aos países que fizeram os acordos de compras antecipadas, a despeito das datas de entrega estabelecidas nos contratos.
Com relação ao mecanismo de acordos de compra de vacinas que ainda não estão registradas, vale a observação de que habitualmente esse procedimento – não apenas para vacinas –não tem acolhida nas regras brasileiras de compras públicas. Espera-se que o Ministério da Saúde tenha tomado previamente precauções junto aos órgãos de controle para que não haja prejuízo ao país e aos servidores responsáveis pela operação no caso de contestação do acordo.
A outra iniciativa doméstica para a produção de uma vacina contra o Sars-CoV-2 está tendo lugar no Instituto Butantan, que, em 11 de junho passado, anunciou um acordo com a empresa chinesa Sinovac para participação em ensaio clínico de fase III de sua vacina. Ela utiliza umaplataforma de vírus inativado, na qual o Butantan possui larga experiência de desenvolvimento e produção[10]. Pelo informe do instituto, o acordo assinado se refere à participação no ensaio, mas abre portas para futura fabricação e cláusula de compensação tecnológica de transferência de tecnologia.Neste momento (2/7), a iniciativa do Butantan aguarda aprovação do projeto de ensaio clínico pela Anvisa.
* Médico. Professor do Núcleo de Bioética e Ética Aplicada da UFRJ. Vice-presidente da Abrasco. Artigo publicado no site da Abrasco em 22-06-2020.
O conteúdo desta publicação é de exclusiva responsabilidade do(s) autor(es), não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz.
[1]https://www.who.int/influenza_vaccines_plan/resources/session_10_kaddar.pdf?ua=1
[2]The Truth. about. Drug. Companies: How. They. Deceive. Us. and. What. to. Do. about. It. Marcia. Angell,. MD;. Random. House,. 2004. No Brasil, “Averdade sobre os Laboratórios Farmacêuticos”. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record, 2007.
[3]https://www.who.int/publications/m/item/draft-landscape-of-covid-19-candidate-vaccines
[4]https://www.the-scientist.com/news-opinion/fda-to-require-50-percent-efficacy-for-covid-19-vaccines-67685?utm_campaign=TS_DAILY%20NEWSLETTER_2020&utm_medium=email&_hsmi=90653921&_hsenc=p2ANqtz-9AmJtcb16_h2PYDnXMDYzyYqZJRLJIAZCXC8VSZelyyrSNLnUTK2vViUWi8hfrmCTJVjASNqaQg4purEuT32JecEluWnM9sFwp-sTFJoFfBqWoYKo&utm_content=90653921&utm_source=hs_email
[5]Classificação dos países segundo níveis de renda, desenvolvida pelo Banco Mundial. HIC, High Income Countries; UMIC, Upper Middle Income Countries; LMIC, Low Middle Income Countries; LIC, Low Income Countries.
[6]https://www.doctorswithoutborders.org/what-we-do/news-stories/news/msf-gavi-must-ensure-covid-19-vaccines-produced-through-its-new-global
[7]https://portal.fiocruz.br/noticia/covid-19-fiocruz-firmara-acordo-para-produzir-vacina-da-universidade-de-oxford
[8]https://www.reuters.com/article/us-health-coronavirus-vaccines/astrazeneca-agrees-to-supply-europe-with-400-million-doses-of-covid-19-vaccine-idUSKBN23K0HW
[9]https://qz.com/1858682/the-us-just-bought-400-million-doses-of-a-coronavirus-vaccine-that-may-never-exist/
[10]http://coronavirus.butantan.gov.br/ultimas-noticias/vacina-feita-a-partir-do-virus-inativado-o-caminho-do-butantan-contra-a-covid-19