Nilson do Rosário: ‘O papel da comunicação em campanhas de vacinação é estratégico’
As campanhas de vacinação têm efeito positivo sobre a população, que demonstra receptividade ao chamamento público e confiança nas orientações divulgadas. Essa foi a principal conclusão da Pesquisa de opinião pública sobre a vacinação emergencial contra febre amarela em 2018, realizada pelo Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz. Alguns desafios, no entanto, impõem-se ao poder público, conforme também indicaram os resultados: é preciso ampliar o alcance das campanhas, potencializar a utilização das redes sociais e, no caso da febre amarela, rever as restrições para recebimento da vacina. “A restrição para aqueles com mais de 60 anos levou a uma cobertura nessa faixa etária muito inferior a das demais. E esse foi o grupo mais levado a óbito, proporcionalmente, na epidemia”, observa, nesta entrevista ao blog do CEE-Fiocruz, o pesquisador Nilson do Rosário da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca e pesquisador associado do Centro.
A pesquisa busca orientar tomadas de decisão pelos gestores nos âmbitos estadual e federal, tendo em vista os riscos de novos surtos e epidemias de febre amarela, doença rural que retornou à estrutura urbana depois de décadas de controle, conforme explica Nilson. Foram realizadas 1.911 entrevistas por telefone, com pessoas de 12 anos ou mais, abrangendo os estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia. Esses estados foram escolhidos por estarem realizando campanha emergencial de vacinação, com dose fracionada da vacina, no momento da pesquisa.
Outro resultado relevante referiu-se ao nível de escolaridade dos entrevistados, diretamente relacionado com a crença ou não de serem os macacos transmissores da febre amarela. “Não se trata de falha subjetiva, individual, mas estrutural, dos governos”, considera Nilson, que assina a pesquisa com Alessandro Jatobá, Ana Luisa Duboc de Araújo, Hugo César Bellas e Valéria da Silva Fonseca, do CEE-Fiocruz. “É uma proposta do Centro ouvir a população e conhecer sua percepção e seu julgamento em relação às iniciativas públicas”, diz o pesquisador.
Leia a seguir a entrevista.
Qual foi o ponto de partida para a realização dessa pesquisa?
Primeiro, a percepção, em vários países democráticos, de uma crescente resistência ou desconfiança da população em relação às chamadas públicas de vacinação, uma mudança muito importante em relação aos padrões que sempre observamos ao longo do tempo. O entendimento de que as vacinas são perigosas, iatrogênicas, causam efeitos colaterais e danos irreversíveis à saúde vem acompanhado de uma resistência às instituições democráticas. Isso nos chamou a atenção, ao lado do fato de termos uma epidemia de febre amarela, que é uma doença rural, em grandes centros urbanos, depois de décadas de controle, e uma reação muito lenta, difusa e desorganizada das instâncias públicas, do SUS, do Ministério da Saúde em relação a esse cenário. Essa combinação motivou a pesquisa. E houve um gancho: em dado momento, alguns estados – Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia– optaram por fazer uma chamada emergencial de vacinação em massa contra a febre amarela, usando a vacina fracionada. Realizamos a pesquisa nesses estados.
Por que uma pesquisa de opinião?
É uma proposta do Centro de Estudos Estratégicos buscar ouvir a população, conhecer seu julgamento, vivência e percepção em relação às iniciativas públicas. Organizamos o questionário com essa perspectiva, para verificar como a população reagiu à iniciativa da campanha de vacinação emergencial.
E o que foi possível destacar nas respostas obtidas?
Houve coisas surpreendentes. A primeira é que as pessoas reagem de maneira bastante comprometida a essas chamadas. O poder narrativo da chamada à vacinação tem efeito muito positivo. O fato de tomar conhecimento da campanha emergencial motivou grande parte das pessoas a se vacinar. Elas, de fato, acompanham as diretrizes que o poder público propõe para a vacinação. Isso é algo muito bom, mas tornou-se também muito preocupante uma vez que houve um excesso de atenção da população às diretrizes normativas, que restringiam a vacinação no caso de determinados públicos-alvo, como os idosos.
As restrições do poder público foram levadas em demasia ‘ao pé da letra’...
Sim. Podemos dizer isso. A restrição da vacina para aqueles com mais de 60 anos levou a uma cobertura nessa faixa etária muito inferior a das demais. E esse foi o grupo mais levado a óbito, proporcionalmente, na epidemia. Em um cenário no qual não se sabe o que acontecerá com a doença, no que diz respeito a uma nova epidemia, essa questão dos grupos vulneráveis é muito relevante.
Qual seria o grau de importância a ser dado pelo usuário, afinal, a essas restrições?
Não está colocado claramente na literatura que as pessoas idosas tenham algum tipo de efeito colateral ou iatrogenia com a vacina contra febre amarela. Quando iniciamos a pesquisa, olhei o site do CDC americano [Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos] e verifiquei que na recomendação a que os cidadãos se vacinem não há menção à idade, apenas ao fato de viajarem para regiões endêmicas, ou onde tenha havido casos da doença. Um contraste com o rigor do Ministério da Saúde brasileiro, em um momento no qual estávamos em situação de risco, em uma epidemia. Verificamos que muitos idosos informaram não terem se vacinado por conta da faixa etária. E os idosos morreram, como mencionei, proporcionalmente, mais do que os demais. Isso é algo inacreditável e doloroso. É preciso também discutir a ideia de idoso, tomado quase como paciente hospitalizado. Há uma certa representação da idade que não corresponde ao real. Os idosos são saudáveis. A rigidez das restrições é algo importante e deve ser repensada.
Esse é um alerta da pesquisa, a uma revisão dessas restrições e da forma com que devem ser comunicadas ao público...
É uma recomendação substantiva.
A epidemia de febre amarela ocorreu em um contexto de crise do Estado. Todo o processo político que envolveu a experiência dramática do impeachment, deixou a estrutura de Estado extremamente paralisada em relação às tarefas estratégicas e cruciais do setor Saúde
Por outro lado, essa a prontidão da população em aceitar as diretrizes normativas não se confronta com a percepção inicial de vocês quanto a uma possível resistência à vacinação?
Sim. No caso da população brasileira essa indisposição não se verificou, como nos países centrais – neste momento, há uma grande epidemia de sarampo em Nova York. A taxa de não vacinação por força de ser contra a vacina foi baixíssima na pesquisa, foi residual, não chegou a 2%. Há um capital simbólico muito forte relativo à confiança nas iniciativas públicas na área de imunização e um potencial de mobilização da sociedade para a vacinação bastante expressivo. Curiosamente, logo após a nossa pesquisa, houve uma campanha grande de vacinação contra o sarampo, com foco em crianças de um a cinco anos, e a resposta positiva foi monumental, apontando para alta confiança no chamamento público. Esse é um capital da esfera pública que deve ser cuidado, lapidado, mantido. O Estado brasileiro precisa melhorar, mas pode ser demonizado. Os resultados mostram que a vacinação é um esforço da esfera pública estatal: 95% ou mais dos vacinados fizeram a vacina no sistema local, no Estado, nos postos de saúde.
A população, por sinal, aprovou o atendimento recebido, de acordo com a pesquisa.
É outra coisa importante. O nível de aprovação dos que buscaram o serviço foi majoritariamente bom, em relação às condições do atendimento e do procedimento da vacina. Em um contexto de crítica brutal à esfera do Estado, o sistema público saiu-se com louvor nesse processo. O julgamento das pessoas foi positivo. É importante chamar atenção para isso, não é algo trivial.
Esse resultado reforça o de uma pesquisa realizada algum tempo atrás pelo Ipea, que verificou que quem usa o SUS aprova...
Talvez sim. É preciso olhar com cautela. As perguntas que fizemos referiram-se à avaliação do atendimento dos profissionais do serviço de saúde onde foi aplicada a vacina e quanto ao tempo de espera. Para avaliar mesmo o SUS é preciso pegar quem está na fila de espera. Quem usa, geralmente, fica satisfeito, tem seu atendimento. Mas há um problema de barreira de acesso, que talvez seja o problema. Talvez a insatisfação da população com o setor Saúde no Brasil tenha a ver não tanto com o momento da utilização mas com o acesso.
Como se verificou na pesquisa a relação entre o nível de escolaridade e vacinação?
A proporção elevada de pessoas com baixa escolaridade que consideraram o macaco responsável pela transmissão e pelos casos de febre amarela, criando-se um ambiente de extermínio de macacos, é certamente algo a se observar, como uma falha imensa, uma falha estrutural, relativa à estrutura educacional do país. Nada há de ideológico nesse comportamento. As pessoas não têm informação sobre coisa alguma, não têm conhecimentos científicos básicos, para gerar capacidade de julgamento, o que é preocupante. Não se trata de falha subjetiva, individual, mas de governos. Se pessoas escolarizadas sabem que não há associação entre os macacos e a transmissão, é porque a falha não é da natureza humana, e sim de acesso a informação.
Que outros resultados detectaram?
Uma fragilidade das campanhas de informação em relação às pessoas elegíveis a receber a vacina. Houve uma proporção alta de pessoas não vacinadas (34%) por ocasião da pesquisa. A expectativa sempre é a de que se alcance 90% de cobertura vacinal. O percentual encontrado foi surpreendente. Isso significa falha de mobilização e de comunicação, justamente em tempos midiáticos. Uma das perguntas que fizemos foi quanto ao uso da internet. A maioria dos respondentes era usuária diária da internet, mas as mídias sociais não se mostraram com papel tão relevante quanto esperávamos. Usuários da internet não sabiam da campanha de vacinação. Tem-se aí um campo grande a se explorar.
A função da comunicação no que diz respeito a campanhas de vacinação é componente estratégico. Faz parte do pacote. Qualidade e a segurança da vacina e comunicação.
Como explicar esse alto índice de pessoas não alcançadas, se, ao mesmo tempo, a pesquisa detectou boa comunicação das diretrizes?
Em relação às diretrizes normativas, estas foram totalmente acatadas. Mas houve alguns pontos cegos, no que diz respeito ao alcance do público elegível. Alguns grupos de indivíduos que deveriam ser atingidos não o foram plenamente. Assim, tanto idosos quanto indivíduos elegíveis que não souberam da campanha emergencial ou não tiveram conhecimento correto acerca da vacinação não foram aos postos. O que a pesquisa destacou, de modo geral, foi a importância de se ouvir a população em relação as iniciativas levadas à frente no campo da saúde no país, promover uma maior aproximação das políticas com a sociedade. A função da comunicação no que diz respeito a campanhas de vacinação é componente estratégico. Faz parte do pacote. Qualidade e a segurança da vacina e comunicação.
O relatório da pesquisa aponta que houve um reconhecimento tardio da gravidade cenário da febre amarela por parte dos governos. De que maneira interpretaram essa demora?
A epidemia de febre amarela ocorreu em um contexto de crise do Estado. Todo o processo político que envolveu a experiência dramática do impeachment, deixou a estrutura de Estado extremamente paralisada em relação às tarefas estratégicas e cruciais do setor Saúde. Já existia preocupação, por conta de uma epidemia urbana de febre amarela em Angola, que chamou atenção, uma vez que, até então, a febre amarela era uma experiência silvestre. E vários sinais se sucederam em finais de 2017 e em 2018, com óbitos de macacos de grande porte. Esses sinais deveriam ter mobilizado de maneira mais incisiva a estrutura de vacinação. O processo começou tardiamente e isso custou vidas. A dinâmica epidemiológica da febre amarela é surpreendente. Não se sabe qual será o ciclo imunológico, por força da hiperexposição à doença. Hoje, temos muito menos casos e, portanto menos, óbitos. O que vai acontecer agora, durante o período crítico de dezembro a fevereiro, é uma grande pergunta. Depois que uma ameaça sanitária é enfrentada, minimizada ou superada, sai da agenda pública. Isso nos inquieta. É preciso manter a mobilização em relação à vacinação. Se houver emergência epidêmica de febre amarela, em estados, como Paraná, Rio Grande do Sul, ou na região Centro-Oeste, temos as experiências valiosas pesquisadas, com os pontos críticos a serem aperfeiçoados.
Há risco de a febre amarela sair da agenda em curto prazo?
Isso não foi analisado na pesquisa, mas de qualquer maneira, não vejo grande preocupação em alertar a população, por parte das autoridades sanitárias. Há pouco tempo [novembro de 2018], o pesquisador Akira Homa, em entrevista na Folha de S. Paulo, que chamou atenção para que as pessoas não subestimem a possibilidade de termos um novo surto da doença. Mas ele é uma andorinha solitária fazendo verão. Saíram agora, por exemplo, as metas para os cem dias do novo governo, fui verificar e não vi uma palavra sobre isso. Há uma total ausência do assunto na agenda pública. E após uma experiência traumática.