Marcelo Firpo: ‘Se quisermos retornar a democracia teremos que construir um outro modelo de desenvolvimento’
“Temos uma relação de neoextrativismo e envenenamento, não só dos trabalhadores e da população, mas das bases civilizatórias da democracia e da proteção da vida e do meio ambiente. Estamos em um grande abismo civilizatório”. A análise é do pesquisador Marcelo Firpo da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz). Coordenador do Núcleo Ecologias, Epistemologias e Promoção Emancipatória da Saúde (Neepes) da instituição, Marcelo discute o atual cenário brasileiro no que tange à liberação desregulamentada de agrotóxicos no país, em comentário ao blog do CEE-Fiocruz. Em 2019, já são 74 produtos ligados a agrotóxicos – cerca de um por dia – liberados, sendo já com formalização no Diário Oficial da União. “A forma com que a regulação está sendo violentamente quebrada, só é possível porque o Brasil é um caso absurdo do que alguns autores chamam de paraíso da poluição”, explica.
Para o pesquisador, os custos ambientais e da saúde não são contabilizados e são radicalmente desconsiderados na meta de cálculos de produtividade. “Quanto custa o tratamento de um câncer para o SUS? Uma fortuna! Milhares de casos poderiam ser evitados e prevenidos se houvesse maior controle de agrotóxicos, que podem provocar não só câncer como outras doenças graves e insidiosas”, observa.
Confira abaixo o comentário.
O modelo de desenvolvimento baseado no neoextrativismo, somado à expansão do capitalismo neoliberal, que radicaliza o processo da desregulamentação, é claramente incompatível com a democracia e o Estado democrático de direito, tal como previsto mesmo na perspectiva liberal do século XX. Entretanto, isso não é específico do setor do agronegócio, que demanda agrotóxicos e é químico-dependente; a desregulamentação afeta também, por exemplo, o setor da mineração. Não é à toa que as tragédias ocorridas em Minas Gerais, em Mariana e, três anos depois, em Brumadinho, seguem padrões semelhantes, estão vinculadas ao neoextrativismo e à exploração de recursos naturais em situações ambientais insustentáveis e desumanas, em que a vida é facilmente desprezada.
No caso especifico dos agrotóxicos, lideranças do agronegócio no Brasil alegam que sua regulamentação impede uma maior produtividade. Não é bem assim por duas razões fundamentais. Primeiro, o que aumenta a produção do agronegócio é a expansão das áreas plantadas, mas isso não significa uma maior produtividade por área plantada pelo uso do agrotóxico. A natureza não é uma fábrica isolada, um ambiente artificial, e, para se criar o monocultivo de grande extensão, principalmente, no caso dos grãos como soja e milho, por exemplo, é necessário eliminar a vida daquele ecossistema que compete com o plantio. É por isso que a origem da indústria dos agrotóxicos se encontra nas tecnologias bélicas de armas químicas usadas na I Guerra Mundial. Houve apenas um deslocamento: da eliminação dos inimigos humanos para os inimigos da natureza, os insetos, plantas e fungos que normalmente vivem naqueles ecossistemas. Por isso que a agricultura do futuro é a agroecologia, que convive com a vida dos agroecossistemas.
A segunda razão é que os lucros da produção agrícola seriam muito menores se os custos das doenças e da destruição ambiental causadas pelos agrotóxicos fossem incorporados. É o que os economistas chamam de externalidade. E para piorar no Brasil os venenos são subsidiados como insumos agrícolas iguais a tratores, e dessa forma deixam de pagar impostos como o ICMS, imposto sobre importação, o PIS/PASEP e o COFINS.
Há, portanto, um grande divórcio entre economia, natureza e democracia, que, na verdade, sempre existiu no capitalismo e na divisão internacional do trabalho. Só que está piorando nos últimos tempos de financeirização neoliberal, com a mercantilização da vida e da natureza.
Há, portanto, um grande divórcio entre economia, natureza e democracia, que, na verdade, sempre existiu no capitalismo e na divisão internacional do trabalho. Só que está piorando nos últimos tempos de financeirização neoliberal, com a mercantilização da vida e da natureza.
No século XXI temos um número crescente de países que se tornaram os produtores e exportadores de agrotóxicos. O Brasil detém 20% do mercado mundial de agrotóxicos, com cerca de 10 bilhões de dólares anuais. Isso decorre de uma situação absurda de separação entre democracia e proteção à vida, que estão presentes na Constituição brasileira, e o poder econômico e político que esse setor possui e se expressa na bancada do agronegócio e nos atuais ministérios da Agricultura e do Meio Ambiente. Aliás, lembremos que Katia Abreu e outras lideranças do setor sempre chefiaram o Ministério da Agricultura antes mesmo do impeachment da presidenta Dilma Roussef. O que temos agora é uma radicalização da desregulamentação e desproteção da vida. Vivemos com certeza um retrocesso civilizatório.
Em 2011, foram aprovados 147 agrotóxicos, ainda no governo do PT, e isso já era considerado absurdo. Após o impeachment, em 2016, esse número dá um salto para 277, em 2017, passou para 405, e, em 2018, último ano do governo Temer, vai para 450, isso tudo sem que o ainda chamado pacote do veneno tivesse sido aprovado. Este ainda não está regulamentado. Portanto, vai radicalizar ainda mais esse processo de retrocesso civilizatório.
Como o agronegócio pode se expandir? Somente ampliando o número de áreas cultivadas, geralmente, em terras indígenas, áreas quilombolas ou de proteção ambiental. Será preciso, assim, retroceder em relação aos direitos conquistados desses povos e a uma reforma agrária que, efetivamente, nunca conseguiu avançar. Isso é uma das justificativas do rompimento com o governo anterior e da aproximação do agronegócio com outros grupos que querem um retrocesso dos direitos humanos conquistados.
Estamos vivendo agora a radicalização de um processo que vem de muitos governos. O momento atual, no entanto, rompe compromissos mínimos com a verdade e a democracia, com a racionalidade de proteção à vida e ao meio ambiente.
Os protestos contra o pacote de veneno, em 2018, mostram que a ampla maioria da população é favorável ao alimento saudável e contra os venenos. Um amplo conjunto acadêmico ligado às áreas ecológica, agronômica e da saúde pública também defende um sistema de alimentação com redução crescente e eliminação de substâncias químicas. Se fôssemos uma democracia essa transição, deveria ser viabilizada por meio de um compromisso do Estado, do governo e do Congresso Nacional, apoiada pelo conjunto da sociedade.
Vários países estão caminhando para a eliminação gradual de agrotóxicos na produção agrícola. Por que no Brasil essa discussão não é viável? Porque há um descompasso radical entre, de um lado, a vontade pública e as bases constitucionais de defesa do direito social, do direito à saúde e do direito ao meio ambiente equilibrado, e de outro os interesses e práticas da política concreta que os vários setores econômicos e ministérios ligados à economia, à agricultura e à mineração praticam, um processo de desregulamentação radical.
Há um descompasso radical entre, de um lado, a vontade pública e as bases constitucionais de defesa do direito social, do direito à saúde e do direito ao meio ambiente equilibrado, e de outro os interesses e práticas da política concreta que os vários setores econômicos e ministérios ligados à economia, à agricultura e à mineração praticam, um processo de desregulamentação radical.
Desde a década de 90, o Brasil põe-se radicalmente na contramão em relação ao que acontece na Europa e mesmo nos Estados Unidos, no que diz respeito a uma busca pela transição para produtos orgânicos e para a produção agroecológica. Isso só seria viável aqui, se tivermos uma agricultura não baseada em monocultivos de grandes extensões. Somente é possível trabalhar em agrossistemas de forma saudável, sem uso de agrotóxicos e venenos e com respeito à natureza, se a produção não elimina a diversidade da vida e trabalha-se em harmonia com as características daqueles ecossistemas, do clima, das águas e dos recursos hídricos. É possível plantar até mesmo no semiárido sem o uso intensivo de agrotóxicos, como demonstram várias experiências agroecológicas.
Existem, sim, alternativas, mas como fazer se o sistema apoia o uso de agrotóxicos, se os impostos sobre agrotóxicos são desonerados da mesma maneira que enxadas ou tratores? É preciso que fique claro que os impostos no Brasil subsidiam o uso de venenos, de agrotóxicos.
Os países emergentes, que, antes, eram chamados “em desenvolvimento” ou do terceiro mundo, estão ficando com a parte mais suja da produção e do mercado. A Europa está parando de utilizar substâncias químicas e agrotóxicos, mas deixa para esses países a economia suja do agronegócio com agrotóxicos. Hoje países como a China, a Índia e Israel, além do Brasil, assumem papel de destaque no mercado do veneno, enquanto isso países europeus e mesmo da América do Norte praticam o Greenwashing, dizendo que estão se tornando mais sustentáveis.
Quem mais sofre com isso? Os trabalhadores que manipulam o veneno, as populações que vivem ao redor das áreas pulverizadas. Há casos absurdos de pulverização aérea no Brasil que afetam escolas, residências, crianças, moradores. Além de impedir a produção de forma saudável, uma vez que as nuvens de veneno se deslocam e atingem os agricultores familiares que plantam ao redor.
Temos uma situação que eu chamaria de quase bélica, uma economia de guerra na “paz” do crescimento econômico sem limites como receita única, produzida por uma economia extrativista. Precisaremos pensar em como reconstruir nossa organização político-social para enfrentar esses retrocessos. Se quisermos retornar a democracia teremos que construir um outro modelo de desenvolvimento. Esse modelo de desenvolvimento neoextrativista em que o Brasil apostou para tirá-lo da pobreza ao final acaba nos levando novamente para a miséria e para pobreza, e de forma bem mais radical e muito mais acelerada. Pobreza de espírito leva a uma riqueza material desumana, sem ética, desigual e destrutiva.
Há casos absurdos de pulverização aérea no Brasil que afetam escolas, residências, crianças, moradores. Além de impedir a produção de forma saudável, uma vez que as nuvens de veneno se deslocam e atingem os agricultores familiares que plantam ao redor.
Portanto, não vejo como enfrentar o tema dos agrotóxicos isoladamente. É necessário reconstruir as bases da democracia no Brasil e em toda a região repensando a questão do desenvolvimento no contexto de uma crise civilizatória maior. Isso implica enfrentar o que se tornou o capitalismo financeiro neoliberal e que, nos últimos anos, só se sustenta a partir de posições fundamentalistas extremadas baseadas no controle seletivo da desinformação, no ódio, no racismo, na violência contra negros, indígenas, mulheres e comunidades LGBTI. Mesmo no caos e nas trevas, vejo motivos para falar das flores, para continuar lutas e resistências com tantos grupos e movimentos que continuam a dedicar suas vidas por dignidade, conhecimento e transformação. Diversas alternativas já estão por aí, principalmente envolvendo jovens e novas utopias em construção em diversas escalas. São as novas economias solidárias, circulares e do compartilhamento, as práticas de democracia direta, a agroecologia, as reformas agrária e urbana, as práticas alternativas de saúde dentro do SUS. Tudo isso implica num diálogo intercultural colaborativo entre sábios e sábias das várias esferas, sejam indígenas, camponeses e cientistas sensíveis. O grande desafio é como retomar e ampliar esse fio da meada. No momento pequenas vitórias, como a proibição da pulverização aérea no Ceará, representam pontes para outros futuros. (Comentário a Daiane Batista/CEE-Fiocruz)
Marcelo Firpo: pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz). Coordenador do Núcleo Ecologias, Epistemologias e Promoção Emancipatória da Saúde (Neepes)