Luiz Neves, prefeito de Piraí: ‘O movimento da população se dá nos municípios, mas ninguém presta atenção’
Esta entrevista foi realizada antes de ter início no país a crise sanitária provocada pela pandemia de coronavírus, e volta-se às eleições municipais de outubro deste ano. Embora isso agora pareça distante, tendo em vista as urgências e emergências a serem enfrentadas no curto prazo por conta da covid-19, consideramos a pertinência, neste momento, do que tratamos a seguir, tendo em vista que a pandemia vem levando à discussão quanto a haver ou não eleições em outubro. O entrevistado defende que sim.
É nos municípios que os cidadãos vivem seu dia a dia. São as prefeituras que criam condições de cidadania aos seus habitantes, na atenção à saúde, no recolhimento do lixo, no calçamento das ruas, entre outros serviços. Voltar a atenção ao nível local pode trazer pistas relevantes para uma análise da conjuntura política nacional. No entanto, mídia, analistas políticos e outros segmentos da sociedade pouca atenção dispensam ao nível local, observa o prefeito de Piraí, Luiz Neves, nesta entrevista ao blog do CEE-Fiocruz, concedida aos pesquisadores Sonia Fleury e Assis Maffort, integrantes do grupo de estudos de conjuntura do Centro, e Eliane Bardanachvili, do setor de Comunicação.
Ele dá como exemplo o caso do Rio de Janeiro, no pleito anterior, de 2016, em que, de 92 municípios, só oito prefeitos foram reeleitos, destacando-se a vitória de nomes até então ilustres desconhecidos. “Isso já foi uma antecipação do que seriam as eleições nacionais”, aponta. “Esse fenômeno se deu em várias cidades. E antes das eleições nacionais. Mas como ninguém olha para os municípios, ninguém prestou atenção. Olham, no máximo, para algumas capitais. Há um equívoco dos analistas políticos nesse sentido. O movimento da população se dá nos municípios”, analisa Luiz Neves, ou Luizinho, como é também conhecido.
Médico pediatra, ex-secretário de Saúde de Piraí, reeleito à Prefeitura da cidade, em 2016, pelo PDT, e presidente da Associação de Prefeitos do Estado do Rio de Janeiro, Luizinho destaca que as políticas públicas cada vez mais se municipalizam. “O que precisamos é melhorar a capacidade de o município atender as necessidades do cidadão, e isso implica redistribuição de poder”, considera, apresentando, ainda, na entrevista, seu olhar a partir da instância local, sobre programas sociais, políticas de austeridade, segurança e movimento municipalista, entre outros temas.
“A mídia trata todo dia de saúde no município, dando notícia ruim. Dá a notícia sobre o parto que não foi feito, a unidade de saúde lotada. Mas quando vai falar de política de saúde, ela olha para Brasília, que dá mais repercussão”.
Leia a entrevista, a seguir.
Fale um pouco de sua trajetória política e de sua dupla atuação como autoridade pública e militante do movimento sanitarista, até chegar à representação de prefeitos.
Sempre tive uma atuação participante. Fui representante de turma no colégio, participei de grêmio estudantil, fui do diretório acadêmico na faculdade, em Volta Redonda... Já estávamos em um período de redemocratização, e o diretório tinha uma participação política. Logo que entrei, começamos a fazer greves. Quando vim para o Rio de Janeiro, em 1985, período de transição do regime militar para um governo civil, fui para o Hospital dos Servidores do Estado, onde se iniciava um movimento de redemocratização. Entro, então, nesse movimento; eu era interno e virei líder dos internos do hospital. É da minha natureza... Participei muito ativamente do movimento sanitário do Rio de Janeiro, defendendo o sistema universal, acompanhei a 8ª Conferência Nacional de Saúde. Com isso, via na minha cidade [Piraí] um descompasso enorme, a saúde desorganizada. Tomei, então, a decisão de voltar para lá, para ajudar o movimento político e mudar a situação da saúde. Na eleição de 1992, me pediram para sair candidato a vereador para ajudar a chapa, pois eu era o único médico do nosso lado. Saí pelo PDT para ajudar, mas fui eleito. Começo assim minha participação política. Ganhamos as eleições com o prefeito Tutuca, que me chamou para ser secretário de Saúde, e acabei me envolvendo no movimento dos secretários. Passei a compor o Cosems [Conselho dos Secretários Municipais de Saúde] e, dois anos depois, me tornei presidente do conselho. Daí começa a minha dupla militância de político e executivo. Político e participante do movimento sanitário.
Acha que houve retrocesso, de lá para cá, na prioridade dada à Saúde?
Não, acho que melhorou. De lá pra cá, o movimento dos secretários de Saúde ficou mais organizado, tem mais força e mais compreensão do seu papel. O que percebo é que tanto a mídia quanto o próprio movimento sanitário não compreendem bem o movimento municipalista. Dão pouca força para quem detém 98% de toda a estrutura de saúde do país, onde as coisas de fato acontecem, onde estão os conselhos municipais de Saúde e com quem a população tem um vínculo direto. Avançou-se muito nos municípios. No entanto, busca-se mais discutir o estado, a União, que têm repercussão de mídia maior, do que o município. Se somássemos forças, conseguiríamos mudar um pouquinho algumas lógicas. Até porque o poder dos prefeitos no convencimento de deputados, de influenciar o Congresso, é grande. O movimento de prefeitos, hoje, é muito forte. Veja a marcha de prefeitos como a que foi feita no ano passado [em abril], em Brasília. Ainda que haja divergências, 3 mil prefeitos em Brasília fazendo força em um determinado tema é muito relevante.
A que atribui o fato de a mídia e outros segmentos da sociedade não darem a devida relevância ao movimento municipalista, conforme aponta?
A mídia trata todo dia de saúde no município só dando notícia ruim. Dá a notícia sobre o parto que não foi feito, a unidade de saúde lotada. Mas quando vai falar de política de saúde, ela olha para Brasília, que dá mais repercussão. Até entendo que se tenha que olhar para capital federal, que organiza a política nacional e onde está uma base grande de financiamento. Entendo que seja mais difícil fazer pauta com um conjunto de municípios do que num local só, centralizado; é mais fácil entrevistar o ministro da Saúde do que muitos prefeitos.
Tanto a mídia quanto o próprio movimento sanitário não compreendem bem o movimento municipalista. Dão pouca força para quem detém 98% de toda a estrutura de saúde do país, onde as coisas de fato acontecem
Como vê o sistema de representação dos municípios em âmbito nacional? De modo geral, há uma quantidade grande de associações, como a Confederação Nacional dos Municípios (CNM), a Frente Nacional dos Prefeitos (FNP), a Associação Brasileira de Municípios. Além disso, instituições da área de Saúde de âmbito municipal como o Conasems influenciam tanto os estados quanto a União. Esse sistema de representação dá conta da complexidade dos municípios?
Acho que estamos caminhando para isso. As instituições estão mais organizadas. A CNM abarca todos os municípios e cuida mais dos menores; a Frente Nacional de Prefeitos trata dos municípios acima de 80 mil habitantes. A divisão não é boa, mas, ao mesmo tempo, não deixa de ter vantagens, porque há pressões políticas acontecendo o tempo todo. As duas são muito organizadas. O governo tensiona muito com essas entidades, faz movimentos de cooptação. Há uma tensão; dependendo de quem está nas diretorias, reflui mais para lá, ou para cá. Mas estamos avançando muito.
No que diz respeito às últimas eleições, em 2018, e suas especificidades, gostaríamos de ouvi-lo sobre o papel das redes sociais naqueles resultados e sobre as mudanças observadas na política nacional, com reflexo sobre os municípios.
Sou observador privilegiado, porque estou dentro do processo e converso muito com vários políticos. Posso garantir que nunca assistimos ao que aconteceu nas eleições passadas, para governador, presidente e Congresso. Ainda estou tentando entender, mas algumas coisas ficaram claras. A forma de participação usando as redes sociais foi massiva e decisiva para o processo eleitoral. E não me refiro ao investimento pesado do capital financeiro, às fake news e ao uso de robôs, que se verificou depois. Isso foi importante no nível nacional. As cidades pequenas não estavam usando essa macroestrutura. Na região do Médio Paraíba do Estado Rio de Janeiro, por exemplo, com 1 milhão de habitantes, os deputados federais com mais votos dessas cidades eram desconhecidos da população. Um dos mais votados, Luiz Lima, atleta, nadador, teve votação estupenda sem praticamente nunca ter passado por lá. Com pautas ligadas à segurança e à questão moral, corrupção, religiosidade. Nós, prefeitos, pela primeira vez, não tivemos controle algum sobre a eleição. Zero. E prefeito costuma ter capacidade de influência. Eu podia nem estar destacando isso, para preservar minha autoridade... Mas temos que ser honestos: nenhum controle.
Como analisa esse quadro?
A propaganda clássica, tradicional já vinha sofrendo restrições, mas ficou livre nas redes sociais. E nós não tínhamos domínio sobre os que estava acontecendo nas redes, para podermos nos mexer a favor das candidaturas que gostaríamos de ajudar. Depois das eleições, fui atrás e vi que a comunicação se deu por rede de whatsapp, não pelo Instagram ou Facebook, que todo mundo vê. O grosso da comunicação foi por whatsapp, e sem conteúdo algum! Não havia bandeira política, eram pautas ligadas à segurança e à questão moral, a religiosidade, e contra a corrupção, a favor das famílias. Era só isso que se via. Um movimento de manada. Estava ali acontecendo ali e a gente não via. O movimento no whatsapp não permitiu o debate. Quando você enfrenta as questões mais abertamente, a população compreende.
De que forma?
Vou dar um exemplo que ocorreu no final de 2019 na minha cidade. Um pastor evangélico, líder local, juntou-se com uma pessoa da extrema ortodoxia católica formando um movimento que identificaram como Direita Piraí. Produziram um vídeo convocando a comunidade, defendendo a volta do Dia das Mães e do Dia dos Pais, e informando que teriam ido à Câmara dos Vereadores fazer essa defesa. Nesse caso, eles foram para o campo aberto, o que me deu chance de reagir. No nosso entendimento, deve haver o Dia da Família. As escolas já tinham chegado a essa conclusão, para evitar constrangimentos, quanto aos vários tipos de família que existem. Convocamos audiência pública na Câmara de Vereadores, mandei nossos educadores, convocamos a associação de pais, fizemos um grande debate público e o Dia da Família foi majoritariamente vencedor. E o Direita Piraí desapareceu. Um tema polêmico, quando exposto ao debate, foi para o lado mais racional, e não da estreiteza política. Coisa que não aconteceu no momento eleitoral, porque não tivemos chance do debate.
Sou observador privilegiado, porque estou dentro do processo e converso muito com vários políticos. Posso garantir que nunca assistimos ao que aconteceu nas eleições passadas, para governador, presidente e Congresso (...). A forma de participação usando as redes sociais foi massiva e decisiva para o processo eleitoral
É possível que se repita esse fenômeno nas eleições de outubro?
Sim, acho que isso se repete. Parte do debate não acontecerá abertamente. Talvez no que diz respeito à Educação, com tantos problemas que vêm ocorrendo, pode ser que haja um debate nas grandes cidades, assim como o tema da saúde. Mas parte do debate não deverá fluir. Minha impressão é que a pauta da corrupção continua presente; as outras, contra movimento LGBT, a favor da família etc., arrefecem.
Quanto às próximas eleições, ainda, que peso podem ter na conformação do cenário nacional. Qual o peso dos municípios na redefinição de caminhos para o país?
Na última eleição municipal, no caso do Rio de Janeiro, por exemplo, em 92 municípios, só oito prefeitos foram reeleitos. Isso já foi uma antecipação do que seriam as eleições nacionais. Vamos pegar o caso de Volta Redonda (RJ). O prefeito eleito lá, Samuca [Silva], era um ilustre desconhecido. Ele era traço nas pesquisas, na época, e não poderia participar do debate entre os candidatos. Mas, faltando algumas horas para o programa ir ao ar, conseguiu uma liminar judicial e participou. Ele se apresentou como o novo, como o antipolítico, como o gestor. E ganhou! Esse fenômeno se deu em várias cidades. E antes das eleições nacionais. Mas como ninguém olha para os municípios, ninguém prestou atenção. Olham, no máximo, para algumas capitais. Há um equívoco dos analistas políticos nesse sentido. O movimento da população se dá nos municípios.
O movimento no whatsapp não permitiu o debate. Quando você enfrenta as questões mais abertamente, a população compreende
No que diz respeito à relação dos municípios, não só com os estados, mas com a União, como vê as políticas mais austeras, como a Emenda Constitucional 95, ou as mudanças que vêm sendo empreendidas nas políticas da atenção primária à saúde? Isso afeta a realidade dos municípios?
Afeta. Isso tem nos preocupado muito. Acho que esse debate não foi bem defendido pelo conjunto dos municípios em suas representações nacionais. Não houve enfrentamento adequado. Quando o [ex-presidente Michel] Temer propôs a EC 95, que congelava recursos por vinte anos, os prefeitos não perceberam que efeito que isso teria na política municipal. Hoje a gente percebe que as demandas municipais continuam aumentando, que o cidadão é cada vez mais cidadão em cobrar seus direitos, que a rede social ampliou enormemente o poder do um. Uma única pessoa vai para a rede, vocaliza, grita e é ouvida – e no município é ouvida imediatamente, em minutos. Isso cria constrangimento no nível municipal. Não recebemos recurso novo na Saúde, e a necessidade é crescente.
Em relação à área assistencial, os Centros de Referência em Assistência Social (Cras), o Bolsa Família, qual foi o impacto dessas políticas nos municípios?
Percebo que muitas prefeituras não se dão conta de o quanto o Bolsa Família é importante, sobretudo, nas cidades pequenas, para o comércio local. Na minha cidade, de 30 mil habitantes, o Bolsa Família traz R$ 320 mil por mês. São famílias pobres, que não vão para as cidades vizinhas consumir. É pouco dinheiro no unitário, mas muito dinheiro no nível global. Isso, para o pequeno comércio, acaba formando uma rede muito interessante. É algo que precisava ser mais explorado do ponto de vista da cadeia econômica. Agora, está havendo represamento no Bolsa Família. O recurso está atrasando; estamos preocupados com isso. Nas outras políticas de assistência social, estamos em compasso de espera.
Programas como o Bolsa Família são um tema das eleições municipais?
Não. Não acho que isso chegue a influenciar o debate municipal.
Um desmonte desses programas sociais, aí incluídos também o Minha Casa Minha Vida, o Farmácia Popular, que, de certa forma, não tiveram continuidade no atual governo, impacta a oferta de assistência nos municípios?
As mudanças no Minha Casa Minha Vida [por exemplo, escolha dos beneficiários do programa não mais nos municípios, mas no Ministério da Cidadania] aumentaram a pressão sobre as prefeituras. O ministério [do Desenvolvimento Regional] não consegue realizar o programa, mesmo com recursos, pelo menos é o que mostra a imprensa. Tenho Minha Casa Minha Vida aprovado com 160 residências para Piraí e não consigo tirar do papel. As mudanças no Farmácia Popular colocaram também um pouco de pressão, mas, no nosso caso, como tenho estrutura de saúde organizada e distribuo medicamentos, essa pressão não foi muito sentida. O fato de o Estado ter desmantelado os medicamentos especiais, isso sim, gerou muita pressão, muita demanda judicial, e com valores muito altos. Sentimos mais o desmonte na área de medicamentos do que na Farmácia Popular.
E quanto à Segurança Pública? Embora não seja atribuição das prefeituras, como os municípios estão lidando com problemas como a interiorização do tráfico e as milícias?
Isso repercutiu, especialmente, nas cidades maiores, que têm mais dinheiro e mais movimento do tráfico. As prefeituras sentiram, porque a população, obviamente, reclama. Mas mesmo em cidades como a minha, em que a violência é quase nenhuma, a sensação de segurança piorou. A informação que circula sobre essas questões é velada, não dá para falar abertamente de tráfico, dando nomes aos bois. Observo que as prefeituras melhoraram suas guardas municipais – as que tiveram recursos para isso –, e passaram a apertar o governo do estado para dar uma solução. Usando tecnologia, fomos também construindo estruturas de apoio. Na minha cidade, temos 52 câmeras de rua instaladas e ligadas com a polícia militar, e vamos chegar a cem. Apenas para inibir, de forma preventiva. As prefeituras passaram a instalar, para ajudar nesse processo; é uma forma de colaboração e de pressão sobre o estado, especialmente, para que a Polícia Civil melhore. Para o interior, conta muito mais ter uma Polícia Civil organizada, que de fato investigue e dê solução, do que a pressão ostensiva da Polícia Militar. Pedimos mais pelo funcionamento da delegacia do que da PM. Tenho tentado defender que não existe mudança no padrão de segurança sem as prefeituras. É a prefeitura que entra e recolhe o lixo, coloca posto de saúde, oferece socialização pelo esporte, pela música. Isso é responsabilidade da prefeitura, não do estado. Não vamos resolver o problema sem dar cidadania, e quem dá é a prefeitura.
Voltando, então, à relação dos municípios com os diversos segmentos da sociedade, como as prefeituras podem se reorganizar para trazer à tona essa importância da instância municipal que o senhor menciona e que fica em segundo plano? O que os municípios devem fazer a partir de suas representações para reverter isso?
Aí é uma questão de disputa de poder. Efetivamente, as políticas públicas cada vez mais se municipalizam. E deve ser assim; é ali que está o cidadão, no seu dia a dia. Mas, quando estamos de frente para as necessidades do cidadão e com incapacidade de atender, temos que nos socorrer no estado e na União. A Constituição de 1988 tentou mudar isso, mas, na hora de distribuir o poder efetivo – e estamos falando de dinheiro –, a União disse “não, que não é bem assim” e ficou com a capacidade de receita e despesa concentrada. Então, hoje, o que precisamos é melhorar a capacidade de o município atender as necessidades do cidadão, e isso implica redistribuição de poder. As obrigações estão sendo cumpridas, mas a solução pelo financiamento precisa acontecer. Há também um discurso equivocado da imprensa, ao tratar da questão, de que há municípios muito dependentes do governo federal, que vivem do FPM [Fundo de Participação dos Municípios]. Mas o FPM é de quem? É do município! Onde se produz e se arrecada o imposto? No município, cem por cento! A máquina arrecadatória central do governo federal fica com 68%. Constitucionalmente, tem que devolver, porque pertence ao município. Não está nos dando nada, não, apenas cumprindo a lei. E cumprindo mal, porque deveria repassar ainda mais. Esse é um debate muito difícil, que precisa ser colocado. É tão difícil que o atual governo vai no sentido contrário, e propõe a extinção de municípios.
Essa é uma questão de que gostaríamos de tratar...
É um absurdo. Por que os municípios viraram municípios? Costuma-se achar que é por causa de algum político que queria montar uma máquina administrativa para levar vantagem. Isso é conversa fiada. Meu município é um que resultou de uma separação [com a emancipação, em 1995, do distrito de Pinheiral], e foi muito bom para os dois, Piraí e Pinheiral. Eram duas populações culturalmente distintas, vivendo em lugares distantes em que, a depender do governante de plantão, um cuidava daqui, outro cuidava de lá. E a população disse: “não queremos; queremos alguém que olhe permanentemente para as nossas necessidades!”. Foi por isso a separação. Minha mãe é de uma cidadezinha do interior de Minas, Itutinga, que, por essa proposta, acabaria. Itutinga deixa de ser município e vai ficar vinculada a qual município? Nazareno, Lavras, São João del Rey? Quem é que vai olhar para as pessoas que estão ali? Não vão olhar! Agora, repensar a máquina administrativa, criar limites para as despesas – acho que os nossos legislativos podem ser menores, para dar eficiência –, trabalhar com consórcio, com sistema de redes, isso é outra questão, são soluções administrativas boas. Mas extinguir municípios, acho uma tragédia. E digo o seguinte: não terão força para fazer, não passa no Congresso, porque nós dos municípios vamos espernear muito.
Não existe mudança no padrão de segurança sem as prefeituras. É a prefeitura que entra e recolhe o lixo, coloca posto de saúde, oferece socialização pelo esporte, pela música. Isso é responsabilidade da prefeitura, não do estado. Não vamos resolver o problema sem dar cidadania, e quem dá é a prefeitura
E a pauta da unificação dos recursos mínimos para Saúde e Educação, como isso é visto pelos municípios?
Esse é um tema novo. Não vejo prefeito defendendo que se mudem as regras dessa forma. Hoje você tem assegurados alguns valores que já não dão conta. E, além disso, as propostas que o governo anuncia e defende são diferentes das que vão para o Congresso. Vamos pegar o caso da Previdência, em que foi dito que municípios e estados ficariam fora da reforma. Mentira. Porque em nenhum momento colocou-se qualquer artigo afirmando isso. E emenda constitucional, quando entra em vigor, vale para todo mundo. Foi o que aconteceu. E aí, sai uma portaria do Ministério da Economia regulamentando que os municípios têm seis meses para se adaptar à nova regra constitucional. Eu vou ter que passar a cobrar 14% do servidor municipal para a Previdência. O fundo de Previdência de Piraí tem mais de R$ 200 milhões em caixa, todos os pagamentos em dia, tem déficit atuarial pequeno, coberto pela Prefeitura – o Tesouro optou por pagar para não ampliar a base de contribuição dos servidores nesse tempo de crise; está tendo folga no orçamento para isso – e, se fizer um cálculo atuarial com aumento de dois anos na idade para aposentadoria, provavelmente, terá déficit zero. A regra, agora, diz que, se o servidor entrar de licença, é o Tesouro que vai pagar. Sem que haja no orçamento de 2020 previsão para isso. Estamos todos com o pé atrás; não acreditamos nesse Mais Brasil, menos Brasília [slogan do governo federal, referindo-se a reduzir o poder de decisão e uso de recursos do governo federal e a aumentar a autonomia de estados e municípios]. Isso não está acontecendo. No entanto, não sei se teremos como acompanhar isso, na velocidade com que o Congresso vota. Votou a reforma da Previdência numa velocidade que não permitiu o debate no país. Seria preciso ficar uns dois anos debatendo. E há a reforma tributária, que não sabemos qual é. E também a reforma do pacto federativo. Que reforma é essa? De acabar com municípios? A reforma tributária começa incorporando o ISS [Imposto sobre Serviços] num imposto único! Não vamos aceitar. Já temos pouco e ainda vão nos tirar, centralizando, quando o discurso é descentralizar?
Hoje, o que precisamos é melhorar a capacidade de o município atender as necessidades do cidadão, e isso implica redistribuição de poder
Um dos principais trunfos do governo federal para com estados e municípios, é a distribuição de recursos dos leilões de cessão onerosa do Pré-Sal, conforme tem sido colocado pelo ministro da Economia. Os prefeitos já receberam esses recursos?
O recurso entrou no dia 31 de dezembro, mas foi metade do prometido. O Rio de Janeiro mesmo tinha expectativa de receber R$ 3 bilhões do governo do estado, mas recebeu R$ 1,2 bilhão. Foi um dinheiro de cafezinho. Foi bom, veio no fim de ano, ajudou a fechar as contas, mas não é dinheiro de custeio. Entrou e acabou. Não é receita corrente. Eu preciso de receita corrente, preciso de IPI, ICMS. É preciso industrializar o país; o país está se desindustrializando. Estamos sentindo isso na pele. Isso é nítido nas cidades. Os economistas falam isso abertamente.
Voltando à área da Saúde, decisão do Tribunal de Contas da União determinou que a remuneração de pessoal nas Organizações sociais seja incluída nos limites estipulados na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) dos municípios. Havia uma tendência dos municípios de driblar a LRF, contratando serviços via OSs. Acha que esse modelo vai acabar?
O Tribunal de Contas tem uma lógica muito legalista, no sentido de que deixa de olhar a finalidade da lei e fica olhando a letra da lei. Em 2005, quando foi montado o programa de Saúde da Família neste país, o Ministério da Saúde soltou uma cartilha orientando as prefeituras sobre os procedimentos. Não havia segurança alguma de como seria o financiamento dessa estrutura, foi apenas dado um incentivo financeiros para que os municípios fizessem. “Quem vai fazer saúde da família? É você, município! Toma aqui um incentivo financeiro, mas não estou dando isso permanentemente”. Era assim. Eu pergunto: que prefeito iria criar uma carreira de saúde da família no seu município, fazer concurso público, dar estabilidade, sem garantia de financiamento? Houve, então, uma consulta ao Tribunal de Contas, que disse que, por Oscip [Organização da Sociedade Civil de Interesse Público], seria possível fazer. O Ministério Público opinou e também disse: “Pode fazer!”. Isso foi em 2005. Tenho esses documentos, tanto a cartilha, quanto a consulta ao Tribunal de Contas. E vários municípios fizeram assim. Minha cidade, por exemplo, contratou a Cruz Vermelha para operacionalizar, via convênio, o programa – mas não deixou de computar o gasto com pessoal. Alguns municípios trataram como terceirização, contratando o serviço como um todo, delegando responsabilidade, inclusive. Outros, não; entenderam que não deveriam delegar, que a terceirização não seria de pessoal, mas de serviço, com o controle dos indicadores de saúde mantidos pela gestão e computando aquilo como gasto com pessoal. Nessa lógica, se o programa se firma como política, eu substituo, boto o poder público para executar diretamente. Quando, em 2013, me tornei prefeito, comecei a mudar esse contrato com a Cruz vermelha. Criei a carreira de agente comunitário de saúde municipal e fiz concurso. Em 2015, fiz de agente de endemias. Em 2016, fiz de médico, enfermeiro, dentista... Criei as carreiras, fiz concurso e mudei o modelo. Mas essa não é a realidade de todos os municípios. Tem que ter coragem para fazer isso. Tem que acreditar no modelo público. E não me arrependo. Minha cidade é bem avaliada. Ficamos lá em cima na avaliação do IDSUS [Índice de Desempenho do Sistema Único de Saúde]. A Firjan também fez várias avaliações, e ficamos em primeiro lugar no Estado do Rio de Janeiro. E o governo do estado fez, há pouco, uma avaliação muito interessante também, com critérios de atenção básica em todos os municípios, e ficamos, Piraí e Resende, como os mais bem posicionados no Rio de Janeiro. Mas o Tribunal não olha isso. não olha o resultado alcançado para a população. Tem um determinado entendimento e vê apenas: cabe na minha regra, não cabe na minha regra. E ferra os prefeitos! Abre processo, manda para o Ministério Público para abrir ação civil pública, faz termo de ajuste de conduta...
Para finalizar, o que é possível antever das eleições municipais?
Acho que essas eleições estão muito em aberto. Os partidos ainda estão desorganizados. De fato, a direita veio para ficar, ela está se organizando. O bloco da extrema direita, no entanto, vai ficar um pouco mais isolado. Quanto ao campo da esquerda, está em uma disputa interna muito grande, especialmente por conta do PT e do Lula. A situação legal do Lula e o PT buscando a hegemonia tem dificultado o diálogo e produzido novos rearranjos da centro-esquerda e do centro. Isso vai se refletir fortemente nas eleições das capitais. Já o interior tem outra lógica, a lógica do local, do cidadão local. Claro que toda eleição municipal já está mirando a de governador e presidente. Mas a pauta da economia está muito aberta, ainda, e ela produz impacto grande nos municípios. Se o cidadão sofre mais, reage mais. Se sofre menos, é mais complacente. E outra coisa que ficou clara nas duas últimas eleições: o voto só é definido nos últimos quinze dias.