Lucia Souto: ‘Vivemos, novamente, um momento de grandes disputas civilizatórias’

Lucia Souto: ‘Vivemos, novamente, um momento de grandes disputas civilizatórias’

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Em meio à tensão entre capitalismo financeiro e democracia e ao desafio de se construir um país onde caibam todos – e não apenas os mais ricos – será realizada, de 4 a 7 de agosto de 2019, a 16ª Conferência Nacional de Saúde. Trata-se, como define a pesquisadora Lucia Souto, de um momento de “disputas civilizatórias”, tal como ocorreu em 1986, quando se realizou a histórica 8ª Conferência. O evento de 2019 faz referência explícita ao que se realizou 33 anos atrás: a 16ª é chamada também de 8ª + 8 e tem o mesmo tema da anterior – Democracia e Saúde. “É uma escolha política”, diz Lucia, presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, nesta entrevista ao blog do CEE-Fiocruz. “O momento em que se realiza a 16ª Conferência é tão fundante quanto o da 8ª, que foi capaz de influir no capítulo da Seguridade Social da Constituição de 1988 e assegurar o direito universal à saúde”.

Diante de uma “aguda ameaça à democracia”, observa a pesquisadora, é necessário mobilizar e aglutinar forças. Na entrevista, ela explica que o Cebes vem buscando engajar-se em uma agenda voltada ao fortalecimento da Conferência e do Conselho Nacional de Saúde. Nesse sentido, participa de uma ação colegiada com Abrasco, Associação Brasileira de Bioética e Rede Unida, para tirar posições conjuntas a serem defendidas por esta última no Conselho, onde tem assento pelo segmento de unidades científicas. “Estamos em um momento de reforçar os laços, a empatia, a solidariedade. A saúde é exemplar do ponto de vista da construção participativa de políticas públicas e tem impacto decisivo na redução das desigualdades”, destaca Lucia.

Leia a seguir a entrevista.

 

Foram definidos para a 16ª CNS os mesmos tema e eixos que os da histórica 8ª. Trata-se de uma homenagem àquele decisivo momento ou um sinal de que os mesmos desafios de 30 anos atrás ainda persistem? A que se deveu essa escolha?
A escolha é política, no sentido de considerarmos o momento em que se realiza a 16ª Conferência tão fundante quanto o da 8ª, que foi capaz de influir no capítulo da Seguridade Social da Constituição de 1988 e assegurar o direito universal à saúde. Um movimento de baixo para cima, de grande mobilização popular da sociedade brasileira, que conseguiu construir todo o arcabouço legal dessa conquista civilizatória da saúde como direito e não como negócio, mercadoria. Neste momento de grandes disputas civilizatórias que estamos vivendo novamente, a chamada da 16ª tem esse propósito. Na minha compreensão, vivemos um momento crítico entre civilização e barbárie, desde a Emenda Constitucional 95, que desmente da própria Constituição.

Em 1986, havia um movimento ascendente em direção à democracia. Agora, esse movimento é descendente, não?
Vivemos hoje uma tensão explícita entre o capitalismo financeiro e a democracia, no mundo inteiro não só no Brasil. Essa tensão torna ainda mais crucial o debate sobre democracia, soberania e direitos sociais, sobre como podemos construir um país onde caibam todos. Porque, no projeto atual, cabe menos 1% da população. Está aí relatório da Oxfam mostrando que a concentração de riqueza está cada vez maior, um problema debatido mundialmente também. A Thatcher [Margaret Thatcher, primeira-ministra britânica, entre 1979 e 1990] expressava essa nova fase do capitalismo financeiro global, com o slogan “there is no alternative”, decretando que não havia mais sociedade, só indivíduos. É o que temos que discutir, o que significa não haver mais sociedade, não haver mais relação entre as pessoas. Estamos em um momento de reforçar os laços, a empatia, a solidariedade. Políticas como a de saúde, como também a de segurança pública são muito sensíveis a esse momento. Estão no dia a dia das pessoas.

Historicamente, as políticas de bem estar social no mundo sempre foram fruto de muita luta. Agora estamos novamente em um momento crucial

Neste momento adverso, como as conquistas desses trinta anos de SUS podem fortalecer a sociedade? Com que forças contamos para lidar com o atual cenário?
Esse é precisamente o desafio. Creio que contamos, em tese, com a maioria da população. No caso da saúde, 75% da população não têm possibilidade de acesso a qualquer direito, do ponto de vista de atenção, sem um sistema público. O próprio Piketty [Thomas Piketty, autor do livro O capital no século XXI, 2013] quando fez a série secular, sobre a concentração de riqueza ao longo da história do capitalismo, destaca que os momentos de conflito distributivo ocorreram quando houve grandes mobilizações na sociedade, pela conquista do estado de bem estar social, como na Rússia de 1917 e até a política do New Deal [1933-1937] do [presidente norte-americano] Franklin Delano Roosevelt , com apoio do Keynes [o economista John Maynard Keyenes]. Historicamente, as políticas de bem estar social no mundo sempre foram fruto de muita luta. Agora estamos novamente em um momento crucial: vamos ter um mundo para menos de um por cento de bilionários e o resto da população sem acesso a direito nenhum? A potência que nós temos é essa de que a esmagadora maioria da população demanda um país solidário.

O Documento norteador dos debates a serem travados na 16ª Conferência aponta que é preciso transformar o direito à saúde em ‘soluções concretas’. Não deveríamos primeiro lutar pela apropriação da ideia mais ‘imaterial’ de direito, para que essa população pudesse compreender e lutar de fato por aquilo que é dela?
É uma pergunta complexa. As pessoas se movimentam não porque têm uma compreensão teórica sobre o assunto. Elas se movimentam em função de suas necessidades, com uma capacidade de mobilização muito grande. Por outro lado, estamos vivendo também um momento novo da história humana. O Brasil, por exemplo, é objeto de uma guerra híbrida. Não é uma guerra tradicional, com canhões e armas, mas de disputa de conceitos, ideias, como a que você está colocando e que é bem pertinente. Então, a pergunta é: como podemos, nesse contexto, ampliar o nosso diálogo com a população? É preciso ligar as iniciativas locais, dispersas, ao movimento no qual acreditamos, para termos a potência de que precisamos para enfrentar os desafios do momento. No Rio de Janeiro, por exemplo, estamos vivendo um desmonte importante na saúde pública. O Cebes está se propondo a fazer um movimento para engajar-se na agenda aglutinadora de fortalecimento da 16ª Conferência Nacional de Saúde, algo como O Rio na 16ª CNS. Precisamos de uma ampla mobilização popular. E a saúde dá muitos ingredientes para que essa mobilização ocorra; a saúde é muito ligada à vida das pessoas. E há vários indicadores dessa associação: políticas como a PEC da morte, a EC 95, já apresentam impactos sobre a saúde da população, como redução da queda da taxa da mortalidade infantil. O Cebes tem uma cartilha sobre os impactos devastadores dessas políticas de restrição de recursos. Nesse sentido, o documento orientador da 16ª é muito feliz ao fazer a associação da democracia com a saúde. Porque, realmente, não há saúde sem democracia.

É possível considerar este momento o de mais aguda ameaça à democracia?
Sem dúvida. É uma mudança de patamar. As pessoas estão sofrendo tanto impacto, vivendo tanta catástrofe, uma atrás da outra, que mal se tem tempo de respirar. Ficam perplexas, há uma certa catatonia. A Naomi Klein [jornalista e ativista canadense], quando escreve sobre a Doutrina do choque, aponta claramente que isso é uma estratégia, um objetivo. Foi assim no Chile, quando o Milton Friedman [economista ultraliberal americano, 1912-2006] foi assessorar diretamente Pinochet, depois do bombardeamento do Palácio de La Moneda e a destituição do [Salvador] Allende violentamente – no Museu da Memória e dos Direitos Humanos, em Santiago, há a gravação de seu último discurso, antes de o palácio ser bombardeado, em que ele diz que vai morrer dali a pouco e que queria deixar para as gerações futuras o registro do que é capaz o capitalismo selvagem. Friedman dizia a Pinochet : “seja rápido, aja enquanto as pessoas não têm tempo de pensar!. Isso é coisa da doutrina do choque mesmo.

O documento orientador da 16ª é muito feliz ao fazer a associação da democracia com a saúde. Porque, realmente, não há saúde sem democracia

Noam Chomsky comenta que a primeira grande ação de mídia e propaganda política se deu nos Estados Unidos, no governo Wilson, no início do século 20. O país tinha um povo pacifista e queria participar da guerra. Tinha, assim, que tornar o povo bélico, para ter apoio nesse processo. Criaram então uma comissão de propaganda governamental, a comissão Creel, dirigida por um jornalista sênior, e em seis meses conseguiram tornar uma população pacífica em belicista. A influência da mídia, da propaganda política é devastadora. Essa guerra híbrida tem uma série de dimensões e é realmente potente.

Tivemos há pouco um debate sobre guerras híbridas com o pesquisador Wilson Ferreira no CEE...
Tem muito a ver com o momento que estamos vivendo. Esse jornalista da comissão Creel dizia que temos que criar um rebanho domesticado e distraído, e concentrar as grandes decisões em meia dúzia de pessoas.

É uma luta permanente...
Uma luta permanente. Em torno de quê? Do conflito pela distribuição da riqueza, uma luta histórica. Quando é que vamos ter políticas distributivas de cidadania? Todo mundo tem o direito de existir. E pessoas passaram a existir com políticas levadas à frente no Brasil a partir de 2003, com os governos de Lula e Dilma. Essas políticas foram reais, distribuíram riquezas, oportunidades. Trinta e cinco por cento das pessoas que ingressaram nas universidades no período eram as primeiras de suas famílias a fazê-lo. É uma escala enorme! Isso teria repercussões logo ali na frente. A pergunta é: será que essas pessoas voltam para a senzala? Para o armário? Ou será que teremos insurgências por aí? Porque democracia significa espaço para todos, e nesse figurino que está montado cabe muito pouca gente.

Friedman dizia a Pinochet : “Seja rápido, aja enquanto as pessoas não têm tempo de pensar!

O Cebes, na época da 15ª Conferência, em 2015, lançou suas teses para o evento. O que pode destacar das teses do Cebes para a 16ª?
Estamos fortalecendo esse Documento orientador. É importante dar contribuições a ele. É importante mantermos a unidade. Há necessidade de confluirmos no esforço coletivo que o Conselho Nacional de Saúde está fazendo e que tem como ponto de partida esse documento, retomando a ideia de que não há democracia sem saúde, de participação popular soberana na construção das políticas públicas, que é fundamental. A democracia é o pano de fundo, com três grandes eixos de discussão. O primeiro é a saúde como direito, que está em risco, realmente. Outro eixo é a consolidação do SUS, a organização do cuidado, a reorientação do modelo de atenção, a questão do fortalecimento da Estratégia Saúde da Família, das redes de atenção, das teias dos territórios integrados de atenção à saúde. E o terceiro, o financiamento do SUS. O sistema tem um subfinanciamento crônico, e aí está o conflito distributivo. Como se sustenta uma política pública dessa envergadura e que incide sobre um dos problemas prioritários do Brasil, que é a desigualdade? A saúde é exemplar do ponto de vista da construção participativa de políticas públicas. A política pública de saúde tem impacto decisivo na redução das desigualdades, voltada não a essa lógica alucinante do menos de 1%, mas à esmagadora maioria da população.

Isso custa dinheiro...
Isso custa dinheiro, não dá para fazer de graça. Temos uma reforma que, no Brasil, ainda não foi feita e que é a alma do conflito distributivo, uma reforma tributária progressiva. O rico não paga imposto no mundo inteiro. O estudo da Oxfam, apresentado simultaneamente à reunião de Davos [janeiro/2019], deixa claro que meio por cento de taxação dos bilionários do mundo já resolveria o problema educacional de uma robusta parte da população. 

Como uma maior representatividade será trabalhada na 16ª Conferência?
Já há uma agenda. Até abril, serão realizadas as etapas municipais da 16ª. Depois, as etapas estaduais, e, em julho e agosto, a etapa nacional. O Cebes vai se engajar de forma absolutamente prioritária em uma mobilização para a 16ª Conferência, inclusive construindo conferências livres, que estão previstas no regimento. Para além das instâncias dos conselhos municipais – que são fundamentais e com os quais vamos trabalhar também, – buscaremos criar espaços de mobilização de conferências em universidades, bairros, qualquer lugar, um processo vivo, abrangendo diversos temas. Para a preparação da conferência também foram feitas reuniões temáticas, sobre gênero, sobre saúde da população negra, sobre juventude. Estão sendo mobilizadas áreas muito vivas na sociedade, hoje. Vamos buscar interagir com esses espaços.

 

Acesse a íntegra do Documento orientador dos debates à 16ª Conferência Nacional de Saúde