Leo Heller: ‘O modelo de privatização da água e do saneamento está mostrando suas fissuras’
Privatizar o acesso à água com a expectativa de, assim, universalizar o serviço mais rapidamente; privatizar o acesso à água para captar recursos para o Estado, de modo a fazer frente à crise fiscal: são dois argumentos nos quais se costuma apoiar a justificativa para retirar das mãos de estados e municípios a prestação do serviço, mas que não passam de “sofisma”, na avaliação do pesquisador da Fiocruz Minas Leo Heller, que, até dezembro de 2020, ocupava o cargo de relator das Nações Unidas para Água e Saneamento. Nesta entrevista para o blog do CEE-Fiocruz, Leo Heller aponta os problemas que se descortinam a partir da privatização como caminho para o abastecimento de água e coleta de esgoto, de forma geral, e no Estado do Rio de Janeiro, que em 30/04/2021 concretizou o leilão da Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae), abrangendo 35 cidades e arrecadando R$ 22,6 bilhões. A concessão deixa o serviço a cargo dos consórcios vencedores (Aegea, Redentor e Rio Mais) por nada menos que 35 anos.
Celebrada pelo mercado e apontada como bem sucedida pela maioria dos veículos de imprensa, a operação pouco ou nada tem de vantajosa para os municípios e suas populações. Um poder público enfraquecido para cobrar por uma prestação adequada do serviço e a penalização do usuário com quem deverá ficar a conta desse processo são algumas das consequências, apontadas por Leo Heller, cujo relatório final ao deixar as Nações Unidas teve como tema a privatização. “Com uma empresa muito empoderada, em um município [pobre] da Baixada que não está satisfeito com a prestação do serviço, o diálogo não é horizontal, o município não tem capacidade de sancionar, multar, acionar a agência reguladora”, analisa.
O valor do leilão, por exemplo, é garantido por recursos da União, tendo o BNDES se comprometido com investimentos de R$ 18 bilhões. “Um escândalo”, considera Leo. “Por que não se investiu isso no setor público?”, indaga, observando que a população é que irá arcará com esse valor, com aumento das tarifas, ao longo do tempo, de modo a se garantir equilíbrio econômico na prestação do serviço. “A equação no futuro vai ser: a empresa arrecada, tem uma receita, uma parte dessa receita vai alimentar os lucros, porque isso é prioridade zero das empresas, a outra parte vai para pagar o financiamento do BNDES, e o que vai sobrar para expandir o serviço, para melhorar a qualidade da água, para eliminar a geosmina, para colocar água nas vilas e favelas?”.
A Cedae cuida de 64 dos 92 municípios fluminenses, e há, ainda, outros 28 já com concessões individuais. No leilão, que dividiu os municípios em quatro blocos, três foram adquiridos pelos consórcios de empresas. Um, no entanto, o bloco 3, formado pela Zona Oeste da capital e oito municípios do sul do estado, região considerada com baixo potencial econômico, foi deixada de lado pelos interessados. “A imprensa disseminou que não houve interesse naquela região, devido à presença da milícia. Mas não é só no bloco 3 que a milícia tem presença forte”, observa Leo, convidando, no entanto, a se pensar “mais conceitualmente” sobre o processo.
Embora a Cedae, não seja “um exemplo” de empresa, pondera o pesquisador, trata-se de um órgão público, e não se justifica sua substituição por empresas privadas. “o Estado perdendo sua força no serviço”. Na contramão dessa iniciativa, Leo destaca que a tendência mundial é a remunicipalização do serviço de água e esgotamento sanitário. “A experiência internacional é o saneamento público, como instrumento do Estado para promover bem estar social”, diz, lembrando que, entre os anos 2000 e 2019, 330 municípios em todo o mundo foram por esse caminho. “Por que Paris remunicipalizou? Berlim, Budapeste, Atlanta, Buenos Aires, cidades grandes, fortes. Porque o modelo de privatização está mostrando suas fissuras”.
A privatização da Cedae alinha-se ao novo marco legal aprovado no Senado, em 24/06/2020, segundo o qual, empresas públicas não podem mais ser contratadas diretamente para executar os serviços de saneamento. Municípios ou estados terão que fazer uma concorrência aberta também a empresas privadas por meio de licitação [leia mais aqui].
E que não se pense na alternativa de reverter a negociação, caso haja problemas na prestação do serviço ao longo das próximas décadas. “É um abacaxi que ninguém quer descascar”, define Leo. “Essas empresas são poderosíssimas, têm corpos de advogados super competentes que encontram brechas para defender seus interesses”. E alerta: “A sociedade terá que se organizar, criar observatórios, criar espaços para monitorar como as empresas estão se portando, como a agência reguladora vai tomar suas decisões, até que ponto não ficará capturada pelos prestadores de serviço”, diz Leo, ele próprio integrante do Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas), criado há pouco mais de um ano. “A lei orienta todos os estados a privatizar. O Ondas não vai dar conta, vai ser preciso outras instâncias de acompanhamento. Esse é o caminho”.
Leia a entrevista, a seguir.
De que maneira uma privatização interfere – positiva ou negativamente – no acesso da população à água e, dessa forma, na garantia desse direito humano?
Esse é um movimento do Rio que se iniciou antes da mudança do marco legal, de junho do ano passado [aprovado no Senado, em 24/06/2020], mas que se alinha a uma tendência muito forte em que o Brasil embarcou, de apostar na gestão privada como saída para, primeiro, captar recursos para fazer frente à crise fiscal que o Brasil enfrenta e, segundo, para universalizar os serviços. São os dois argumentos centrais que apoiaram essa mudança na legislação, ambos sofismas. Porque essa crise fiscal é relativa, sempre é possível priorizar fazer escolhas. E a gestão da economia no Brasil sempre faz escolhas que protegem os empresários e não a população, o bem estar social. É um grande sofisma achar que haverá captação de recursos privados de maneira substantiva, porque não é essa a experiência internacional, nem, tampouco, que a prestação privada conseguirá universalizar o acesso – universalizar, aí, pensando sempre nos direitos humanos, promovendo igualdade, sem discriminação, porque universalizar é para todos, não é pegar o território e excluir 20%, porque vivem no meio rural ou em favela, e universalizar os 80%. Seria inclusive o contrário: temos que priorizar os que têm dificuldade de acesso. De maneira mais ampla, essa é uma preocupação.
E no caso do Rio?
No caso do Rio, existem mais preocupações, particulares. Primeiro, o desmonte quase que completo da companhia estadual, a Cedae. A Cedae não é uma maravilha, uma empresa exemplo para o país, tem seus problemas, mas a grande pergunta é: isso indica acabar com ela, substituí-la por uma empresa privada, o Estado perdendo completamente sua força no serviço? A Cedae não vai exatamente acabar, continuará com algumas funções, como a de produzir água, e tem toda uma interrogação em relação ao bloco 3 do leilão, que ficou vazio na licitação, e uma das alternativas é que a Cedae atue ali. Mas, de qualquer forma, a companhia vai minguar, vai ficar pequena, pouco empoderada, com baixa capacidade de ser um braço do Estado para promover a universalização, o que é muito preocupante.
A gestão da economia no Brasil sempre faz escolhas que protegem os empresários e não a população, o bem estar social
Por quê? O que significa contar com um ‘braço do Estado’ na garantia da universalização? E, ainda, o fato de a Cedae não ser ‘um exemplo de empresa’, envolvida em questões como escândalo político, poluição ambiental e crise da geosmina, isso justifica a privatização como caminho fazer frente a essas irregularidades?
Nos processos de privatização da água e do saneamento – e também em outros setores –, uma estratégia é sucatear a empresa pública nos períodos que antecedem a privatização, desacreditar, fazer uma campanha na opinião pública apontando que a empresa é ineficiente, gasta muito, não cumpre seu papel. Isso gera um ambiente social que não se opõe ao processo de privatizar. E nós assistimos a isso no Rio com muita clareza. O discurso sempre foi de que a Cedae é um cabide de emprego, distribui água com geosmina etc. Não vou dizer que são mentiras, mas são meias verdades. As verdades quando usadas em determinado contexto acabam defendendo alguns interesses. A experiência internacional é o saneamento público, como instrumento do Estado para promover bem estar social. A gente sabe – não preciso ficar nessa ladainha de que saneamento é saúde, a própria Covid veio destacar isso –, que a falta de água para lavar as mãos é um fator de risco enorme. Que preocupações traz esse leilão? Em um primeiro momento, a população não vai sentir muita diferença. O edital prevê manutenção da tarifa, aponta para atuação nas áreas informais, como vilas e favelas, tem algumas salvaguardas, eu diria. Mas, ao longo do tempo...
O que pode acontecer?
Vamos observar: R$ 22,6 bilhões foi o valor arrecadado no leilão. Conforme os jornais noticiaram, o BNDES vai emprestar R$ 18 bilhões para as empresas, o que é um escândalo. O governo não tem dinheiro para saneamento, mas o BNDES empresta 18 bilhões para os três conglomerados? Por que não investiu isso no setor público? A questão é: quem vai pagar esses 18 bilhões? É a população, não há dúvida, são as tarifas, que terão que ser realinhadas ao longo do tempo, para promover um equilíbrio econômico na prestação do serviço. E o que é mais preocupante, ou tanto quanto: os 22 bilhões que o Estado recebe não são aplicados em saneamento. O Estado vai usar esse dinheiro para se equilibrar, pagar dívidas, renegociar sua dívida com o governo federal e para outros fins, como estradas e outras obras, e não no saneamento. É um recurso que, no final das contas, é arrecadado pelo setor de saneamento, que vai para outras finalidades. Ou seja, menos recursos disponíveis para aplicar na universalização do serviço. A equação no futuro vai ser: a empresa arrecada, tem uma receita, uma parte dessa receita vai alimentar os lucros, porque isso é prioridade zero das empresas, a outra parte vai ser usada para pagar o financiamento do BNDES, e o que vai sobrar para expandir o serviço, para melhorar a qualidade da água, para eliminar a geosmina, para colocar água nas vilas e favelas – que no Rio é muito desafiante, por conta dos conflitos sociais até armados? E há o saneamento rural, que foi um tema invisível nesse processo. Quem vai cuidar da área rural, com o Estado enfraquecido?
O governo não tem dinheiro para saneamento, mas o BNDES empresta 18 bilhões para os três conglomerados? Por que não investiu isso no setor público? A questão é: quem vai pagar esses 18 bilhões? É a população, não há dúvida
Como o fato de uma empresa privada visar a lucro – o que é próprio dela – pode interferir na garantia de acesso à água? A rejeição no leilão ao bloco 3, referente a uma região da Zona Oeste do Rio e de alguns municípios mais pobres pode ser interpretada como falta de interesse, por não ser ‘lucrativa’? Estaríamos em risco de a universalização não ser alcançada, ou as salvaguardas que o senhor mencionou garantirão o acesso?
Eu não me preocuparia tanto com essa questão do bloco 3. É difícil alcançar a lógica as empresas. A imprensa disseminou que não houve interesse naquela região, devido à presença da milícia. Mas em outras regiões tb há! Não é só no bloco 3 que a milícia tem presença forte. De qualquer forma, eu me preocuparia menos com isso, porque não tendo tido empresas interessadas, alguma solução terá que ser dada, a própria Cedae pode atuar ali, como mencionei. É interessante pensar mais conceitualmente. No meu mandato [nas Nações Unidas], meu último relatório foi sobre privatização. Montei um esquema conceitual para pensar por que a privatização gera riscos aos direitos humanos. Usei três elementos, um esquema em três dimensões, que se aplicam perfeitamente ao Rio. Primeira dimensão: você falou que a empresa visa a lucro. No relatório, digo que, além de visar a lucro, a empresa procura maximizar o lucro. Isso é uma realidade. Não se contentam em fazer 10, 20, 30% de lucro, querem levar esse lucro ao extremo. O segundo aspecto é que, o saneamento sendo um monopólio natural, não havendo mais de um prestador na região, fragiliza-se muito a regulação. Até que ponto a agência reguladora do Rio de Janeiro conseguirá enquadrar as empresas, fazer com que elas invistam em saneamento etc. E o terceiro aspecto é o que chamamos de assimetria de poder, desbalanceamento de poder. São empresas poderosíssimas que ganharam a licitação, de capital internacional. Com uma empresa muito empoderada, em um município da Baixada que não está satisfeito com a prestação do serviço, o diálogo não é horizontal, o município não tem capacidade de sancionar, multar, acionar a agência reguladora. As empresas têm corpos de advogados super competentes que encontram brechas para defender seus interesses. É esse o ambiente com que quase todo o Estado do Rio de Janeiro vai ter que conviver nas próximas décadas. São décadas.
São 35 anos... Caso haja alguma insatisfação, é possível romper o contrato?
Se romper o contrato antes, é uma dor de cabeça enorme. Multas, uma série de sanções. As empresas são muito preparadas para garantir seus interesses. Vou dar um exemplo: Buenos Aires privatizou o serviço na década de 1990 – e foi a maior privatização naquele momento. A empresa começou a não cumprir o contrato. A agência reguladora, muito fraca na Argentina, resolveu multá-los. E a empresa alegou: aí é que eu não vou investir, se vou ter que usar meu dinheiro para pagar a multa! Fica, então, uma chantagem, por conta de ser um monopólio natural. Não se pode desistir do serviço para colocar outra empresa no lugar. Não é como a telefonia celular, em que um pisa na bola e troca-se por outra. São 35 anos sob a gestão, os interesses, a pressão, a chantagem, e os lobbies das empresas.
Isso já é irreversível?
Não houve contestação no edital. Na medida em que se pague essa outorga, esses 22 bilhões, e se assina o contrato, isso é sagrado. O contrato é sagrado no direito administrativo brasileiro.
Algumas dessas empresas já têm concessões em outros pontos do país, não é? A Cedae, no Rio de Janeiro, cuida de 64 dos 92 municípios, e há outros 28 que já tinham concessões individuais. É possível fazer uma avaliação da privatização da água no país até o momento?
No Brasil, a estimativa é que menos de dez por cento da população têm o serviço privado. Já Estado do Rio tinha avançado, em alguma medida, na privatização, em regiões importantes. Temos a Região dos Lagos, Petrópolis, Niterói, que recebem a água privada. Mas a cidade do Rio de Janeiro, não – somente o esgoto, na Zona Oeste, contrato com a empresa BRK Ambiental. Então, não era, ainda, um percentual enorme da população. Há muitos registros de problemas naquelas cidades, insatisfações documentadas; esses locais não têm uma prestação de serviço superior ao do restante do estado ou de alguns municípios que têm serviços autônomos, municipais – em muitos locais, os municípios continuam a prestar o serviço.
O município tem que ter o poder de dizer à Cedae que o serviço não está bom, que a favela x está sem esgoto, que há problema na qualidade da água etc. Essa voz do município, em uma interlocução com uma empresa que é pública seria muito importante. E os municípios têm se omitido em relação a isso. Essa voz do município em relação à empresa privada vai ser ainda mais enfraquecida
Que alternativas haveria à privatização, do ponto de vista da garantia do acesso universal à água e esgotamento sanitário de qualidade?
É uma boa pergunta, não há uma resposta única. É preciso melhorar. O serviço público, muitas vezes, trabalha com uma lógica muito imediatista, não pensa no longo prazo, não tem muito planejamento, não tem garantia de sustentabilidade dos serviços. Isso requer investimento público. A empresa precisa ser mais eficiente, ter receita que cubra a despesa e fazer sobrar recurso para investimento. É importante ter uma regulação forte, que controle a prestação do serviço. A regulação, essa sim, é o braço do Estado, vai verificar se os serviços estão adequados. Outra coisa importante: o setor de saneamento (água e esgotamento sanitário) é muito avesso ao controle social, à participação da sociedade, é um setor muito tecnocrático, sem muitos espaços participativos. Muito diferente da Saúde, que tem controle social forte – ou pelo menos tinha. Outra coisa é fortalecer o papel dos municípios, isso me parece fundamental. Quando a Cedae atua em um município, ela faz isso por delegação desse município. Ela não é naturalmente o prestador, é o município que autoriza. Esse município tem que ter o poder de dizer à Cedae que o serviço não está bom, que a favela x está sem esgoto, que há problema na qualidade da água etc. Essa voz do município, em uma interlocução com uma empresa que é pública, como a Cedae, seria muito importante. E os municípios têm se omitido em relação a isso. Essa voz do município em relação à empresa privada vai ser ainda mais enfraquecida. São vários elementos. É importante a gente pensar que, internacionalmente – e sempre gosto de fazer um paralelo com outros países –, o serviço de água e esgoto é tipicamente público e local. E os países universalizaram, os sistemas são adequados. Claro que sempre vai se dizer que na Europa há grupos de refugiados sem água e esgoto adequados, mas são frações da população. A população residente tem o serviço universalizado. É interessante que nos Estados Unidos, país super liberal, a quase totalidade do serviço, cerca de 85%, é publica e, a maioria, local, municipal, e em alguns poucos casos, estadual. A pergunta é: por que os Estados Unidos não fizeram uma privatização tão maciça dá água e do saneamento?
Foi aprovada no Senado uma PEC para incluir na Constituição o direito humano à água. Se isso for aprovado, é um passo importantíssimo, para consolidar a ideia e aplicá-la
E há uma tendência mundial a uma remunicipalização do serviço entre aquelas cidades que optaram em algum momento pela privatização, não é? Essa tendência vem se mantendo?
É uma tendência muito forte. O último dado, de 2019, indicava 330 remunicipalizações de 2000 a 2019. Minha pergunta é: por que Paris remunicipalizou? Berlim, Budapeste, Atlanta, Buenos Aires, cidades grandes, fortes. Porque o modelo de privatização está mostrando suas fissuras. Há países com uma linha mais privatista, como a China. Mas a tendência predominante é de desistir desse modelo, e não de incrementá-lo, aprofundá-lo.
Essas remunicipalizações, em geral, implicaram rompimento de um contrato de longo prazo ou se realizaram após o fim do contrato?
Tem de tudo nos 330 casos. Na maioria deles, trata-se de não renovação. Em alguns casos, como o de Buenos Aires, foi rompimento. O rompimento é problemático. Para ficarmos em Buenos Aires, a empresa recorreu às cortes de arbitragem internacional para processar o governo argentino e pedir indenização. E ganhou. Quando esse rompimento é conflituoso, a empresa se recusa a transferir informações. É um abacaxi que muitos não querem descascar. Na maioria dos casos, o que ocorre, então, é uma não renovação. Esses 35 [no caso da Cedae] anos vão se manter, é muito difícil reverter. A não ser que as empresas desistam e peçam um acordo, uma negociação para sua saída, o que é muito raro. Isso é uma mina de ouro para as empresas. Elas têm vários mecanismos para extrair o máximo de lucro que conseguirem. Quando oferecem R$ 22 bilhões em um leilão como esse, é porque fizeram um estudo super detalhado, com os melhores consultores do mundo. Não vão embarcar em uma aventura para perder. Não são amadores.
A sociedade terá que se organizar, criar observatórios, criar espaços para monitorar como as empresas estão se portando, como a agência reguladora vai tomar suas decisões, até que ponto não ficará capturada pelos prestadores de serviço – um risco seriíssimo –, o que o governo do Estado vai fazer, o que os municípios vão fazer
Gostaria de dois comentários seus. Como vê o entendimento da sociedade, dos gestores, da imprensa, em relação ao acesso à água e ao saneamento como direito humano? Afinal, só é possível defender um direito se este é reconhecido como tal... E, nesse sentido, o que nos cabe, como sociedade, nesses 35 anos que temos pela frente, para fiscalizar o cumprimento desse direito?
São duas perguntas interessantes. O reconhecimento pelas Nações Unidas do direito humano à água e ao saneamento é de 2010, tem 11 anos. No Brasil, parece que isso não aconteceu. É algo distante, abstrato, aparentemente. Há um certo desconhecimento, tanto por parte dos gestores, dos reguladores e dos prestadores, quanto por parte da própria população, que não se sente detentora de direitos. Se o Brasil fosse um país que aplicasse esse direito, um morador que tivesse sua água cortada, porque não conseguiu pagar a conta, iria à Justiça, que mandaria reconectar o fornecimento imediatamente. Isso é assim em outros países. Aqui já aconteceu, alguns juízes já deram sentença nessa direção, mas é algo muito pontual, não disseminado. Então, há um trabalho enorme ainda pela frente, para se consolidar essa ideia e transformá-la em algo juridicamente aplicável. A propósito disso, foi aprovada recentemente [31/3/2021] no Senado uma Proposta de Emenda Constitucional [PEC 4/2018] para incluir na Constituição o direito humano à água. Está indo para a Câmara, e, depois, infelizmente, terá que passar pela sanção do presidente. Se isso for aprovado, é um passo importantíssimo, para consolidar a ideia e aplicá-la. Em relação a o que fazer é difícil dar receitas, mas a sociedade terá que se organizar, criar observatórios, criar espaços para monitorar como as empresas estão se portando, como a agência reguladora vai tomar suas decisões, até que ponto não ficará capturada pelos prestadores de serviço – um risco seríssimo –, o que o governo do Estado vai fazer, o que os municípios vão fazer, como vão se comportar... Esse acompanhamento dos contratos é fundamental por parte da sociedade. As ONGs têm papel nisso, as universidades, a sociedade civil. Faço parte de um observatório, criado há pouco mais de um ano, chamado Ondas, Observatório Nacional para os Direitos à Água e ao Saneamento, para acompanhar esses processos. Mas não é só o Rio que está privatizando, e sim o Brasil inteiro. A lei orienta todos os estados a privatizar. O Ondas não vai dar conta, vai ser preciso outras instâncias de acompanhamento. Esse é o caminho. E botar a boca no trombone, caso alguma irregularidade aconteça, acionar a imprensa – não necessariamente a imprensa hegemônica, que apoiou muito fortemente, mas as várias formas de divulgação que temos hoje.
A chamada ‘grande imprensa’, de modo geral, mostrou ter apoiado a inciativa da privatização, dando destaque apenas a vantagens, e nada sobre qualquer desvantagem...
Para a imprensa, o leilão foi um sucesso.