Inovação científica com mudança social: articulando desenvolvimento e democracia
O debate sobre ciência e inovação é amplo, e a categoria inovação, polissêmica. Há muitas formas de se conceber a inovação científica e aqui abordo três pontos que precisam ser discutidos para qualquer encaminhamento a esse respeito. O primeiro é relativo ao presente e, nele, às condições sociais e políticas que apontam para possibilidades e limites de futuro; o segundo refere-se à relação entre ciência e sociedade; e o terceiro, a um projeto para o Brasil, o que, ao fim e ao cabo, engloba os pontos anteriores.
Ao falarmos em inovação, é importante enfatizar a ideia de processo. O sincrônico e o diacrônico precisam sempre ser relacionados, confrontados e repensados, um em relação ao outro. Afinal, como perceber e, sobretudo, qualificar a mudança sem uma perspectiva de processo? Inovação em relação a quê?
Acostumamo-nos a pensar a ciência pelo paradigma das revoluções científicas. Nesse sentido, no entanto, gostaria de chamar atenção para o fato de que a inovação leva em conta, necessariamente, os repertórios científicos existentes, e, assim, se realiza não (apenas) pela ruptura com eles, mas pelo aprendizado e aperfeiçoamento, quando então levamos de modo incremental à transformação desses repertórios. Como a inovação do repertório no jazz, se me permitem a metáfora algo heterodoxa.
Pensar, em 2021, o futuro da inovação e da ciência é fortalecer os repertórios da ciência e da democracia – entendendo-se democracia não apenas como regime político, mas como princípio interno de organização da própria ciência. Ou seja, fortalecer o compromisso da inovação com mudança, sem o que, a confiança nas instituições da ciência como produtoras de bens públicos pode se retrair e permanecer em risco.
1. O presente
As crises sanitária, econômica e política que vivemos hoje no Brasil nos trazem muitos e diferentes desafios. Prestes a comemorar duzentos anos da independência política e cem anos do Modernismo – que, como movimento cultural, buscou justamente enfrentar, a seu modo, o problema da persistente dependência cultural –, a sociedade brasileira se vê, mais uma vez, diante de um conflito agudo, na disputa pelo controle político da mudança social. Como esse confronto se trava também no âmbito da cultura, em sentido amplo, os conflitos entre narrativas – sobre democracia, liberdade de expressão, gênero, ciência, vacina etc. –, que atravessam, dividem e reorganizam a sociedade brasileira, parecem explicitar, como poucas vezes antes, paradoxalmente, a importância da ciência.
Não à toa fala-se tanto – com maior ou menor propriedade – em guerra cultural. O que temos percebido mais claramente, de qualquer forma, é que as mudanças na sociedade, na política e, mesmo, na economia, nunca se realizam desacompanhadas de processos culturais e performances narrativas que lhes dão significados. E estamos aprendendo, também, de modo duro, como a vida social é constituída de uma teia de processos e escolhas, de contradições e interdependências, em cujos ramais e caminhos há inclusive espaço para os imponderáveis.
A ciência se encontra em situação paradoxal neste momento: de um lado, é a grande força de transformação social; de outro, seus resultados são frequentemente ignorados, suas descobertas, negadas e suas normas, transgredidas. Se esse não é um processo exclusivamente brasileiro – e não é mesmo, como apontam indicadores internacionais –, assume sentidos urgentes nos dias que correm no Brasil. Sobretudo, se somarmos à visão sincrônica do presente, a diacrônica do processo histórico, para pensarmos uma sequência brasileira de construção/desconstrução das políticas públicas de CT&I, que, afinal, são partes cruciais da confiabilidade na ciência e suas instituições diante do conjunto da sociedade e do Estado.
Alcançar a confiança nas instituições da ciência e da educação superior como produtoras de bens públicos é, por sinal, nosso desafio mais importante, porque o mais premente no presente e decisivo para que possamos falar, de fato, em futuro para a ciência. Nunca foi tão urgente disputar a reputação das ciências. É preciso, de um lado, refazer com criatividade e responsabilidade a comunicação pública das ciências com a sociedade civil organizada, e, de outro, identificar, promover e expandir os pontos de interseção que nos reúnem a todas as ciências como ciência – ou seja, é o momento de assumirmos uma agenda comum.
São desafios científicos e políticos do nosso tempo. Sobre a comunicação da ciência, precisamos de um paradigma novo de comunicação pública. Não se trata mais de uns ensinarem e outros aprenderem, como tradicionalmente pensávamos a difusão do conhecimento, e sim de um experimento pedagógico de produção de conhecimento compartilhado, em que o sentido de igualdade e empatia avancem sobre o da hierarquia.
Sobre a importância da aproximação entre as diferentes áreas do conhecimento, trata-se de promover um fortalecimento mútuo, decorrente da interlocução com as agências estatais que regulam as atividades de ensino, pós-graduação e pesquisa científica no país. Ao tomarmos parte de uma ação coletiva, nos constituímos como sujeitos políticos, ao mesmo tempo, nos percebendo e produzindo reformulações sobre nós mesmos em meio às experiências que nos reúnem.
Essa política de reconhecimento pode e precisa envolver também ações para além de (necessárias e urgentes) reações às ameaças, digamos, externas, como o desfinanciamento de CT&I em curso. A pandemia de Covid-19 ou as mudanças climáticas, para dar dois exemplos cruciais, mostram sobejamente como a complexidade dos fenômenos em pauta, hoje, também já não permite sua inteira domesticação por um campo disciplinar específico. Antes, exige novas abordagens, multidisciplinares. Isso muda internamente a ciência.
2. Ciência e sociedade
A metáfora espacial, com referência a dentro e fora da ciência, é limitada, mas nos remete a um problema de ordem geral: as relações entre ciência e sociedade. Não creio que a dinâmica da ciência possa ser reduzida a priori às condições sociais e políticas vigentes na sociedade. É uma dinâmica que tem lógica própria e não se deixa disciplinar pela estrutura social, embora dela faça parte.
A ciência, frequentemente, se encontra em tensão e, em alguns momentos, em conflito aberto, com a lógica social. Isso permite que não apenas reproduza a estrutura de interesses, de valores e de práticas hegemônicas na sociedade, como também a enfrente e contrarie, e descortine novas pers