Impacto da Covid-19 na atenção ao câncer: serão necessárias estratégias específicas para as novas circunstâncias
“Costumo comparar a Covid na saúde pública com um tsunami. A onda tem efeito muito forte, causando uma devastação, mas, mesmo passado o evento, a recuperação daquilo é extremamente complexa”. A comparação entre a pandemia e o fenômeno natural é do médico sanitarista Luiz Antonio Santini, ex-diretor do Instituto Nacional do Câncer (Inca) e pesquisador do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz Antonio Ivo de Carvalho (CEE-Fiocruz). Ele participou do painel Impacto da pandemia da Covid-19 no tratamento de pacientes diagnosticados com câncer, no 7º Fórum Big Data em Oncologia – Covid X Câncer, realizado de forma remota, em 7/4/2022, ao lado de Nina Melo, coordenadora da Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia (Abrale) e do Observatório de Oncologia, e de Michele Costa, analista de dados em Saúde do Instituto Desiderata.
O painel contou, ainda, com os comentários do ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão, também pesquisador do CEE-Fiocruz, e do médico Neviçolino Carvalho Filho, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Pediátrica.
“O sistema de saúde está profundamente abalado”, disse Santini, que divulgou no painel os resultados da pesquisa Impactos e desafios do câncer na Era Covid-19, realizada em parceria do CEE-Fiocruz com o Movimento Todos Juntos Contra o Câncer (TJCC). A pesquisa ouviu 1.029 pacientes e profissionais de saúde e comparou dados de 2020 e 2021. Em 2020, 774 pessoas participaram do levantamento, por meio de questionário online. Em 2021, o estudo contou com a participação de 255 pessoas. Nesses dois anos, houve relatos de alterações no tratamento oncológico, como interrupções e adiamentos de consultas e procedimentos, em decorrência da Covid-19.
Assista na íntegra ao 7º Fórum Big Data em Oncologia
A pesquisa mostrou que, em 2021, um a cada cinco pacientes disse sofrer alterações em sua rotina de tratamento. Em 2020, essa proporção era de um para quatro. “É uma melhoria, mas o dado ainda é extremamente elevado”, observou Santini. As alterações deram-se tanto no setor privado quanto no Sistema Único de Saúde, sendo que a maioria dos pacientes impactados é de usuários do SUS, saltando, nesse universo, de 69%, em 2020, para 90%, em 2021.
Em relação aos tipos de problemas enfrentados pelos pacientes, tanto em 2020 quanto em 2021 foram apontados remarcações (por 38%, em 2020, e 40%, em 2021) e cancelamentos (por 29%, em 2020, e 25%, em 2021) de consultas. Em relação aos exames, o mesmo problema foi registrado: as remarcações registraram aumento de 38%, em 2020 para 50%, em 2021, enquanto o índice de cancelamentos apresentou melhora, de29% para 10%.
“Sabemos que, em câncer, o fundamental é o diagnóstico precoce. Qualquer alteração nessa trajetória, por falta de acompanhamento adequado ou de remarcação de consulta vai impactar negativamente na saúde do paciente”, destacou Santini, ressaltando que os dados encontrados na pesquisa coincidem em muitos pontos com outros levantados da literatura especializada.
“O impacto imediato registrado prolonga-se no tempo, não só para os pacientes com a doença, como para os que ainda não foram diagnosticados. Sobretudo entre as pessoas que tiveram Covid, no que diz respeito à Covid longa, uma síndrome que ainda nem conhecemos bem”, avaliou.
A pesquisa mediu também o recebimento ou não pelos pacientes de atendimento remoto. Santini avalia que a necessidade de aprimorar soluções de gestão, com novas ferramentas, novas tecnologias, como a telemedicina, provocada pela pandemia, pode ser considerada como um efeito positivo da Covid-19. Um a cada três pacientes relatou ter recebido atendimento a distância durante a pandemia. No entanto, a maioria dos que puderam contar com essa modalidade era usuária da saúde suplementar. O acesso ao atendimento remoto continua sendo um desafio para o SUS. Em relação ao atendimento domiciliar, a maioria dos pacientes respondentes (89%), somando-se os atendidos pelo sistema público e pelo setor privado, relatou, contudo, não ter acesso.
A comunicação dos pacientes com os centros de tratamento, considerada central nos cuidados ao câncer, seja em prevenção, diagnóstico ou acompanhamento, também foi medida. Metade dos respondentes relatou ter tido boa relação com seu centro de tratamento, em 2020. Esse índice subiu para 59%, em 2021, “o que é uma boa notícia”, conforme avaliou o pesquisador.
Sobre a percepção dos pacientes quanto ao futuro do acesso ao tratamento oncológico, mais da metade (66%) considerou que a pandemia irá produzir impacto negativo.
Profissionais de saúde também foram ouvidos na pesquisa. Para 67% dos que trabalham no SUS, os pacientes sofreram algum impacto no tratamento, índice semelhante, 69%, foi registrado pelos da saúde suplementar.
Entre os problemas enfrentados, a ênfase, na percepção dos profissionais, deu-se nas remarcações, tanto no SUS como na saúde suplementar. No SUS, o índice de remarcações melhorou, passando de 47% (2020) para 57% (2021). Na saúde suplementar, registrou pequena queda, de 62% (2020) para 59% (2021).
Ainda pelo olhar dos profissionais, foi observado aumento muito expressivo no índice de cirurgias oncológicas canceladas, que passou de 6% para 46%no SUS entre 2020 e 2021. Na saúde suplementar, esse aumento foi bem menos acentuado, ainda assim dobrou, de 6% para 12%.
Os profissionais de saúde responderam também quanto ao futuro do acesso ao tratamento oncológico dos pacientes: o impacto foi considerado “significativo” ou “muito significativo” para 91% dos que trabalham no SUS e para 77%, daqueles da saúde suplementar.
Para Santini, os resultados mostram que não basta aprimorar o que já vinha sendo feito na atenção ao câncer. “Serão necessárias estratégias específicas para essas novas circunstâncias”, diz. “Já tínhamos dificuldades, pela relação oferta-demanda e pela falta de organização do sistema. O impacto é maior com a pandemia”.
Dados apresentados por Nina Melo, em sua exposição, dão uma ideia dos desafios a serem enfrentados pelo sistema de saúde: estima-se que 625 mil novos casos de câncer serão registrados em 2022; em 112 países, entre eles, o Brasil, onde o câncer é a primeira ou a segunda causa de morte antes dos 70 anos de idade, e em 10% dos municípios já é a primeira causa. Nina apresentou pesquisa que identificou impactos da pandemia em cinco tipos de câncer – de mama , próstata, cólon e reto, pulmão e estômago. “O sistema de saúde é um só. Ainda sofreremos por muito tempo as consequências da Covid-19. Precisamos seguir monitorando para que esses impactos sejam minimizados”, considerou Nina.
No painel, ainda, Michele Costa, apresentou dados da atenção ao câncer relacionados a crianças e adolescentes, alvo dos estudos do Instituto Desiderata. Ela lembrou que o diagnóstico precoce do câncer pediátrico aumenta em 80% as chances de cura e mencionou a política Unidos pela Cura, que orienta o trabalho da organização. A política combina três estratégias para agilizar e monitorar o encaminhamento de pacientes pediátricos a diagnóstico e tratamento, envolvendo o fluxo percorrido pelo paciente, a capacitação de profissionais de saúde da atenção primária para identificar sinais e sintomas e realizarem o encaminhamento adequado e o desenvolvimento de um sistema de informação para registro e monitoramento de casos.
Agir em quatro dimensões
Em seus comentários aos dados apresentados no painel, o ex-ministro José Gomes Temporão observou que o enfrentamento do impacto apontado nas exposições representará um desafio para os próximos anos. Mas que “estratégias reativas” podem levar a resultados precários. “Todos os países do mundo estão vivendo esse impacto, todos os sistemas de saúde estão sofrendo, e o Brasil com suas singularidades, evidentemente, também está em situação difícil”, disse, observando que, pela complexidade do cenário, o país precisará trabalhar quatro dimensões: a de política de prevenção, a da desigualdade estrutural de sua população, a do financiamento da saúde e da necessária reconstrução do Ministério da Saúde.
A primeira dimensão, explica o pesquisador, envolve fatores que “têm relação direta com a incidência e prevalência das neoplasias, tais como tabagismo, padrão alimentar, inatividade física e poluição ambiental. “A incidência e a mortalidade por câncer vêm aumentando no mundo mesmo em um contexto de preciosa incorporação de novas tecnologias, biofármacos, novas técnicas cirúrgicas, inovações em radioterapia etc.”, ressaltou Temporão, acrescentando estar, por isso, “cansado de ouvir que as novas tecnologias vão nos salvar”.
O ex-ministro defendeu “políticas mais ousadas e mais afirmativas” de prevenção. A política brasileira de combate ao fumo, citada como “uma gigantesca vitória da saúde pública brasileira”, vem sendo, no seu entender, infelizmente fragilizada.
Em relação à desigualdade estrutural, Temporão observou que os impactos da pandemia não afetarão igualmente a todos, expressando-se “entre os diferentes extratos da sociedade, mesmo nos 50 milhões de brasileiros que usam planos de saúde, pelas diferenças de cobertura, de acesso, da existência de redes integradas e de continuidade do cuidado”. Para o ex-ministro, a desigualdade pode ser observada, também, “entre as diferentes regiões do país, ainda mais dramaticamente para aqueles que usam o SUS”. Em sua opinião, sem o enfrentamento da desigualdade estrutural e da desigualdade no acesso a diagnóstico e tratamento de qualidade, o país estará construindo “uma estratégia frágil” para lidar com a realidade mostrada nos dados apresentados no evento.
Quanto à terceira dimensão citada pelo ex-ministro, ele observa que o SUS está, hoje, desfinanciado. “A Emenda 95 tem retirado recursos em termos reais. Em 2020 e 2021, tivemos um aumento maior de recursos, por conta do enfrentamento da pandemia, mas isso já se perdeu, e o que se projeta para os próximos anos é delicado e dramático.”
Em sua análise o problema do SUS não é de gestão. “Até porque para uma melhor gestão, tem que ter mais recursos financeiros”, explica o pesquisador. Para ilustrar a dificuldade enfrentada pelo sistema público de saúde, ele comparou, em relação à população a ser atendida, o volume de recursos disponíveis pelo SUS e o do sistema privado. Em 2021, para atender parcialmente 50 milhões de brasileiros, em suas necessidades de exames, consultas, internações e cirurgias, apontou, o setor de planos de seguro de saúde gastou R$ 250 bilhões. Já o SUS, para atender outros 150 milhões que dependem totalmente do sistema público de saúde, da vacina ao transplante – “transplante, inclusive, para segurados dos planos de saúde” –, gastou o mesmo valor. Os números, segundo ele, mostram que ou “está sobrando de um lado ou está faltando muito do outro”.
A quarta dimensão apontada por Temporão referiu-se a uma “reconstrução do Ministério da Saúde”, com a recomposição de sua capacidade técnica e liderança política.
O médico Neviçolino Carvalho Filho também comentou as exposições do painel, destacando a situação dos cânceres pediátricos. Apontou que, do ponto de vista da proporcionalidade, se com os cânceres de adultos já se encontram tantas dificuldades, , a expectativa é que em relação ao câncer pediátrico, embora não haja ainda dados nacionais, a realidade certamente deve ser muito pior, nas diversas regiões do país. “Apenas 2% dos cânceres acontecem em crianças, mas, até os dois anos de idade, é a principal causa de morte entre elas”, informou o médico. “E estamos falando de cânceres curáveis”, lembrou.
Ele também destacou a desigualdade socioeconômica como barreira ao acesso a diagnóstico precoce e assertivo do câncer pediátrico, cujos tumores são completamente diferentes daqueles dos adultos. “Oitenta por cento das crianças que tratam o câncer no Brasil dependem do Sistema Único de Saúde”, informou.