Estratégias preventivas definem futuro do controle do câncer
Na abertura da mesa dedicada ao panorama global e nacional do câncer, no Seminário Controle do Câncer no Século XXI, o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão ressaltou a urgência de repensar políticas públicas diante do avanço acelerado da doença no Brasil e no mundo. Ao introduzir a palestra da pesquisadora Elisabete Weiderpass, diretora da Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (IARC/OMS), Temporão afirmou que o tema oferece “uma oportunidade de debater e repensar políticas de saúde em seu enfoque mais amplo”.
Com base em dados recentes da IARC e da União Internacional de Controle do Câncer (UICC), ele chamou atenção para a magnitude do problema. “Cerca de um em cada cinco indivíduos no planeta desenvolverá câncer ao longo da vida”, destacou. No Brasil, lembrou, o câncer já é a principal causa de mortalidade em mais de 600 municípios, e as projeções apontam para 35 milhões de novos casos até 2050, um aumento de 77% em relação a 2022. Para o ex-ministro, mesmo esses números podem estar subestimados, o que sugere que o país e o mundo podem estar planejando e alocando recursos de forma insuficiente frente ao desafio futuro.
Temporão alertou ainda para o risco de crises de sustentabilidade nos sistemas de saúde, caso não haja preparação adequada. Segundo ele, o cenário se agrava diante de ataques recorrentes à ciência, movidos por fortes interesses de natureza política e ideológica e expressos em cortes de financiamento, campanhas de desinformação e movimentos anti-vacina. Esses fatores, somados à desigual distribuição da carga de doença, aprofundam iniquidades já existentes.
O ex-ministro também enfatizou a importância de considerar determinantes sociais que afetam diretamente o risco de adoecimento. Mencionou, como exemplo, o impacto do estresse cotidiano — especialmente em contextos de violência, precariedade dos serviços públicos, exclusão, racismo estrutural e falta de acesso à cultura. Esses elementos, afirmou, contribuem não apenas para o adoecimento físico e mental, mas também para o aumento do risco de múltiplas doenças, inclusive o câncer, configurando “falhas estruturais e iniquidades profundas no sistema de saúde”.
Para Temporão, enfrentar o problema exige um debate que “transcende a dimensão biológica”, alcançando temas como governança, equidade, ciência, economia, política e cultura. Diante desse cenário complexo, ele celebrou a presença de Elisabete Weiderpass, a quem se referiu como “uma brava brasileira que muito nos orgulha”, por sua liderança na principal agência mundial dedicada à pesquisa em câncer.
A palestra de Weiderpass foi seguida do comentário do professor Richard Sullivan, diretor do Institute for Cancer Policy do King’s College London, que contribuiu virtualmente para o debate internacional sobre estratégias de enfrentamento do câncer no século XXI.
Elisabete Weiderpass alerta para “tsunami” de câncer global e aponta caminhos para fortalecer a prevenção
Em sua apresentação no Seminário de Controle do Câncer no Século XXI, a diretora da Agência Internacional para Pesquisa em Câncer (IARC/OMS), Elisabete Weiderpass, apresentou um panorama alarmante sobre a evolução da doença no mundo e reforçou que a prevenção deve ser o centro das políticas públicas de saúde nas próximas décadas. Com base nos dados mais recentes, Weiderpass destacou que o mundo registrou, em 2022, cerca de 20 milhões de novos casos de câncer e quase 10 milhões de mortes. As projeções indicam que esse número poderá alcançar 35 milhões de novos casos até 2050, um crescimento de 77% impulsionado entre outros fatores pelas desigualdades no acesso aos serviços de saúde.
Em sua fala, ela chamou a atenção para as disparidades geográficas da incidência do câncer e mortalidade no mundo. “A Ásia, 60% da população mundial, representa mais ou menos 50% de todos os casos de câncer no mundo e 56% das mortes de câncer”. De acordo com a pesquisadora, o impacto do câncer como um problema importante de saúde pública será especialmente sentido em países de renda baixa e média, onde os sistemas de saúde enfrentam desafios estruturais para oferecer prevenção, diagnóstico precoce e tratamento adequado.
Os dados por mortes prematuras em indivíduos de idade ativa, definidos como de 15 a 60 anos, 64 anos, em 36 tipos de câncer em 180 países do mundo, também foram apresentados pela pesquisadora. “Indicam prejuízos de cerca de 566 bilhões de dólares, o que equivale a 0,6% do produto interno bruto global”. E dentre as regiões mais afetadas pela perda do PIB estão a África Oriental e a África Central.
Esses e outros resultados das pesquisas realizadas pelo IARC reforçam, segundo a pesquisadora, “a necessidade crucial de investir em prevenção de cânceres em todos os países, mas particularmente nesses países onde o impacto é muito importante, os países de renda baixa e média”.
Em relação ao Brasil, Elisabete disse que o número estimado anual de novos casos de câncer vai chegar a 1.150.000 até o ano 2050, representando “um aumento de 83% do fardo atual que a gente tinha em 2022”. Já o número de mortes diretamente relacionados ao câncer vai subir para 554.000 até 2050, significando “um aumento de quase 100% do que nós temos no ano 2022”.
Diante desse aumento massivo, capaz “de estrangular o sistema de saúde”, é preciso, de acordo com a pesquisadora, que o problema seja discutido com o Ministério da Sáude. “Ações têm quer tomadas agora para evitar um problema maior de manejamento e controle de todos esses casos”, afirmou.
Dentre os desafios enfrentados no Brasil, Elisabete destacou o acesso equitativo à prevenção, à detecção precoce e ao tratamento. “ Um fardo desigual do câncer em diferentes regiões do Brasil em diferentes grupos étnicos em diferentes parcelas da população”, disse, explicando que “o acesso a serviços de diagnóstico e imagem está concentrado em centros urbanos, limitando a detecção precoce para as populações rurais”.
A pesquisadora apontou ainda dificuldades na implementação de políticas de saúde, ressaltando que “embora existam planos nacionais de controle do câncer a tradução em políticas locais eficazes é desigual”.
As principais recomendações da pesquisadora
A partir desses dados, Elisabete Weiderpass apresentou um conjunto de recomendações essenciais para que países possam frear o avanço da doença e enfrentar o futuro sem colapsos nos sistemas de saúde.
Entre as diretrizes, ela destacou ações que visam o fortalecimento da prevenção primária, tais como a redução do consumo de tabaco e álcool, principais fatores evitáveis associados ao câncer, a promoção da alimentação saudável, atividade física e combate à obesidade.
A pesquisadora ressaltou ainda a importância do controle de infeções que causam câncer, expandindo, por exemplo, a cobertura da vacina contra o HPV para meninas e meninos (relacionado a cânceres de colo do útero, ânus e garganta), e reforçando campanhas de vacinação contra hepatite B, como medida eficaz na prevenção do câncer de fígado.
Além disso, sublinhou a necessidade de ampliar o acesso ao diagnóstico precoce e tratamento oportuno, principalmente em áreas vulneráveis.
A prevenção, segundo Weiderpass, funciona e tem a possibilidade de mudar a curva de incidência, mortalidade e sobrevida no Brasil. “Não se trata somente de escolhas individuais, trata-se também de conhecimento coletivo, comunicação eficaz e colaboração global”.
Com base nesses princípios, foi desenvolvido o código latino-americano, lançado em 2023, o qual, como, lembrado pela pesquisadora, teve a participação de Luiz Antonio Santini, pesquisador do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz (CEE-Fiocruz), ex-diretor do Inca e um dos coordenadores do evento. “É uma estratégia que conecta ciência políticas de saúde e todo o esforço societal combinado para combater o câncer por meio de uma metodologia padronizada e de um forte engajamento regional”, explicou.
A publicação, como os outros códigos regionais e globais desenvolvidos pela Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer (IARC) da OMS, fornece recomendações baseadas em evidências regionais adaptadas às realidades culturais e sociais de diferentes partes do mundo.
“Agora várias organizações da sociedade civil estão ajudando a disseminar e, também, o INCA e outras organizações em nível nacional. Seria muito importante que a informação sobre esse código latino-americano fosse apropriada também por essa comunidade”, convidou a pesquisadora.
Weiderpass concluiu afirmando que o conhecimento científico disponível hoje já permite evitar uma parcela significativa dos cânceres previstos. É preciso, de acordo com a pesquisadora, transformar evidências robustas em ações concretas de saúde pública, aprendendo, também, com as estratégias de prevenção adotadas em outros países, que se mostraram eficazes, e adaptando-as para a situação local.
Nesse sentido, o compromisso político, segundo ela, “é absolutamente fundamental” e a colaboração tem o potencial de multiplicar o impacto. “Setores públicos e privados, sociedade civil, comunidade acadêmica, todos tem que ser engajados em um diálogo contínuo para a implementação das políticas”.
Crise global no financiamento do câncer exige reformas urgentes, alerta Richard Sullivan
Os desafios para o controle do câncer no mundo entrarão em uma fase crítica nos próximos anos. O alerta foi feito pelo especialista britânico Richard Sullivan, professor do King’s College London, ao comentar a palestra da diretora da IARC/OMS, Elisabete Weiderpass, durante o Seminário Controle do Câncer no Século XXI. Segundo ele, a combinação entre crise fiscal, avanço acelerado de tecnologias e demanda crescente por profissionais coloca países como o Brasil “no olho do furacão”.
Sullivan destacou que a economia política do câncer está “essencialmente colapsando”. A retração orçamentária global, agravada por mudanças no fluxo internacional de financiamento e priorizações em áreas como defesa, tem reduzido significativamente o espaço fiscal para as doenças crônicas não transmissíveis — especialmente o câncer. “O movimento de recursos para outras áreas e a pressão das dívidas nacionais limitaram drasticamente o investimento necessário”, afirmou.
Ao comentar aos dados apresentados por Weiderpass sobre a força de trabalho em saúde, Sullivan reforçou que, apesar dos avanços, o Brasil precisará praticamente dobrar o número de médicos dedicados à oncologia na próxima década para atender suas metas. E isso ocorrerá justamente quando uma “onda tecnológica sem precedentes” chega ao setor.
Entre as inovações listadas estão testes de detecção precoce para múltiplos cânceres, robótica avançada para cirurgias oncológicas, novas plataformas de radioterapia e uma sucessão contínua de medicamentos e regimes terapêuticos complexos — todos com impacto direto nos custos de cuidado.
Para Sullivan, diante desse cenário, os planos nacionais de controle do câncer precisarão passar por reformas profundas e rápidas. Um dos eixos essenciais, segundo ele, é a incorporação de abordagens adaptativas na avaliação de tecnologias em saúde (ATS) e na definição de pacotes de benefícios, acompanhada de reformas legislativas que priorizem estratégias de alto valor. “Os próximos dois ou três anos serão decisivos”, alertou.
O pesquisador também enfatizou que essas mudanças só serão possíveis com maior mobilização de recursos internos pelos governos e financiamento de bancos multilaterais — que, segundo ele, devem assumir papel crescente no apoio às reformas oncológicas, incluindo instituições como o Banco Mundial e bancos de desenvolvimento da Ásia.
Um obstáculo adicional, observou Sullivan, é a opinião pública, frequentemente influenciada por desinformação impulsionada pelos interesses comerciais ligados às tecnologias e medicamentos oncológicos. “Existe uma narrativa enganosa de que basta mais tecnologia para resolver o problema do câncer. Isso prejudica a compreensão social da necessidade de fortalecer sistemas, serviços e políticas de prevenção.”
A prevenção, aliás, foi um ponto de forte convergência entre Sullivan e Weiderpass. Para o especialista britânico, governos precisam assumir planos de longo prazo — de pelo menos dez anos — para políticas preventivas e ações de saúde pública, mesmo que ultrapassem ciclos eleitorais. Sem isso, afirma, as desigualdades em câncer aumentarão, assim como a oferta de cuidados de baixo valor.
Ele encerrou sua fala com um apelo à comunidade clínica: “Essa transformação exige liderança coletiva. Sem o compromisso e o protagonismo dos profissionais aqui presentes, será muito difícil que a política avance na velocidade necessária.”


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