Espanha: saúde é direito humano ou direito de cidadania? – por Sonia Fleury
O governo espanhol, por meio da promulgação do Real Decreto-ley 7/2018, de 27/7/2018, sobre o acesso universal do Sistema Nacional de Saúde, reconheceu expressamente que o direito à proteção à saúde é inerente a toda pessoa humana, não cabendo sobre ele a introdução de qualquer elemento discriminatório, nem geral, nem particular, em relação a exigências aplicadas a residentes estrangeiros. O decreto atual contradiz, de forma explícita, disposição legal anterior (Real Decreto-ley 16/2012), que restringia o acesso ao sistema de saúde para pessoas adultas residentes na Espanha, porém sem cidadania, apenas ao recebimento de assistência em casos de urgência, ou por enfermidade grave ou acidente, até a situação de alta médica, e também os cuidados na gravidez, parto e pós-parto. A justificativa para essas restrições era a necessidade de estabelecer medidas de urgência com vistas a tornar o Sistema Nacional de Saúde mais sustentável e melhorar a qualidade e segurança das prestações.
O decreto atual justifica, no entanto, que a argumentação que fundamentava a restrição baseava-se em critérios economicistas e conjunturais, voltados à redução do déficit público, sem qualquer evidência de impacto favorável no âmbito sanitário. Ademais, considera a reforma de 2012 como um retrocesso na perspectiva universalista que orientou a criação do Sistema Nacional de Saúde, em franca contradição, portanto, com a Constituição (Ley 14/1986, de 25 de abril) e com a lei do Sistema Nacional de Saúde (Ley 16/2003, de 28 de maio), que estabelece como princípios a vocação universal e o caráter público do sistema, como formas de assegurar a coesão e a qualidade dos serviços.
Além do princípio ético que impede a exclusão da atenção à saúde de pessoas vulneráveis e necessitadas, os princípios sanitários que fundamentam as ações de saúde pública demonstram que a universalidade da atenção não só melhora a saúde individual como também a saúde coletiva
O decreto atual afirma: “El acceso al Sistema Nacional de Salud en condiciones de equidad y de universalidad es un derecho primordial de toda persona. La garantía del ejercicio de este derecho y la protección efectiva de la salud de la ciudadanía cobra aún mayor importancia cuando quienes se ven privados de una asistencia sanitaria normalizada son colectivos de una especial vulnerabilidad, amenazados por la exclusión social, como es el caso de la población extranjera no registrada ni autorizada a residir en España”.
Além do princípio ético que impede a exclusão da atenção à saúde de pessoas vulneráveis e necessitadas, os princípios sanitários que fundamentam as ações de saúde pública demonstram que a universalidade da atenção não só melhora a saúde individual como também a saúde coletiva. Para viabilizar a universalização sem comprometer a estabilidade financeira do sistema foram definidos mecanismos de atribuição dos custos tanto da atenção à saúde como da assistência farmacêutica de estrangeiros residentes, sob responsabilidade do Ministério da Saúde.
Por fim, o decreto atual conlui: “Todo ello redunda en un fortalecimiento del Sistema Nacional de Salud como derecho vinculado a la ciudadanía”.
Afinal, a saúde é direito da pessoa humana ou de cidadania? Quais são as implicações de situar a saúde no âmbito dos direitos humanos ou dos direitos sociais de cidadania?
Com a criação das Nações Unidas, em 1945, abriu-se um espaço para discussão e estabelecimentos de tratados e normas sobre direitos humanos assumidos pelos países signatários. A Declaração dos Direitos Humanos, de 1948, estabelece em seu primeiro artigo que: “Os direitos humanos são direitos inerentes a todos os seres humanos, independentemente de raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer outra condição”.
Algumas das características mais importantes dos direitos humanos são o respeito à dignidade; a universalidade e aplicação sem discriminação; o fato de serem inalienáveis e indivisíveis, inter-relacionados e interdependentes, essenciais para respeitar a dignidade e valor de cada pessoa.
A saúde é um direito humano fundamental afirmado pelas Nações Unidas e reconhecido em tratados internacionais e constituições nacionais. A Constituição da Organização Mundial da Saúde reza, entre outros princípios, que:
• “A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade.
• Gozar do melhor estado de saúde que é possível atingir constitui um dos direitos fundamentais de todo o ser humano, sem distinção de raça, de religião, de credo político, de condição econômica ou social.
• A saúde de todos os povos é essencial para conseguir a paz e a seguranç e depende da mais estreita cooperação dos indivíduos e dos Estados”.
Os direitos de cidadania foram descritos na obra clássica de TH Marshall[1] como podendo ser discriminados, àquela época, em três dimensões: os direitos civis, os direitos políticos e os direitos sociais. O direito à saúde se incluiria entre os direitos sociais, tendo como institucionalidade os serviços sociais públicos, cuja ampliação permitiu o enriquecimento concreto da vida civilizada, uma redução geral dos riscos e inseguranças, uma igualação entre os mais e os menos favorecidos (Marshall, 1967, p. 94). Portanto, os direitos da cidadania são conquistados em processos históricos concretos, e consubstanciam-se em instituições e normas legais de caráter nacional, cuja exigibilidade é garantida pelo Estado-nacional.
A saúde é, pois, tanto um direito da pessoa humana como um direito social materializado em Constituições Nacionais em condições específicas
Diferentemente da concepção dos Direitos Humanos, de âmbito universal e global, os direitos de cidadania se constroem em âmbito nacional específico. A saúde é, pois, tanto um direito da pessoa humana como um direito social materializado em Constituições Nacionais em condições específicas. Assim, apesar de as Nações Unidas definirem, desde a década de 1940, a saúde como direito humano, no Brasil, só em 1988, na Constituição Federal, foi reconhecida como direito de todos e dever do Estado (art. 196).
A construção do Estado Moderno definiu o exercício do poder político como circunscrito a um território e um povo, gerando a noção de Estado-Nação ou Estado nacional. O exercício democrático do poder seria legitimado pelo respeito à vontade dos cidadãos e à preservação dos seus direitos. Esta forma de organização da estrutura de poder se coadunava com a existência de mercados nacionais, garantidos pelo Estado por meio de políticas tarifárias e interdições, que controlavam a circulação de mercadorias em cada território.
Com a desterritorialização da produção e circulação de capitais e mercadorias que corresponde à fase atual da economia globalizada, apenas a cidadania continuou a ser circunscrita ao âmbito nacional, onde se exerce o poder estatal. Tanto na área econômica como política existem poderes supranacionais que restringem as capacidades do Estado nacional. Uma manifestação crescente desta tensão tem sido o apelo de cidadãos às Cortes internacionais contra seus Estados, quando os direitos humanos são desrespeitados por aqueles que deveriam ser guardiões. Caso recente foi a decisão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos que determina que o Estado brasileiro reabra o processo de investigação sobre a morte do jornalista Vladmir Herzog, torturado e morto por órgão repressivo da ditadura.
A Espanha, país que tem vivido uma onda de rejuvenescimento da democracia, com governos comprometidos com a melhoria do bem comum e da participação social, sai adiante ao desfraldar a bandeira de que os direitos de cidadania não podem ser usados para negar os direitos humanos
A limitação da circulação da cidadania tem sido afrontada pela onda crescente de migração de populações que, na esperança de melhorarem sua condição de vida, passam a viver à margem da proteção dos Estados nos territórios para onde se deslocaram (quando conseguem atingir este objetivo). Políticas de austeridade ou de contenção de imigração têm tornado esses grupos de imigrantes em populações destituídas de direitos inerentes à pessoa humana, pelo fato de carecerem do status de cidadania nacional, o que representa um enorme retrocesso civilizatório. A separação dos filhos de imigrantes nos Estados Unidos e os barcos com imigrantes à deriva nas costas de países europeus são imagens desta degradação.
A Espanha, país que tem vivido uma onda de rejuvenescimento da democracia, com governos comprometidos com a melhoria do bem comum e da participação social, sai adiante ao desfraldar a bandeira de que os direitos de cidadania não podem ser usados para negar os direitos humanos, seja por princípios éticos, seja ainda por princípios sanitários.
O Brasil vive hoje situação semelhante, com a dramática chegada de imigrantes venezuelanos em estados do Norte, aumentando os riscos de disseminação de enfermidades como o sarampo. Até o momento, no entanto, o debate e proposições para enfrentar esta crise têm sido tímidos, face à gravidade da situação que ameaça, para além da saúde, a democracia brasileira e seu componente institucional na área de saúde: o SUS.
* Doutora em Ciência Política e pesquisadora sênior do CEE-FIOCRUZ
[1] MARSHALL, T.H. Classe Social e Cidadania, Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967, p