Dengue: viver o presente com os olhos no passado e no futuro – Rivaldo Venâncio, Lucia Teresa da Silveira e André Siqueira
Depois de quase quatro milhões de casos prováveis de dengue em 2024, finalmente a epidemia começa a emitir os primeiros sinais de redução de seu ritmo, aparentemente de forma sustentada, como é o caso, por exemplo, do Distrito Federal, Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. Evidentemente, ainda é cedo para comemorações, e qualquer descuido poderá gerar graves consequências. Sabemos que há represamento no processo de inserção das informações nos sistemas de notificação oficiais, e há ainda risco de recrudescência e aumento dos casos em alguns estados e regiões, razão pela qual toda cautela é recomendável.
De qualquer forma, caso não ocorram surpresas nas próximas semanas, em especial na região Nordeste, onde a circulação do vírus tem sido bem menos intensa, muito provavelmente teremos um mês de maio mais “tranquilo”, quando comparado aos quatro meses anteriores.
Vivenciamos neste ano a maior epidemia de dengue no País, tanto em número de casos quanto em mortos, desde sua identificação em 1982, em Boa Vista (RR). A emergência sanitária que vivemos ceifou muitas vidas, e se não fossem os esforços de gestores, do pessoal da saúde e da sociedade civil, seguramente teríamos vivenciado uma tragédia sanitária.
Precisamos aprender com o passado e com o presente, procurando entender a dinâmica de ocorrência das epidemias registradas ao longo de quase quatro décadas de dengue no Brasil. É fundamental conhecer e aprender com os erros e os acertos, em busca de conduzir melhor as ações de resposta a futuras epidemias e reduzir suas consequências negativas.
Ao estudar as epidemias passadas, identificamos a repetição de equívocos históricos, tais como: retardo na identificação do sorotipo viral circulante nos períodos interepidêmicos, hesitação, e, por vezes, relutância de gestores em reconhecer a ocorrência iminente de epidemias. Assim, se não existe epidemia provável, não há necessidade de resposta oportuna, e é justamente esse retardo no diagnóstico da possível emergência e de seus desdobramentos, que impõem consequências negativas às ações de resposta. Dentre essas consequências podemos citar a desarticulação dos sistemas de saúde locais, o atraso ou ausência das capacitações do pessoal da saúde, necessárias à atualização do conhecimento sobre os protocolos e fluxogramas de manejo clínico, a indefinição dos fluxos de referência e contrarreferência para os casos mais graves, e a demora na compra de insumos e na ampliação da força de trabalho, quando necessárias.
Ao voltarmos o olhar para a totalidade de casos prováveis de dengue na epidemia atual, constatamos impactos diferentes entre localidades, com algumas vivendo experiências bem mais dramáticas do que poderiam imaginar. Os números de habitantes acometidos são impressionantes, como, por exemplo, o caso do Distrito Federal e o de Minas Gerais com um em cada 12 habitantes, e um em cada 18 habitantes acometidos, respectivamente. Com relação às mortes por dengue, confirmadas e em investigação, os resultados mostram disparidades significativas. Ao considerarmos que 75% dos óbitos sob investigação serão confirmados e somando-se a esses, os óbitos já confirmados, vemos, com relação às mortes por casos prováveis, a cidade do Rio de Janeiro com uma morte para cada 5 mil casos prováveis e o Distrito Federal com uma morte para cada 700.
Fonte: Ministério da saúde
Os dados falam ou calam por si, mas é fundamental procurarmos possíveis razões que possam justificar tamanha disparidade entre o número de mortes. Evidentemente, não se busca um “culpado”, ou um único responsável por processo tão complexo e dinâmico. Busca-se aprender com os erros e os acertos, e valorizar e compartilhar experiências bem-sucedidas, para superar os equívocos e evitar que sejam repetidos.
Ao mesmo tempo, surgem as mais diversas explicações para justificar o paulatino declínio na força da epidemia. Dentre as diversas correntes de opinião que buscam explicar o declínio do número de casos, há aquela que credita o fenômeno às ações do poder público para reduzir os índices de infestação domiciliar pelo mosquito Aedes aegypti, e atribui o sucesso das ações às campanhas publicitárias de mobilização popular, e aos milhares de litros de inseticidas liberados no meio ambiente, protagonizado pelo popular “fumacê”.
Outra corrente de opinião, atribui o fenômeno à redução das temperaturas ambientais e do volume de chuvas, em especial nas regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul. Segundo seus defensores, as campanhas de mobilização não tiveram qualquer impacto no declínio epidêmico.
Uma terceira corrente, liderada sobretudo por profissionais oriundos da academia, argumenta que a diminuição no número de novos casos de dengue se deu, exclusivamente, em decorrência do “esgotamento de susceptíveis” aos sorotipos do vírus dengue circulantes. Ou seja, a “barreira imunitária” criada por anticorpos produzidos por estímulo de infecções naturais, ocorridas durante os quatro meses de epidemia, foi responsável por bloquear a cadeia de transmissão, contribuindo decisivamente para a mudança do cenário epidemiológico.
Muito provavelmente, o declínio da epidemia está associado à conjunção de todos esses fatores, e, no momento, é impossível mensurar o peso de cada um deles. Mas, juntos, a mobilização social por meio de campanhas publicitárias, as mudanças ambientais e climáticas e a barreira imunitária certamente contribuem para que tenhamos dias mais tranquilos.
Quaisquer que sejam as razões associadas ao possível e desejado fim da epidemia, precisamos nos preparar para a próxima epidemia, que imaginamos poder ser desencadeada pela ampliação da circulação dos sorotipos de dengue 3 e 4. É sempre bom lembrar que os planos de contingência, quando elaborados de forma oportuna e realista, podem contribuir para que os sistemas de saúde e seus profissionais tenham as condições necessárias para tratar e cuidar adequadamente das pessoas que adoecem e, assim, reduzir as mortes por dengue, que como sabemos são evitáveis em sua maioria.
É fundamental manter a mobilização social contribuindo com o cuidado com o meio ambiente, eliminando quaisquer objetos que possam acumular água e, dessa forma, evitar potenciais focos de proliferação do mosquito Aedes aegypti.
Da mesma forma, é importante que a sociedade cobre das autoridades públicas que também façam a sua parte, realizando a coleta do lixo urbano de forma adequada, fornecendo água para o consumo doméstico de forma regular, sem as rotineiras interrupções, além de exigir políticas públicas voltadas para reduzir essas vergonhas, repugnantes e inaceitáveis desigualdades sociais, há séculos reinantes no País.
*Rivaldo Venâncio da Cunha, médico infectologista, pesquisador da Fiocruz.
**Lucia Teresa Côrtes da Silveira, médica, pesquisadora do Grupo de Ensino e Pesquisa de Emergência e Saúde em Desastres (Gepesed/UFRJ).
***André Machado de Siqueira, médico infectologista, pesquisador do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI/Fiocruz).