Deisy Ventura: “A retomada do SUS como projeto central da democracia brasileira deve ser prioridade em 2023”
O Brasil tinha condição de ser a grande esperança e a grande referência do mundo em desenvolvimento, durante a pandemia de Covid-19. No entanto, a fraca resposta do governo brasileiro à crise sanitária, além de causar “uma grande decepção”, pôs “água no moinho” dos que consideram os sistemas públicos de saúde ineficientes. “O Brasil ajudou a reforçar esse pensamento”, avalia a professora da Faculdade de Saúde Pública e do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo Deisy Ventura, nesta entrevista ao blog do CEE-Fiocruz, concedida entre uma exposição e outra nas diversas mesas de que participou no Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, Abrascão 2022, em novembro.
Conforme analisa a professora, a experiência exitosa do SUS vinha pautando o posicionamento do país, em nível global, sobre temas importantes como propriedade intelectual, controle do tabaco, HIV/Aids, e acabou reservando um lugar de destaque para o país nos foros internacionais. “Só é possível retomarmos nosso protagonismo em saúde global porque existe o SUS”, reforça.
Para Deisy, “não vai ser fácil”, mas é possível reconstruir o país e o Sistema Único de Saúde. “Creio que a expressão reconstrução não só mostra o reconhecimento de que algo foi destruído, como aponta para um movimento, um impulso em relação às tarefas que temos pela frente”, observa. “Mas iremos reconstruir o Brasil sem termos eliminado as forças que propugnam a destruição. Teremos essa tensão o tempo todo”.
Leia a entrevista, a seguir.
Que questões considera mais prementes para o país neste momento de transição governamental, seja do ponto de vista da conjuntura interna, seja observando-se o Brasil em relação ao cenário global?
Entre as prioridades para 2023, destaco a retomada do Sistema Único de Saúde como projeto central da democracia brasileira. Isso, levando-se em conta tanto uma dimensão interna, no enfrentamento da degradação do projeto original do sistema – em aspectos como financiamento; estruturas participativas que sofreram um desmonte; a relação, que se pretende harmoniosa, entre os governos locais e o governo federal, entre outros –, como também uma atuação internacional do Brasil. A política externa brasileira, de modo geral, saía do lugar comum, justamente, por ser pautada pelos princípios do SUS. Não era só o Itamaraty que fazia política externa de saúde. Havia atores importantíssimos, como a Fiocruz, o Instituto Nacional do Câncer, a própria Anvisa, entre outros setores do Estado brasileiro. A experiência exitosa do Sistema Único de Saúde vinha pautando nossa posição em nível global, sobre temas importantes como propriedade intelectual, controle do tabaco, HIV/Aids – tudo isso é SUS! E acabou nos reservando um lugar importante nos foros internacionais, na área da Saúde global. Só é possível retomarmos nosso protagonismo em saúde global porque existe o SUS. Obviamente, também temos o que aprender com os outros países, promover iniciativas conjuntas, uma vez que muitos problemas são semelhantes nos diferentes países, mas fomos sempre percebidos como um país em posição de vantagem. Esperamos que o novo governo dê um lugar importante na agenda política para o SUS, enfrente os problemas que se agravaram nos últimos anos e, naturalmente, retome nossa posição nos foros internacionais.
Em uma das suas exposições no Abrascão, a senhora observou que o Brasil, além de ter perdido uma oportunidade de, com a pandemia de Covid-19, trazer à tona esses aspectos positivos do país, acabou evidenciando ‘como é fácil matar pessoas, como é fácil destruir’. Houve, assim, um duplo prejuízo?
Quem trabalha com saúde global pôde observar como foi comentada a decepção que o Brasil causou no que diz respeito a atender os requisitos da pandemia. Cada capacidade requerida para uma resposta eficiente à emergência sanitária estava contemplada no SUS. Nós seríamos a grande esperança do mundo em desenvolvimento, por contar com esse sistema que tem condição de reproduzir muito rapidamente protocolos, em um território nacional com dimensão continental; tem pessoal de saúde com experiência de trabalho em rede; tem recursos, mesmo que não suficientes; tem, principalmente, o acesso universal como princípio. Quando se trata de uma doença infectocontagiosa, se a pessoa tiver que pagar para fazer um teste, todo o esquema entra em risco.
Os EUA foram premidos a oferecer gratuitamente o teste, o que não é característico da atenção à saúde daquele país...
Sim. E tiveram dificuldades logísticas enormes, porque não têm a experiência que nós acumulamos. Nós já tínhamos tudo isso e... veio a decepção. Mas o que quis enfatizar em minha exposição foi que não só decepcionamos os que esperaram mais de nós, como deixamos de ser referência de como um grande sistema público pode dar resposta eficiente a uma crise sanitária. Busquei trazer outro nível de olhar sobre o que ocorreu, mostrar outro nível de perda que tivemos. É mais do que decepcionar, é colocar água no moinho dos que consideram os sistemas públicos de saúde ineficientes. Nós ajudamos a reforçar esse pensamento. A resposta brasileira foi um desastre não por termos um sistema público, pelo contrário, e sim porque esse sistema não foi usado como poderia ter sido. E mais: o sistema foi sabotado. O presidente da República chegou a declarar guerra aos governadores, como foi amplamente noticiado.
A relação entre os entes federados – União, estados e municípios – estão na base do SUS...
Exatamente. Fizemos um estudo identificando e provando, em uma linha do tempo, que houve, por parte do governo, uma estratégia institucional de propagação do coronavírus e da pandemia de Covid-19 no território nacional. Alguns apoiadores do governo contestaram, mas o governo, mesmo, nunca contestou nosso estudo. Cada vez que a imprensa buscava verificar o que o Ministério da Saúde teria a dizer quanto àquilo, as respostas eram desviadas para números como ‘tantos leitos de UTIs criados’ etc. Mas, mesmo esse tipo de providência, como a abertura de leitos, se deu em resposta à ação judicial, pressão dos governadores etc. Então, o que estou enfatizando é que o país acabou gerando mais um argumento contrário ao sistema público de saúde. Perdemos a oportunidade de mostrar o potencial de um sistema como o nosso. Em vez disso, mostramos que é possível... deixar morrer.
Como viu, nesse sentido, o Brasil no cenário da aquisição, produção e compartilhamento das vacinas contra a Covid-19, em nível nacional e global?
Qualquer governo que tivesse um comportamento racional, no sentido de uma agenda política construtiva – e a agenda da extrema direita é sempre de destruição de pautas; ter um projeto com respostas para cada demanda é algo contraditório à sua própria essência – teria colocado o Brasil na frente da diplomacia das vacinas. O Brasil tem seu PNI sustentado pela Fiocruz e pelo Butantan, instituições públicas que atendem uma demanda interna que é imensa, entre as maiores do mundo. Claro que precisamos investir mais, atualizar nossa capacidade tecnológica – precisamos, quanto às próprias vacinas contra a Covid, dominar outras tecnologias –, mas com a situação em que estávamos no início de 2020, com a quantidade de recursos disponibilizados muito rapidamente no plano internacional para resposta a pandemias, que poderiam ter sido captados, com um leque de parcerias disponíveis, o Brasil poderia ter saltado à frente, ter se apresentado como grande provedor da América do Sul e – a depender de como se saísse – pensar em outros saltos, em relação à África e alguns países da Ásia. Teria que ter havido uma enorme injeção de recursos na Fiocruz e no Butantan. As instituições só conseguiram se manter pela autonomia que têm. Seria muito diferente, se essas instituições tivessem sido ajudadas e não combatidas. Era para o Brasil ter sido um grande catalisador da captação de recursos e organizador da compra de vacinas na América do Sul. Com isso, se credenciaria como um dos grandes líderes do novo Acordo sobre Pandemias. Foram ocasiões perdidas.
Que avaliação faz das relações multilaterais hoje; da cooperação entre as nações e da possibilidade de o Brasil conquistar sua soberania e reduzir sua dependência externa de insumos e equipamentos, de modo a garantir o cuidado à saúde, com qualidade, de toda a sua população?
Vivemos um momento difícil para o multilateralismo. Nunca deixaram de existir conflitos armados no mundo, mas hoje temos uma guerra nas barbas da Europa [a guerra na Ucrânia] e o mundo não foi capaz de evitar. Isso é resultado de algo gravíssimo para a Humanidade, que foi o desastre de a extrema direita chegar ao poder nos Estados Unidos com Donald Trump – não que o Partido Republicano não tivesse já historicamente posições muito duras para a Saúde, como a política da Cidade do México, quanto a direitos sexuais e reprodutivos [chamada também de lei da mordaça global, que proibia o governo de financiar Ongs de outros países para oferta de serviços à saúde da mulher, entre eles, o aborto, e foi revogada pelo presidente Joe Biden]. Os EUA, em muitos períodos, mantiveram posições muito ruins para os objetivos de saúde pública no plano internacional. Mas nunca vimos nada como o governo Trump, no qual houve nada menos do que a saída do país da OMS. O único episódio que conhecíamos, até então, de saída de países da OMS foi o da retirada em bloco dos países soviéticos, por considerarem que os EUA controlavam a organização! Então, existe uma questão mais ampla do que a atual posição do Brasil no cenário global, que é um declínio do multilateralismo e da forma de se enfrentar e mudar isso. Só conseguimos fazer avançar a agenda internacional quando há lideranças! Nesse sentido, temos ouvido, por onde o [presidente eleito] Lula passa, o comentário: “estávamos com saudades do Brasil!”. Essa é uma forma popular de dizer que precisamos de força nas agendas progressistas, que eram as agendas do Brasil.
A palavra mais ouvida durante o Abrascão parece ter sido reconstrução. Como vê a possibilidade de o Brasil estar no caminho de se reconstruir?
Considerando a história política do Lula, a equipe de transição que ele nomeou, com figuras importantes. Na área da Saúde, [os ex-ministros] Temporão, Chioro, Padilha, sabem a que vieram, foram ministros, têm experiência de gestão. Acredito que vá haver uma reconstrução do SUS, sim. Não falo só no sentido de ter esperança, mas também como probabilidade. Vai ser muito difícil, a começar pela reconstrução do Ministério da Saúde – os especialistas que tinham competência, foram afastados das funções mais importantes. A reconstrução do Ministério da Saúde vai possibilitar a reconstrução do SUS, a reconstrução das relações federativas, que ficaram muito abaladas. Não vai ser fácil, mas creio que a expressão reconstrução mostra não só o reconhecimento do que foi destruído como um movimento, um impulso em relação às tarefas que temos pela frente. É uma ótima palavra. Mas iremos reconstruir o Brasil sem termos eliminado as forças que propugnam a destruição. Teremos essa tensão o tempo todo.