Covid-19: os desafios do acesso a tecnologias no mundo globalizado
Completamos um ano desde a Declaração da Organização Mundial da Saúde de que a doença causada pelo novo coronavírus se caracterizava como uma pandemia, em 11 de março de 2020. Pela ausência de terapêuticas eficazes, o distanciamento social é considerado a principal medida de combate à pandemia, porém também colocou de manifesto a desigualdade estrutural presente em nossos países. Além do risco de adoecer, a pandemia exacerbou problemas já existentes e desencadeou um cenário político, econômico e social extremamente complexo. Com a forte recessão econômica, o aumento do desemprego e da informalidade e a falta de proteção social, estima-se que 22 milhões de pessoas na América Latina foram colocadas abaixo da linha da pobreza em 2020 (ver aqui)
Desde o início da pandemia, considerando o desconhecimento da doença e suas características, fato aliado a especulações sobre potenciais tratamentos, vários produtos foram anunciados e propostos como possível tratamento para casos graves da Covid-19. Ao mesmo tempo, a sobrecarga da rede hospitalar e a dependência de poucos produtores acarretaram desabastecimentos consideráveis nos medicamentos utilizados, mas não diretamente relacionados ao tratamento da doença, como foi o caso de anestésicos, bloqueadores musculares, sedativos e outros produtos necessários na atenção a pacientes graves. Pelas nossas características de dependência, também sofremos com a falta de equipamentos de proteção individual, máscaras e respiradores.
Nesse sentido, uma série de iniciativas no âmbito internacional vêm sendo realizadas com o objetivo de acelerar a pesquisa e desenvolvimento e promover o acesso equitativo a medicamentos e outras tecnologias para Covid-19. Cabe destacar a reunião de ministros da Saúde do G-20, realizada no dia 19 de abril de 2020; as resoluções A/RES/74/270 e A/RES/74/274, aprovadas na Assembleia Geral das Nações Unidas, que fazem um chamado para a solidariedade na luta global contra a pandemia e ressaltam a importância da cooperação internacional para assegurar o acesso a medicamentos, vacinas e outras tecnologias para enfrentar a Covid-19; e a resolução WHA73.1, intitulada Resposta à Covid-19, aprovada na Assembleia Mundial da Saúde em maio de 2020, que indica a necessidade de impulsionar a capacidade de desenvolvimento, produção e distribuição para o acesso equitativo e oportuno a produtos essenciais para combater a pandemia, além de defender a remoção de obstáculos ao acesso por intermédio das flexibilidades do acordo Trips, e reconhece a imunização como um bem público global (ver aqui e aqui).
Com a finalidade de agilizar o conhecimento e a resposta de medicamentos propostos para o tratamento de Covid-19, a OMS organizou um amplo estudo multicêntrico, o Solidarity Trial, prevendo a inclusão de mais de cem países e com quatro braços de experimentação (remdesivir; lopinavir/ritonavir; lopinavir/ritonavir + interferon beta; cloroquina e hidroxicloroquina), porém, até o momento, as evidências não apontaram para sucesso na redução da mortalidade. (ver aqui). Diversos outros produtos foram também testados em estudos isolados pelo mundo e muitos grupos de pesquisa estudam o reposicionamento de medicamentos utilizados em outras patologias, porém não há ainda estudo que tenha tido um resultado concreto que mostre a eficácia de algum medicamento para o tratamento de Covid-19.
A OMS também lançou em abril, com o apoio de mais de quarenta países e parceiros, a iniciativa ACT Accelerator (Access to Covid-19 Tools Accelerator), que reúne governos, cientistas, sociedade civil, fundações filantrópicas, empresas e organizações de saúde global com o objetivo de acelerar o fim da pandemia mediante o apoio no desenvolvimento e distribuição equitativa de medicamentos, vacinas e outras ferramentas essenciais para o combate à Covid-19. AACT Accelerator foi organizada com base em quatro eixos principais: diagnóstico, tratamento, vacinas e fortalecimento dos sistemas de saúde. O eixo de vacinas da ACT-A foi denominado Covax que é coordenado pelo Cepi, Gavi e OMS, e tem como missão acelerar a busca por uma vacina eficaz para todos os países, apoiar na construção de capacidade de produção e comprar suprimentos com antecedência para garantir que 2 bilhões de doses possam ser distribuídas equitativamente até o final de 2021.
No mês anterior, a Fundação Bill e Melinda Gates, junto com a Wellcome Trust e a Mastercard lançaram também uma iniciativa chamada Covid-19 Therapeutics Accelerator (CTA), que trabalha junto com a OMS, financiadores e organizações governamentais e não governamentais para acelerar a resposta à pandemia, através da identificação, avaliação, desenvolvimento e ampliação de possíveis tratamentos para a Covid-19.
A OMS lançou em abril a iniciativa ACT Accelerator com base em quatro eixos principais: diagnóstico, tratamento, vacinas e fortalecimento dos sistemas de saúde. O eixo de vacinas da ACT-A foi denominado Covax e tem como missão acelerar a busca por uma vacina eficaz para todos os países, apoiar na construção de capacidade de produção e comprar suprimentos com antecedência para garantir que 2 bilhões de doses possam ser distribuídas equitativamente até o final de 2021
Outra importante iniciativa que merece destaque é o Anticov, amplo ensaio clínico realizado em 19 centros de 13 países africanos, com o objetivo de identificar possíveis tratamentos precoces que limitem a transmissão e impeçam a progressão da Covid-19 para casos graves. O Anticov é coordenado pela Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi) e inclui 26 organizações internacionais e africanas de pesquisa e desenvolvimento.
Desde a experiência de pandemias ou epidemias anteriores, a discussão sobre bens públicos ou bens comuns tem estado presente, conforme já discutido. Como reflexo do surto de ebola em 2014, o Banco Mundial propôs que a preparação para pandemias fosse considerada como um “bem público global”, insistindo ainda num fundo para enfrentar o risco de pandemias. Pouco tempo depois, a OMS tentou estruturar um financiamento coletivo para “bens comuns de saúde”, porém só em 2020 foi possível incluir o termo em uma resolução da OMS.
No contexto das discussões sobre acesso a tecnologias, que estão acontecendo nos diferentes foros mundiais, os representantes da Índia e África do Sul, inicialmente com o apoio de Quênia e Essuatíni, apresentaram na OMC a proposta de suspensão temporária (Waiver) de dispositivos contidos em diversas seções do Acordo Trips, com o objetivo de fazer frente às ações de prevenção, contenção e tratamento da Covid-19, levando ao licenciamento compulsório das tecnologias disponíveis e enquanto durar a pandemia
A partir do chamado de solidariedade para o enfrentamento da pandemia feito pelo presidente da Costa Rica, a OMS aprovou o estabelecimento de um pool de tecnologias relacionadas com a Covid-19. Essa iniciativa deu origem ao C-TAP (Covid-19 Technology Access Pool), que tem como objetivo acelerar o desenvolvimento de produtos necessários para combater a pandemia, acelerar o aumento da escala de produção e remover barreiras ao acesso, através do compartilhamento de informações, dados, conhecimento e outros recursos. (ver aqui).
Desde julho de 2020, a África do Sul vem discutindo na OMC a necessidade de encarar as questões relacionadas à propriedade intelectual no acesso a tecnologias na Covid-19 (ver aqui). Em seguimento a essas manifestações e no contexto das discussões sobre acesso a tecnologias que estão acontecendo nos diferentes foros mundiais, em outubro de 2020, os representantes da Índia e África do Sul, inicialmente com o apoio de Quênia e Essuatíni, apresentaram na OMC, pelo documento IP/C/W/669, a proposta de suspensão temporária (Waiver) de dispositivos contidos em diversas seções do Acordo Trips, com o objetivo de fazer frente às ações de prevenção, contenção e tratamento da Covid-19, dessa maneira, levando ao licenciamento compulsório das tecnologias disponíveis e enquanto durar a pandemia, abolindo provisoriamente a proteção patentária e assegurando a ampliação do acesso universal a esses produtos.
Embora contando hoje com o apoio de mais de cem países e da sociedade civil e organismos multilaterais, essa proposta enfrenta a resistência de países de renda alta e da indústria farmacêutica, tornando difícil o consenso necessário nas deliberações da OMC. Entretanto, dados recentes mostram que cerca de 57 países hoje se colocam como coproponentes da iniciativa e 62 outros apoiam fortemente a mesma, mostrando que dois terços dos 164 membros da OMC clamam por acesso universal e equitativo a vacinas e outras tecnologias no mundo (ver aqui).
Recentemente, o diretor geral da OMS e a diretora executiva do Unicef fizeram uma declaração conjunta chamando a atenção para o nível de gravidade que representa a iniquidade no acesso a vacinas para a Covid-19, ressaltando que dez países haviam capturado 75% das vacinas e que cerca de 130 países não teriam acesso até os anos a seguir (ver aqui).
A recém-empossada diretora geral da OMC, Ngozi Okonjo-Iweala, anunciou uma possível terceira via, menos restritiva, constando do aumento de licenças voluntárias pelas companhias farmacêuticas a países de renda média e baixa para a produção genérica de seus produtos sob patente, mas sem retirar os direitos de propriedade intelectual. Nesse contexto, foi promovida uma reunião de discussão englobando a indústria atualmente produtora de vacinas em processo de regulamentação, produtores potenciais, Covax, Gavi/Cepi e organismos internacionais, na tentativa de alinhar medidas mais aceitáveis para os opositores da proposta da suspensão temporária de direitos de propriedade intelectual para acelerar a capacidade produtiva mundial de vacinas (ver aqui). Os países que propuseram e que defendem a proposta da Índia e da África do Sul apontam a falta de transparência usualmente presente nos mecanismos de licenciamento voluntário, além da absoluta falta de alinhamento entre os interesses das grandes corporações farmacêuticas e a saúde pública (ver aqui).
Especialistas defendem que, se os países ricos continuarem a acumular vacinas, a pandemia pode se prolongar por mais sete anos com todos seus efeitos devastadores, e, mesmo que esses países vacinem sua população inteira, se os países de baixa e média renda forem deixados para trás, o impacto na economia mundial será sem precedentes
É motivo de preocupação a disputa de mercado que se trava atualmente e a corrida pela compra antecipada da produção mundial de vacinas para Covid-19. É sabido que os países ricos, apesar de representarem apenas 16% da população mundial, já compraram antecipadamente cerca de 60% da produção de vacinas para 2021, fazendo com que um grupo dos 84 países mais pobres possívelmente tenham que esperar 2022, 2023 ou até 2024 para vacinar suas populações (ver aqui e aqui).
Especialistas defendem que, se os países ricos continuarem a acumular vacinas, a pandemia pode se prolongar por mais sete anos com todos seus efeitos devastadores, e, mesmo que esses países vacinem sua população inteira, se os países de baixa e média renda forem deixados para trás, o impacto na economia mundial será sem precedentes (ver aqui e aqui). A interdependência econômica dos países implica que o entrave econômico de um país tem consequências graves e imediatas para os outros, ou seja, ninguém está seguro até que todos os países estejam seguros. É lamentável verificar que determinados países utilizaram seu poder de compra e adquiriram quantitativos de vacinas acima de suas necessidades, evitando portanto, uma distribuição mais equânime e equilibrada no mundo.
Ainda mais lamentável é ver que isso é uma questão que se repete de pandemias anteriores. No caso da pandemia de Influenza H1N1, que ocorreu em 2009, os países ricos também começaram a se vacinar meses antes dos países em desenvolvimento. A China iniciou a vacinação de sua população em setembro e os Estados Unidos, em outubro de 2009; já o Brasil só teve acesso às vacinas em março do ano seguinte, no mesmo momento em que as 77 nações mais pobres tiveram acesso, através de um programa internacional de repasse de vacinas. Cabe destacar também, que naquele momento, alguns países ricos acumularam tantas doses que tiveram que descartá-las ou vendê-las.Porém, há diferenças fundamentais entre as duas pandemias e, se os países ricos não agirem rapidamente para garantir uma distribuição mais equitativa de vacinas, esta será uma corrida que todos irão perder.
O tema específico de acesso a vacinas para Covid-19 vem se tornando a principal pauta do momento tanto em nível nacional, como internacional. No último mês, pudemos observar algumas manifestações de organismos internacionais fazendo um chamado pelo acesso equitativo a vacinas. Cabe destacar a resolução e o comunicado do secretário geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), que ressaltam a preocupação dos países membros em relação às medidas que tenham como resultado a iniquidade no acesso e distribuição de vacinas entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, e fazem um apelo para que aumente a produção de vacinas e que os Estados facilitem a exportação, o acesso igualitário com preços justos e a distribuição equitativa das vacinas (ver aqui e aqui)
A importância da resposta do nosso SUS, da produção local, do fortalecimento de nossas instituições públicas e do complexo econômico e industrial da saúde, representam elementos fundamentais para afirmar a recuperação de nossa soberania sanitária
Além disso, demonstrando o caráter intersetorial do impacto da pandemia, o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou a resolução 2625 (2021), reconhecendo a imunização extensiva contra a Covid-19 como bem público global, a necessidade de aumentar a capacidade de produção de vacinas através de parcerias internacionais e encorajando os países desenvolvidos a doarem doses de vacinas para países de baixa e média renda através do mecanismo Covax.
Certamente, na pior tragédia sanitária que atingiu nosso planeta, chegando a cerca dos 120 milhões de casos e 2,6 milhões de óbitos no mundo, o Brasil está sendo atingido de maneira desproporcional à capacidade de resposta mostrada em tragédias anteriores. A importância da resposta do nosso SUS, da produção local, do fortalecimento de nossas instituições públicas e do complexo econômico e industrial da saúde, representam elementos fundamentais para afirmar a recuperação de nossa soberania sanitária. Os desafios são cada vez maiores, mas mesmo tardiamente, foi iniciado o plano de vacinação em âmbito nacional, contando com vacinas cujas tecnologias serão absorvidas e potencializadas no Brasil no futuro imediato. A Fundação Oswaldo Cruz e o Instituto Butantan são baluartes da Ciência e da Medicina no Brasil, repercutindo no mundo, para além das nossas fronteiras.
Entre as lições aprendidas nestes doze meses, de perda de tantas vidas, do sofrimento e enlutamento de tantas famílias, de restrições e confinamento, temos certeza de que a solidariedade que se buscou e que nem sempre foi priorizada no mundo globalizado pode nos tornar capazes de legar um futuro mais justo para as gerações por vir.
* Luana Bermudez, assessora da Presidência da Fiocruz, doutoranda da Ensp/Fiocruz e membro da UAEM Brasil (Universidades Aliadas por Medicamentos Essenciais); Jorge Bermudez, pesquisador em Saúde Pública da Ensp/Fiocruz e pesquisador parceiro do CEE-Fiocruz
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