Colonialidade do Poder, Biodiversidade e Direito
Por Pedro Brandão – Publicado no Outras Palavras
Sementes de identidade.
Em meados de 2011, mais de cinquenta organizações do Peru se reuniram em defesa das três mil duzentas e cinquenta variedades de batatas. Essa diversidade, herança de oito mil anos de cultura camponesa, hoje em dia está ameaçada de morte pela invasão dos transgênicos, pelo poder do monopólio e pela uniformidade das plantações. Paradoxal mundo é este, que em nome da liberdade convida a escolher entre a mesma coisa e a mesma coisa, na mesa ou na televisão
Eduardo Galeano (1)
Não é o nosso objetivo desenvolver de forma detalhada os aspectos fundamentais da relação entre biodiversidade e capitalismo, que são vastos e mereceriam um trabalho à parte, mas apenas situar o leitor nos seus pontos mais sensíveis. A finalidade é preparar o terreno, em diálogo com a colonialidade do poder, para a discussão do novo marco legal de acesso à biodiversidade.
Baseado em ampla pesquisa formulada com dados de 278 plantas nativas brasileiras, estudo demonstrou, à época, que 94,2% das patentes documentadas a partir dessas plantas pertenciam a empresas estrangeiras. Por outro lado, somente 5,98% de tais patentes eram detidas por empresas e universidades brasileiras. (2) Sem dúvidas, o debate sobre a biodiversidade é uma das facetas mais perversas da colonialidade do poder, em especial – mas não só – no âmbito da colonialidade do imaginário. Temos o desafio de pensar o conhecimento para além da lógica mercantil. Ao tratar do tema, estamos lidando com uma teia complexa que envolve, de um lado, sistema-mundo capitalista, patriarcado, Estado, lucro, colonialidade do saber e, de outro, territorialidade, identidades, resistências e conhecimentos compartilhados.
Para se ter uma ideia do que está em jogo nessa discussão e todos os potenciais interesses envolvidos, o Brasil é o país com a maior biodiversidade e sociobiodiversidade do mundo. São mais de 300 povos indígenas e inúmeras comunidades tradicionais que cultivam o conhecimento tradicional coletivo. De acordo com dados do Ministério do Meio Ambiente, o país abriga mais de 20% de todas as espécies da terra. Além do Brasil, países como México, China, Colômbia, Indonésia, Quênia, Peru, Venezuela, Equador, Índia, Costa Rica e África do Sul representam em torno de 70% da diversidade biológica global. (3) São números inigualáveis, que nos colocam na posição de país mais megadiverso do mundo, de maneira que a biodiversidade se transforma num lugar de disputa central da economia política. (4)
Por outro lado, a indústria farmacêutica e a indústria de sementes movimentam bilhões de dólares. Nos Estados Unidos, de acordo com o Banco Mundial, somente o mercado de fármacos produzidos através da medicina tradicional rendeu mais de US$ 32 bi, sendo que mais da metade dos remédios receitados no ocidente são produzidos a partir de florestas tropicais localizadas na região equatorial e no hemisfério Sul, enquanto três quartos das informações utilizadas na produção de medicamentos são derivadas dos conhecimentos tradicionais. (5) Dados mais atualizados também apontam que o mercado de produtos biotecnológicos gira, no mundo, em torno de 500 bilhões de dólares e, no Brasil, aproximadamente US$ 500 milhões. (6)
O uso da sociobiodiversidade por empresas capitalistas parece tratar de uma expropriação do conhecimento que, de um lado, o condena simplesmente ao lugar de pertencente ao passado; e, de outro, o valoriza apenas para a reprodução da visão mercantil. Assim, o conhecimento comunitário está duplamente localizado na lógica da colonialidade do poder: ou pela sua negação completa, através do epistemicídio; ou pela sua validação somente vinculada à lógica do lucro, isto é, como um saber meramente instrumental ao mundo capitalista.
Para Santos, não deixa de ser curioso que um conhecimento indígena e camponês, lido pela modernidade como inferior, passe a ser despertado para resolver problemas decisivos da humanidade. É assim que os territórios e os conhecimentos tradicionais vão sendo “integrados no processo de acumulação capitalista à escala mundial e nessa medida transitam de um sistema de pertença subordinada pela exclusão, para um sistema de pertença subordinada pela integração”. Com isso, os saberes do Sul são transformados em mera matéria-prima para os conhecimentos hegemônicos e quem mais se beneficia dessa lógica, como é evidente, são as empresas transnacionais farmacêuticas e da agroquímica – sobretudo diante das regras globais de patentes de apropriação privada do conhecimento que continuam a fundar desigualdades baseadas no eixo Norte-Sul. (7)
É na intelectual e ativista indiana Vandana Shiva que encontramos uma chave crítica fundamental para questionar o modelo transnacional de apropriação dos conhecimentos tradicionais e da natureza. Ela localiza justamente no colonialismo a chave fundamental para compreender o início da espoliação. Partindo de 1492 e do extermínio dos povos indígenas, Shiva afirma que está em andamento um projeto de colonização por meio das patentes e dos direitos de propriedade intelectual.
A autora faz a relação entre as empresas transnacionais, os colonizadores europeus e a naturalização da apropriação violenta para argumentar que a percepção eurocêntrica fundamenta os direitos de propriedades levadas à frente pela Organização Mundial do Comércio (OMC), de maneira que “quando os europeus colonizaram o resto do mundo pela primeira vez, sentiram que era seu dever ‘descobrir e conquistar’, ‘subjugar, ocupar e possuir’. Parece que os poderes ocidentais ainda são acionados pelo impulso colonizador de descobrir, conquistar, deter e possuir tudo, todas as sociedades, todas as culturas”. (8) Afinal, eles foram “capazes de descrever suas invasões como descobertas, sua pirataria e roubo como comércio, e o extermínio e a escravatura como missão civilizadora”. Esse movimento é descrito por Shiva como a segunda chegada de Colombo, uma vez que “a biopirataria é a ‘descoberta’ de Colombo 500 anos depois de Colombo. As patentes ainda são o meio de proteger essa pirataria da riqueza dos povos não-ocidentais como um direito das potências ocidentais”. (9) Ao fim o que o capital busca, na verdade, são novas colônias para o processo de acumulação.
Como já analisamos, a dualidade cartesiana foi fundamental para a expansão do projeto capitalista, baseado na inferioridade da natureza. Resgatando tal dualismo, Shiva afirma que, depois da devastação da natureza, novas colônias precisam ser encontradas pelo capital: o corpo da mulher, as plantas e os animais. Se a primeira colonização foi conquistada pelas embarcações de guerra, a segunda é conquistada pela engenharia genética. O capital, para a autora, vai a lugares onde nunca esteve antes. (10)
Nesse sentido, com Santos, se no início da formação do sistema-mundo os indígenas foram transformados em recursos de trabalho, hoje as empresas farmacêuticas multinacionais tentam transformar os povos locais em recursos genéticos e em instrumentos de acesso à fauna e à flora, por meio dos conhecimentos tradicionais. É a ocupação não somente dos territórios, mas também do conhecimento: “O selvagem e a natureza são, de facto, as duas faces do mesmo desígnio: domesticar a ‘natureza selvagem’, convertendo-a em um recurso natural”. E se a natureza é um mero recurso, sua exploração sem limites está devidamente legitimada. Nos dois casos, de qualquer forma, trata–se de uma estratégia de dominação a serviço do sistema econômico. Tanto que a distinção entre “recursos humanos” e “recursos naturais” é absolutamente frágil, desde o século XVI até o momento. (11) A transformação da vida em matéria-prima parece selar a aliança entre ciência, tecnologia e capital. (12)
Talvez o exemplo mais perverso da exploração capitalista e das relações Sul/Norte seja justamente a biopirataria.
Para além das formas “legais” disciplinadas em ordenamentos jurídicos nacionais e internacionais, a biopirataria é a apropriação do conhecimento sem o consentimento da comunidade, ou, como define Hathaway: “é o roubo – ou, mais formalmente, a ‘apropriação’, por mais imprópria que seja – de materiais biológicos, genéticos e/ou dos conhecimentos comunitários associados a eles em desacordo com as normas sociais, ambientais e culturais vigentes, e sem o consentimento prévio fundamentado de todas as partes interessadas”. (13) No mesmo sentido, a biopirataria é a “atividade que envolve o acesso aos recursos genéticos de um determinado país ou aos conhecimentos tradicionais associados a tais recursos genéticos (ou a ambos) em desacordo com os princípios estabelecidos na Convenção sobre Diversidade Biológica”. (14) Na realidade do sistema-mundo, são práticas de biopirataria global ou biocolonialismo (15), bioimperialismo (16), imperialismo biológico (17) ou pirataria ecológica. (18) É, em suma, um “nuevo assalto colonialista” (19) ou uma nova forma de apropriação para uma velha sede de conquista. (20)
Por tudo isso, provocando a autora indiana a partir da colonialidade do poder, poderíamos questionar: seria o regresso de Colombo, ou ele – enquanto metáfora da colonialidade/modernidade – na verdade nunca foi embora? De toda maneira, se a modernidade é um processo inconcluso, aqui também se encontra o sistema-mundo moderno-colonial (Quijano/Dussel) com Shiva e as teorias críticas do direito: em especial, as formas jurídicas e o acesso à biodiversidade na regulamentação jurídica internacional.