Christovam Barcellos: “Quem terá que produzir os dados georreferenciados da Amazônia somos nós brasileiros, interessados na sua defesa e soberania"
Para subsidiar as ações emergenciais de saúde pública no Território Yanomami, um grupo de pesquisadores da Fiocruz, coordenado pelo geógrafo Christovam Barcellos, pesquisador do Laboratório de Informação em Saúde do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Lis/Icict), está montando um sistema de informações da região. Em entrevista ao blog do CEE-Fiocruz, Barcellos explica que, embora esse território seja bem estudado, nos últimos anos, muitas das instituições responsáveis pela atualização da coleta de dados da região e dos indígenas, tais como Funai, Inpe e, o próprio Ministério da Saúde, por meio de seu Departamento de Atenção Primária à Saúde Indígena, tiveram suas ações descontinuadas, pelo desmonte que sofreram. “O resultado é que ficamos sem informações atualizadas sobre o território e a população yanomami”, explica Barcellos.
Criado com o objetivo de subsidiar o trabalho das equipes que estão indo a campo, o novo sistema de informações foi nomeado como Geo-yanomami. Em um primeiro momento, a equipe tem reunido todas as informações já existentes sobre os indígenas e seu território, levantadas não apenas pela Fiocruz, mas por outras instituições de pesquisa, secretarias de saúde e organizações não governamentais. Uma segunda etapa do trabalho, já em andamento, é a inserção de dados coletados por ferramentas de georrefenciamento, imagens de satélite e radar, que permitirá mostrar, entre outras características da região, a presença de aldeias ocupadas ou não, rios, turbidez na água, indicando provável atividade de garimpo. A partir do cruzamento desses dados com outros indicadores de saúde, tais como os dados epidemiológicos, o sistema possibilitará melhor compreensão do que está acontecendo com esse território. Em uma etapa posterior, o novo sistema de informações poderá ser atualizado com informações coletadas pelo trabalho de campo. Além da equipe da Fiocruz, o trabalho tem mobilizado a participação multidisciplinar de voluntários de outras instituições, assim como de lideranças locais que contribuirão para a intepretação de todos os dados.
O Ministério da Saúde declarou emergência em saúde pública de importância nacional a situação de desassistência sanitária e nutricional dos índios do Território Yanomami no Norte do país. O Governo Federal lançou uma série de ações emergenciais para o enfrentamento da crise. Como o trabalho de vocês pode contribuir para o êxito das ações e como está sendo implementado?
Uma importante providência do governo foi a criação de grupos temáticos, interdisciplinares, para enfrentar a situação de crise sanitária e humanitária. A situação dos yanomami é um problema bastante complexo e envolve várias ações. Tem pela menos cinco, seis ministérios envolvidos. Foi criada uma sala de situação dentro da Fiocruz para apoiar o COE-Yanomami [O Centro de Operação de Emergência – Yanomami foi mobilizado pelo governo federal, no dia 26 de janeiro de 2023, com a responsabilidade de organizar as estratégias de resposta e medidas a serem empregadas para responder a Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional no Território Yanomami]. Logo de início observamos que faltava o mínimo de informação, inclusive para organizar essa ação de emergência.
Existia na região uma atuação muito forte da Funai, do Ministério da Saúde, através do Departamento de Atenção Primária à Saúde Indígena e de ONGs, que eram muito atuantes. Mas muitas ONGS foram expulsas nos últimos anos. Várias estratégias foram usadas, nesse período, para o desmonte das instituições e o resultado é que ficamos sem informações atualizadas sobre o território e a população yanomami. Uma delas foi simplesmente diminuir verba, não fornecer infraestrutura de trabalho. Foi isso o que aconteceu com a Funai, por exemplo, que embora não tenha sido proibida de entrar no Território Yanomami, não contava com recursos para atuar. Outra coisa que aconteceu foi o desmonte do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). O Inpe foi impedido de executar algumas tarefas que faziam parte de sua rotina de trabalho. Com tudo isso, perdemos vários dados sobre a Amazônia. O próprio ministério da Saúde, por meio da Secretaria Especial de Saúde Indígena, também perdeu muita capacidade de atuação naquela região.
Nesse contexto, então, como passaram a atuar?
O primeiro movimento está sendo organizar os dados disponíveis para subsidiar as ações de campo emergenciais. Um segundo movimento, nos permitirá avaliar quase que instantaneamente o que está acontecendo lá, verificar em que áreas estão os problemas, que grupos de população estão sendo mais afetados. Estamos pensando em fazer boletins semanais com as informações que forem chegando do campo. Por enquanto, nós estamos produzindo informações para subsidiar o COE-Yanomami. Existem situações terríveis. Não se sabe ao certo onde está a população yanomami. Nós temos a localização de aldeias com base em um levantamento muito bem-feito, realizado até 2018, estávamos trabalhando nisso até aquele ano. Mas os yanomami têm uma mobilidade enorme dentro do território. Andam no inverno para uma região, no verão, vão para outra. Se se sentirem ameaçados, se deslocam. Participam de ritos e festejos, que são muito comuns naquela área. Grande parte da população se reúne e vai, mas não é como o carnaval carioca – vai numa celebração e volta para casa. São dias e dias de caminhada até a aldeia onde acontece o ritual. Lá, os indígenas ficam o tempo necessário e depois retornam para seus locais de origem.
Temos a localização dessas aldeias, mas não sabemos o que aconteceu com cada uma delas. Pelas nossas contas, eram 320 aldeias, em 2018. Agora, estão calculando em 430. O que pode ter acontecido? Primeiro, temos que verificar se essas aldeias estão, de fato, ocupadas. Sabemos que algumas delas foram invadidas ou inviabilizadas pela ação de garimpo. O garimpo chegou muito perto e os indígenas fugiram, sendo, em seguida, os locais ocupados por invasores. Temos que ver se cada uma dessas aldeias está ocupada e por quem, se por garimpeiro ou pela população indígena local.
Segundo, temos que avaliar em que situação esses indígenas se encontram. Algumas aldeias podem ter sido abandonadas por medo da violência, de represália e dos boatos de que a área seria invadida. As pessoas evacuam para evitar conflito e, com isso, pode estar havendo superpopulação em outras aldeias, que, nesse momento, estão servindo de refúgio sem ter fonte de alimentos suficiente. Portanto, as ações de saúde devem ser diferentes, concentrando recursos nos polos base onde houve um maior afluxo da população e visitando as aldeias onde pode haver pessoas isoladas, sem nenhum tipo de assistência.
Algumas aldeias pequenas estão sendo completamente tomadas. É sempre bom lembrar que uma grande parte das aldeias está localizada também na Venezuela. Sempre foi assim. Os índios trafegam entre as fronteiras sem restrição; não existe guarda de fronteira naquela região, nem é exigido passaporte do indígena, evidentemente. Então a grande questão, que infelizmente estamos levantando, é que a situação de saúde da população indígena no Território Yanomami possa ser muito pior do que a já noticiada, porque esses indígenas que estão chegando nos polos-base, para unidades de saúde, talvez sejam apenas uma pequena parcela dos que estão tentando fugir das ações violentas do garimpo. Isso é dramático. A gente precisa fazer esse censo, não é nem levantamento, é um censo urgente de onde e como estão todos os índios yanomamis. Claro que vivendo em aldeias, agrupados, porque ninguém consegue viver sozinho numa região dessas.
Como será feito esse mapeamento?
Começamos a elaborar esse mapeamento com base nos dados que temos – o levantamento das aldeias até 2018 –, mas muita coisa mudou de lá para cá. Evidenciaremos os rios, por exemplo. Tanto a população indígena quanto o garimpo dependem de rio, e, por isso, esse encontro entre população indígena e garimpo pode ser dramático, fatal. O relevo é outro aspecto estudado. Conversamos com biólogos, com o pessoal de Ecologia e da produção agrícola. Talvez, nessas áreas muito altas, onde os índios estão se refugiando, não haja fontes de alimento. É uma vegetação completamente diferente. Os indígenas perderam o cultivo. Então, estamos mapeando, também, as áreas cultivadas por índios. Porque elas, geralmente, ficam próximas da aldeia, que aparecem nas imagens de satélite como clareiras, onde cultivam o básico, mandioca, milho... É esse o levantamento que estamos fazendo agora para subsidiar as ações do pessoal que vai fazer o trabalho de campo.
Outro aspecto importante são as pistas de pouso. Nos polos onde era oferecida uma assistência básica aos indígenas, não só de saúde, mas educação, cidadania em geral, com profissionais de saúde, antropólogos da Funai e uma infraestrutura mínima de comunicação, com rádio e internet, havia, também, uma pista de pouso. Fizemos esse levantamento das pistas de pouso que pertenciam às aldeias. Algumas pistas podem ter sido tomadas pelo garimpo. Estamos muito assustados com isso. Além disso, estamos vendo por imagem de satélite que têm pistas de pouso construídas nos últimos anos. Então, provavelmente não são para dar assistência às aldeias indígenas, mas para apoiar o garimpo.
Que técnicas estão sendo utilizadas nesse levantamento?
Estamos usando técnicas bastante modernas, com tudo que a gente pode fazer à distância. E o que que a gente pode fazer à distância? Procurar todos os dados sobre o Território Yanomami que já foram gerados; usar imagem de satélite e ter alguma comunicação com o pessoal local. A gente já conseguiu relatórios muito bons de algumas ONGs que estavam atuando por lá. E, com as imagens de satélite, estamos avançando no mapeamento da região. O desmatamento recente pode ser roça dos próprios índios ou pode ser por causa do garimpo, pista de pouso e estrada clandestina. Nossa tarefa é diferenciar esses padrões pelas imagens de satélite.
O uso do radar ajuda muito. Ele é importante porque na região da Amazônia tem muita nuvem. A imagem ótica do satélite não capta o que acontece debaixo da nuvem. Já o radar cobre a superfície na horizontal, enquanto a imagem de satélite pega na vertical. Com isso o radar consegue ver pequenas deformações do relevo, inclusive abaixo da vegetação, que é o que pode estar acontecendo nas áreas de garimpo. A terra muito remexida pode ser garimpo. E, aí, qual o papel da nossa equipe que está trabalhando à distância? Levantar essas suspeitas: aqui, é uma área provável de garimpo; aqui é uma área de roça nova; aqui, uma possível área de pista de pouso. Por isso estamos chamando nossa equipe de grupo de apoio ao pessoal de campo.
Pode detalhar no que consiste o trabalho de geoprocessamento? Vocês utilizam software, obtêm os dados e depois os utilizam para fazer o mapeamento?
Chamamos de geoprocessamento um conjunto grande de técnicas. Muitos não sabem, mas o nosso celular tem alguns desses aplicativos que usam geoprocessamento. O uso de imagem de satélite é geoprocessamento, uso de GPS, que virou algo muito comum para quem tem smartphone, também é geoprocessamento.
Conseguimos fazer mapas de situação, mostrando, por exemplo, como está a questão da fome, da subnutrição e da desnutrição no Território Yanomami, quando temos os dados. O geoprocessamento tem esse poder fantástico, que é o forte do nosso grupo: juntar informações heterogênea em um único mapa, mostrando, por exemplo, a conhecida relação entre o garimpo e a desnutrição.
Para estudar de forma mais aprofundada essa relação, é claro que a investigação deve envolver uma pesquisa qualitativa. Vamos perguntar o que aconteceu, porque essas pessoas saíram do seu local de origem, se perderam fonte de alimentação. Isso pode ser resolvido por entrevista com algumas lideranças, por exemplo. E nós podemos fazer essa relação cruzando dados.
Por exemplo, se temos o mapa do garimpo e o mapa das aldeias, vemos quais as aldeias muito próximas ao garimpo e quais as afastadas. E utilizando os indicadores de saúde das aldeias é possível perceber os riscos em cada área. Começamos usando esses mapas, marcando uma estrada clandestina que foi construída, por exemplo. Ela é uma linha no mapa. A partir dessa marcação, vemos se essa estrada passou por alguma aldeia indígena. Posteriormente, com o cruzamento de dados, utilizando, por exemplo, dados epidemiológicos, descobrimos se aconteceu algum problema de saúde por ali, se a aldeia indígena perdeu população, e fazemos uma associação entre eles e a estrada clandestina.
Claro que em geral nós só conseguimos levantar hipóteses. Para comprová-las, é preciso trabalho de campo. Se localizamos uma aldeia que tinha, por exemplo, duzentos habitantes e, depois da estrada construída ou depois da introdução de um garimpo, cai para zero habitante, isso significa que aconteceu alguma coisa por lá. Até aí, conseguimos aferir com o geoprocessamento. Mas nossa preocupação principal agora é com as aldeias que estão afastadas do garimpo e que podem estar passando por situações horríveis de fome e desassistência.
A grande vantagem dessas técnicas de processamento é conseguir juntar essas informações: garimpo, estrada, condições de saúde. Quer dizer, na verdade não estamos mapeando todos os aspectos das condições de saúde, estamos mapeando as aldeias e seus indicadores de saúde, marcando o local de garimpo, o polo base etc. Então temos uma visão integrada, mesmo que de longe. Claro que isso tem que ser complementado com o trabalho de campo. Nosso trabalho é um começo. O pessoal que está em campo está se queixando muito de falta de dados. Estamos numa espécie de retaguarda para alimentar o que eles estão fazendo por lá.
O grupo de trabalho de vocês envolve também pesquisadores de outras instituições. Quais são elas e como fica a participação de instituições como o Instituto Nacional de Pesquisa Espacial (Inpe) e a Funai, que foram esvaziadas durante o governo anterior? Os dados que têm são confiáveis?
Fico até emocionado quando vejo profissionais dessas instituições se oferecerem para ajudar como voluntários. Voluntários, porque não estão exatamente representando as instituições. Muitos tiveram grandes problemas institucionais nos últimos anos. Temos um grupo de WhatsApp que colaborou muito durante a pandemia de Covid-19, no qual lancei essa provocação: quem pode ajudar na questão yanomami? Na hora, apareceu um monte de gente muito bacana. São pessoas mais velhas, que sentiram essa interrupção e até sabotagem observada nos últimos anos nas suas instituições: o Inpe, a Universidade de Brasília (UnB), que tem um laboratório de geoprocessamento muito bom, a Universidade Estadual Paulista (Unesp), que tem um grupo muito bom em Presidente Prudente. As Secretarias de Saúde apareceram. Técnicos das Secretarias de Saúde, por exemplo, do Amazonas e do Amapá. Profissionais que podem ajudar pela experiência que têm com saúde indígena. E, também, se ofereceram como voluntários um grande número de estudantes, jovens que querem ao mesmo tempo aprender novas técnicas e ajudar a recuperar a cidadania, segurança e saúde dos povos yanomami.
E a Funai?
A Funai a gente vai procurar, mas já estamos em contato com a instituição indiretamente, por meio de alguns pesquisadores. Além das instituições que citei, temos a participação de unidades da Fiocruz, que estão ajudando bastante: o Instituto Oswaldo Cruz (IOC), o Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INE), o Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict), onde trabalho, e a Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Ensp). Eles têm contato com a Funai. Por exemplo, o pesquisador Andrey Moreira Cardoso, da Ensp, está muito atuante. Ele trabalha com saúde indígena, mas não tinha experiência no Território Yanomami. Então, procurou pessoas que tinham.
É uma rede, uma pessoa de determinada instituição procura outra, que, por sua vez, procura outra, e assim vai. Hoje mesmo surgiu uma questão interessantíssima: “Olha, descobri umas clareiras na imagem de satélite, mas não parece garimpo. Será que é roça dos indígenas?”. E aí falaram: “Não, mas como é a agricultura dos yanomami?” Claro que a gente não vai responder isso assim de supetão. Vamos procurar alguém que já visitou, tem experiência nisso.
Haverá também um olhar para a produção de alimentos dos indígenas, com a participação da expertise da Embrapa?
Claro. A gente usou agora o censo agropecuário, só que já está um pouco antigo, pois é de 2017, que mostra um pouco da produção dentro da terra indígena: o que que produz e onde.
A rede que está sendo criada já tem nome?
O apelido é grupo Geo-yanomami. Geoproprocessamento Yanomami, mas a gente chama de grupo de apoio de geoprocessamento às ações de emergência do Território Yanomami. É muito bonita, reúne voluntários de várias instituições. Há muitos estudantes de graduação também.
Com base na utilização desses instrumentos de geoprocessamento e de radar para a obtenção de dados georreferenciados, o que que objetivamente a pesquisa irá procurar mostrar?
Algumas informações obtidas, já estamos mostrando como, por exemplo, a relação entre estradas, pista de pouso e garimpo; o rio e a aldeia. Estamos fazendo um mapa de situação. Não temos ainda a quantidade de população porque algumas ocas podem ainda estar lá fisicamente, mas não sabemos se estão ocupadas ou não. Então será necessário fazer, também, um levantamento minucioso de campo.
Por ora, estamos nos concentrando em produzir uma estratificação de riscos. Não são todas as aldeias dentro do território que vivem a mesma situação. Essa sempre é a hipótese de todo geógrafo: não é todo o território que está sofrendo o mesmo impacto. Pode haver lugares onde está acontecendo a fome, porque os indígenas estão afastados de suas roças, outros, afetados pela malária, tuberculose ou violência. Da mesma maneira, a água pode estar contaminada por mercúrio usado no garimpo em alguns trechos de rio, mas seguramente existem fontes limpas e seguras de água naquele território. Temos que mostrar essas diferenças.
Esse já é o segundo passo que vamos dar: produzir esses mapas de situação, mostrando onde está a violência, a fome, a intoxicação por mercúrio e muitas doenças transmissíveis. Lá é uma área de transmissão de malária, de oncocercose, de giardíase, verminoses em geral.
Além desses dados de geoprocessamento e de radar, vocês estão utilizando outros tipos de levantamento de informação para mapear essa região, por exemplo, ouvindo as pessoas?
Lá era uma área muito forte de atuação de ONGs, algumas muito atuantes. Estamos em contato, por exemplo, com a organização Médicos sem Fronteira, com o veículo InfoAmazonia, com o Instituto Socioambiental (ISA). Eles já produziram muitos relatórios. Talvez o povo yanomami seja um dos mais estudados no Brasil. Muito mais do que os indígenas do Sudeste, muito mais do que outros da Amazônia. Tem muitos documentos sobre eles. Temas como a agricultura yanomami estão mais ou menos documentados. Precisamos agora ouvir pessoas que têm experiência por lá, que conhecem um pouco da cultura, das tradições, dos valores e do modo de vida yanomami para interpretar dados e levantar novas hipóteses. Estamos planejando uma oficina e chamar, por exemplo, o Júnior Yanomani, um indígena muito atuante que está sendo ameaçado e precisou se esconder, mesmo depois da decretação da emergência. Essa oficina pode não ser presencial, pois não queremos tumultuar mais ainda o lugar, ir correndo para Boa Vista e pegar um teco-teco para as aldeias, que estão sobrecarregadas. Nós vamos, se tudo der certo, ter uma equipe de campo, quando esse período mais emergencial passar.
E em relação à avaliação da poluição do mercúrio, que requer amostragem nos rios para medir? Nesse momento, nessa primeira fase que vocês não estão lá para coletar amostras, essas técnicas de geoprocessamento podem, também, contribuir para detecção desse tipo de poluição?
Boa pergunta. Eu ia escrever exatamente sobre isso, para cutucar o pessoal que trabalha com imagem. Essa é, sem dúvida, outra possibilidade de trabalhar com imagem. A imagem de satélite é capaz de distinguir, digamos, grosseiramente, a cor do rio. Na verdade, não é cor, é reflectância, que é uma grandeza física – que mede a capacidade de um objeto de refletir a radiação de luz incidente e, nesse caso, o quanto de luz a água do rio reflete. Com isso, a imagem de satélite é capaz de detectar turbidez da água. Se um rio vem mais ou menos claro, translúcido, até um trecho, de repente, aparece uma turbidez muito grande, ali deve haver garimpo, e tendo garimpo, com certeza, tem mercúrio. Então, a fonte do mercúrio está ali. Isso já é caso de polícia, já não é conosco. Nós vamos ajudar a detectar onde estão fazendo mineração suja. Mineração com mercúrio.
Mineração ilegal.
Sim. O mercúrio é capaz de ser transportado por quilômetros e quilômetros. Nós vamos ver focos de uso de mercúrio provavelmente. Agora o sedimento do rio acumula mercúrio, que vai para as algas, que são consumidas pelos peixes e os peixes entram na cadeia alimentar humana. E nessa região, as pessoas têm um hábito muito forte de consumir peixe como fonte de alimento. Então pode ser, inclusive, que tenha indígena que vive longe do garimpo e apresente traços de intoxicação por mercúrio. O presidente Lula falou enfaticamente nas últimas entrevistas. "Não quero amostragem sobre mercúrio, quero um levantamento sobre níveis de contaminação por mercúrio de toda a população. Para isso existem métodos rápidos, que não são tão invasivos e medem essa contaminação, por exemplo, usando fios de cabelo.
Os toxicologistas, entretanto, explicam que não basta saber se a pessoa está exposta. É preciso saber se ela está intoxicada, porque a intoxicação pelo mercúrio causa danos neurológicos terríveis. Em alguns casos, a pessoa não pode mais andar direito, não consegue segurar as coisas etc. Isso pode estar relacionado com a fome, pois a pessoa não consegue fazer colheita de alimentos, não consegue caçar nem pescar.
Nas crianças a contaminação por mercúrio pode afetar o aprendizado também.
Muito. O metal se acumula no sistema neurológico e sistema nervoso. É um perigo. Tem que ser feito o exame clínico.
Do mesmo jeito que se testou a população para Covid, será preciso um teste para medir essa contaminação?
Exato.
O trabalho de vocês de coleta de dados já começou? Em quantas etapas será realizado?
Sim. A primeira etapa é esse apoio ao COE, reunindo todos os dados já existentes possíveis. Em seguida, provavelmente utilizando um aplicativo bem simples, passaremos as informações para quem estiver no campo conseguir ler. Estamos nesse momento discutindo como fazer isso. Obviamente esse aplicativo não pode depender de Wi-Fi, nem de rede de dados. Tem que funcionar offline também. Isso vai requerer investimento em tecnologia. Se abrirmos um aplicativo desses de mapa disponíveis nos celulares, como Google Maps, Waze, no meio do Território Yanomami, como expliquei, não vai aparecer nada. Vamos ver uma tela em branco. Numa cidade grande aparecem as ruas, os engarrafamentos, hospitais etc. É isso que a gente quer produzir, esse fundo que nós chamamos de contexto para a pessoa se situar quando for a campo.
Segundo passo será desenvolver um aplicativo para coleta de dados. A pessoa chega numa aldeia nova e encontra tudo abandonado e informa em que condições encontrou o lugar, que ali estava abandonado etc. Se chegar numa outra aldeia com superlotação de população indígena, ela informa que ali tem superpopulação; se a pista de pouso está funcionando e se existe algum problema de saúde que exige intervenção rápida. Ela coleta todas essas informações e, depois, quando tiver acesso a Wifi e a rede de dados funcionando, envia para a nossa equipe. Aí podemos atualizar esses dados.
A terceira etapa envolve os dados de saúde, uma grande preocupação nossa. Não basta dizer que 570 crianças morreram de fome. Isso é um pedaço do problema. É preciso informar onde essas 570 crianças estavam. Próximas da área de garimpo? Essa pode ser uma hipótese ainda mais trágica do que parece numa primeira leitura. Se todas essas 570 estavam no Núcleo Surucucu, o mais visado pela mídia, onde têm médicos e outros profissionais de saúde, as outras crianças, onde estão? Tem gente que nem dorme mais com essa preocupação. Morrer de fome é a última etapa de uma tragédia. Antes de morrer de fome, a pessoa ficou subnutrida, se intoxicou por mercúrio, pegou alguma malária. Esses outros eventos, que podem não causar a morte, são perigosos também e têm de ser tratados, controlados. Essa é a última fase do nosso trabalho: recolher esses dados para fazer mapa de situação, mostrando o que está ruim, evidenciar o que pode estar faltando, fazer um levantamento minucioso de dados.
Quem vai fazer a leitura e interpretação desses dados? Será a equipe da Fiocruz?
Aí é que entra a rede. Para fazer uma análise dessa é preciso entender de Geografia, de Cartografia, mas também de malária, de oncocercose, de fome, de hábitos dos indígenas, de Economia etc.
Tem que ter uma equipe multidisciplinar para isso.
Claro, por isso queremos promover uma oficina multidisciplinar para que as pessoas (pesquisadores em saúde indígena, antropólogos e as lideranças indígenas) possam ajudar a interpretar. Nosso grupo, predominantemente de geógrafos, produz dados para essa outra equipe multidisciplinar interpretar.
A Fiocruz tem essa grande vantagem. Costumamos dizer que, quando vamos almoçar, esbarramos em um especialista em malária, tropeçamos e caímos numa pessoa que entende de saúde indígena, e ao ir comer uma sobremesa, encontramos com um entendido em saúde mental. Temos na Fiocruz as condições mínimas de fazer esse diagnóstico de situação e ajudar, tanto durante essa emergência, quanto depois, na construção de um sistema de saúde adequado e digno para o Território Yanomami.
A oficina que estão programando fazer, já tem data?
Deve acontecer assim que a gente começar a receber os dados de campo. Essa será uma etapa decisiva.
Que comentários pode fazer a respeito do uso de tecnologias a serviço da saúde, mais especificamente das novas tecnologias digitais? Qual o cenário atual da utilização, direta e indireta, dessas tecnologias e o que elas representam para estudos futuros?
Essas novas tecnologias digitais podem oferecer uma gama de informações. Quem é urbanoide, quando abre um smartphone com alguns aplicativos, consegue localizar, por exemplo, um restaurante próximo, um posto de gasolina ou como se chega a determinado lugar. Muitas vezes a pessoa não se dá conta da riqueza de dados que está usando. Esses dados vêm de diversas origens: o posto de gasolina está lá porque foi cadastrado por alguém; da mesma forma, o posto de saúde, por outra pessoa. Está ficando cada vez mais fácil acessar essas informações e não precisa ser um entendido em geoprocessamento, um especialista para isso. Quem está produzindo dados e as ferramentas digitais, sim, deve ser um expert. O usuário, hoje, tem um dia a dia muito facilitado pela tecnologia. O problema é fazer isso no meio da floresta, no meio do mato. Lá, se a pessoa abre o aplicativo, a tela está em branco. Mas, é importante ressaltar, que, também, podemos gerar dados muito interessantes nesses locais: tipo de vegetação do lugar, se há algum rio por perto, se há alguma aldeia indígena próxima, se há alguma trilha para se chegar em algum determinado ponto.
Em geral, as grandes companhias de tecnologia, como Google, Facebook, Bing, não produzem esses dados. Quem vai ter que produzir somos nós, brasileiros interessados na Amazônia, na sua defesa e soberania. Nós teremos que assumir essa tarefa. Difícil, mas é o futuro.
Como está a mobilização das pessoas nesse sentido?
Muito grande. Quero agradecer a participação dos voluntários, que a todo minuto nos procuram se oferecendo para ajudar. É muito emocionante ver toda essa mobilização. Saímos de um dos períodos mais tristes da história do Brasil com muita força e muita solidariedade.