Carla Akotirene defende interseccionalidade como ferramenta para reparação histórica nos 70 anos da ENSP
Publicado no Informe Ensp*
“Sem interseccionalidade, a gente não consegue pensar em reparação histórica, não consegue reconhecer as desigualdades estruturais e não consegue construir um comum”. Numa palestra repleta de referências, citações, exemplos e vivências, a professora assistente na Universidade Federal da Bahia (UFBA) Carla Akotirene aprofundou o tema “Reparação histórica, desigualdades e a construção do comum”, mote do aniversário de 70 anos da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz). Doutora em Estudos de Gênero, Mulheres e Feminismos, ela ministrou a conferência de abertura das comemorações, realizada nesta terça-feira (3/9).
Durante pouco mais de uma hora, Carla Akotirene descreveu diversas dimensões do racismo e compartilhou contribuições intelectuais da epistemologia feminista negra com a audiência que lotou o auditório da ENSP. A palestra também foi transmitida ao vivo pelo canal da Escola no YouTube. A pesquisadora, militante e escritora teve como foco a questão da interseccionalidade e a relevância desse conceito para o pensamento crítico sobre desigualdades, reparação histórica e direito comum. “A interseccionalidade vem para mostrar que essa identidade que eu estou aqui apresentando para vocês está interceptada simultaneamente pelos marcadores de raça, de classe, de gênero, de território, da minha identidade religiosa… Eu não consigo separar uma dimensão da outra”, explicou.
Ao analisar a ideia de identidade a partir de uma “matriz de poder colonial”, a palestrante explicou que “as desigualdades só existem porque não somos reconhecidos em relação às nossas diferenças”. Conforme o argumentado por Akotirene, diferença é uma relação de poder na qual “eu sou diferente de você porque você também é diferente de mim”. No entanto, a visão de mundo hegemônica da cosmovisão ocidental estabelece que o homem branco cis heterossexual é o normativo. “O que os olhos entendem como não sendo idêntico [ao padrão estabelecido] é exatamente a identidade. A identidade passa a ideia de que todos que não são idênticos ao normativo são diferentes. E essa diferença se transforma em desigualdade”, desenvolveu a professora.
Carla Akotirene deu exemplos de situações que ilustram como a interação ou sobreposição de marcadores sociais definem a identidade das pessoas, impactam a relação com a sociedade e afetam o acesso a direitos. Ela deu destaque à inseparabilidade do racismo e do sexismo ao narrar o abandono de uma trabalhadora negra numa situação hipotética na qual os movimentos trabalhista, feminista e racial não assumem seu socorro após um acidente. De acordo com Carla, tal cenário ilustra uma ideia central na epistemologia feminista negra: “nem todo negro é homem e nem toda mulher é branca”. Nesse contexto, ela criticou a ideia de igualdade interpretada como o oposto de diferença. “A gente quer uma igualdade na qual as diferenças sejam reconhecidas”, disse.
Durante a palestra, a convidada comentou as práticas do racismo estrutural e institucionalizado, com suas variadas expressões e transversalidades, como na segurança pública. Nesse sentido, outro exemplo de situação que ajuda a compreender a interseccionalidade foi sobre violência doméstica, que tem as mulheres negras como maioria entre as vítimas. “Elas não querem levar a polícia para dentro dos seus territórios, pois [o agente policial] pode aproveitar para prender meu marido, dar tapa na cara do meu filho e chamar meu sobrinho de maconheiro”, descreveu.
Ao citar Lelia Gonzalez, Sueli Carneiro, Beatriz Nascimento e outras autoras e autores brasileiros e internacionais, Carla Akotirene falou também sobre a importância de fazer “rupturas epistemológicas” com o Norte Global e trabalhar cada vez mais com o conhecimento produzido no Sul Global. Esse movimento, portanto, faz parte da reparação histórica que dá o tom das comemorações do 70º aniversário da ENSP. “São saberes que estão no Sul Global antes mesmo do campo decolonial, da colonialidade e modernidade, se chamarem desta maneira. Somos pessoas que temos um conhecimento que não pode ser apenas colocado como objeto de estudo, mas como autoridade discursiva com nome e sobrenome”, ressaltou Carla.
Para Akotirene, refletir sobre reparação histórica é pensar nas razões da dificuldade que o Estado Democrático de Direito tem de incorporar as contribuições do movimento negro, das mulheres negras e das pessoas LGBTQIA+. “Quando pensamos em reparação histórica, estamos nos referindo ao conjunto de ações que devem ser entendidas pelo Estado, no sentido ampliado de sociedades civil e política, como ações afirmativas que configuram um retrato no qual a própria estratégia jurídica por meio da transversalidade e da interseccionalidade precisam estar presentes”, explicou. A palestrante sublinhou o silenciamento de saberes. “Toda vez que negamos as contribuições filosóficas, epistemológicas e, ainda, o conhecimento produzido pelas mulheres negras, estamos cometendo racismo institucional. Racismo estrutural virou uma palavra-chave que a gente menciona, mas não combate no âmbito das instituições”.
Aspectos da saúde da população negra no dia a dia do serviço permearam toda a palestra, até mesmo pelo fato de Carla também atuar como assistente social no SUS. Ela destacou a importância de compreender a realidade dos usuários para evitar atitudes que reforcem desigualdades e injustiça social. Para ilustrar, ela falou sobre recomendação de dieta chamada saudável para um homem negro periférico que trabalha com atividades pesadas. “Ele quer comer mocotó às 7h da manhã”, provocou Akotirene bem humorada. A palestrante também falou sobre a importância da coleta da informação autodeclarada de raça e cor nos atendimentos de saúde, já que a ausência de dados prejudicam a implementação de políticas públicas para corrigir assimetrias raciais.
Cerimônia de abertura celebra 70 anos da ENSP
Para comemorar o aniversário da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca uma grande mesa de abertura abriu a celebração pelas sete décadas de atuação da ENSP. A mesa contou com a participação de dirigentes e representantes do Ministério da Saúde, da Fiocruz e da ENSP, da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas/OMS), e do Conselho Nacional de Saúde. Na ocasião, foi lançado o vídeo comemorativo dos 70 anos da Escola. Com muita alegria e diante de uma plateia lotada, o diretor da Escola destacou que a ENSP é construída no dia a dia, com a participação de todos.
A mesa contou com a exibição de um vídeo com a fala da ministra da Saúde, Nísia Trindade Lima, seguida do vídeo do diretor da Opas, Jarbas Barbosa. Presencialmente, participaram da mesa o presidente da Fiocruz, Mario Moreira; o diretor da ENSP, Marco Menezes; a coordenadora do Escritório da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) no Brasil, Socorro Gross; a Secretaria de Informação e Saúde Digital do Ministério da Saúde, Ana Estela Haddad; a representante do Sindicato dos Servidores de Ciência, Tecnologia, Produção e Inovação em Saúde Pública (Asfoc-SN), Lúcia Helena Silva; a coordenadora de Equidade, Diversidade, Inclusão e Políticas Afirmativas (Cedipa/Fiocruz), Hilda Gomes; a integrante da Comissão Permanente de Equidade e Diversidade da ENSP, Maria José Salles; o representante dos trabalhadores e trabalhadoras no Conselho Deliberativo da Escola; Regis Souza; a representante do Comitê Fiocruz pela Inclusão e Acessibilidade das Pessoas com Deficiência, Laís Costa; o presidente do Conselho Nacional de Saúde, Fernando Pigatto; e as representantes discentes da ENSP, Lidiane Bravo e Lilian Silva.
A ministra da Saúde, Nísia Trindade, saudou a Escola e lembrou de quando participou, junto com outros colegas da Casa de Oswaldo Cruz, do livro sobre os 50 anos da ENSP, que tinha como tema ‘Uma Escola para a Saúde’. “Hoje, o tema dos 70 anos é ‘Reparação histórica, desigualdades e a construção do comum’, um tema desafiador, mas que mostra a atualização do projeto histórico da ENSP. Levar o nome de Sergio Arouca mostra bem a vocação desta Escola, atualizada em cada momento”.
Como ministra da Saúde, Nísia destacou o papel estratégico e de referência da Escola em diversas frentes. Como exemplos, citou a área de atuação da Secretaria de Gestão do Trabalho, Educação e Saúde, que tem a ENSP como uma das principais instituições colaboradoras. Além do trabalho relacionado ao cuidado integral à mulher, no qual a ENSP também é referência; da área de equidade étnico-racial; dos direitos humanos; e da inclusão das pessoas com deficiência. “A ENSP, em sua tradição de formação de profissionais para o Sistema Único de Saúde e de profissionais para os sistemas de saúde da América Latina, dos países africanos, em cada uma dessas ações está presente a grande força de uma educação voltada para os desafios do presente e para a construção do futuro”.
Nísia relembrou o papel fundamental da ENSP para a criação da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e outros movimentos importantes na saúde. “Essa importância se atualiza a cada momento. Contar com a ENSP é fundamental para pensarmos o futuro da saúde, o futuro da sociedade e o futuro das políticas públicas equitativas em nosso país. Obrigada, ENSP, e parabéns pelos seus 70 anos”, finalizou.
Em vídeo, o diretor da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas/OMS), Jarbas Barbosa, parabenizou a Escola pelos seus 70 anos, destacando o importante relacionamento entre a ENSP e a Opas ao longo das últimas décadas, reforçando o papel fundamental da Escola na formação de sanitaristas e profissionais que atuaram na construção do Sistema Único de Saúde brasileiro. “Fui aluno da ENSP, com muito orgulho, através da oferta de cursos descentralizados que a Escola organizava. Primeiro fiz a Especialização em Saúde Pública, em seguida a Especialização em Epidemiologia em Saúde Pública. Na época, era uma oportunidade única para que sanitaristas fossem formados nas regiões Nordeste e Norte, quando não havia cursos em instituições desses estados”, lembrou.
Jarbas também destacou a contribuição da ENSP para o fortalecimento do SUS e pela garantia do acesso universal, frisando a importância de se encontrar alternativas para a melhoria do acesso; a remoção de barreiras; a identificação de grupos que não estão sendo alcançados; além de novas estratégias para avançar com a saúde universal e a construção de uma Atenção Primária da Saúde fortalecida e abrangente, que inclua promoção, vigilância, tratamento e diagnóstico de doenças transmissíveis, e não transmissíveis, sendo a porta de entrada de uma rede integrada.
O diretor da Opas, pontuou que os desafios para a saúde atualmente são diversos e complexos, pois envolvem desde impactos do câmbio climático até a formação de profissionais com diferentes habilidades e conhecimentos. “A ENSP, sem dúvida, é uma ferramenta fundamental para o Brasil e segue fortalecendo e formando sanitaristas que tem o compromisso com a saúde da população, espírito crítico e conhecimentos para apontar alternativas e conseguir efetivamente melhorar a qualidade de vida e a saúde das pessoas. Parabéns à ENSP, à direção, a todos os ex-diretores da ENSP, aos alunos e ex-alunos, e aos funcionários. Todos que fazem essa instituição exemplar que é a Escola Nacional de Saúde Pública”, finalizou.
Jarbas também destacou a contribuição da ENSP para o fortalecimento do SUS e pela garantia do acesso universal, frisando a importância de se encontrar alternativas para a melhoria do acesso; a remoção de barreiras; a identificação de grupos que não estão sendo alcançados; além de novas estratégias para avançar com a saúde universal e a construção de uma Atenção Primária da Saúde fortalecida e abrangente, que inclua promoção, vigilância, tratamento e diagnóstico de doenças transmissíveis, e não transmissíveis, sendo a porta de entrada de uma rede integrada.
O diretor da Opas, pontuou que os desafios para a saúde atualmente são diversos e complexos, pois envolvem desde impactos do câmbio climático até a formação de profissionais com diferentes habilidades e conhecimentos. “A ENSP, sem dúvida, é uma ferramenta fundamental para o Brasil e segue fortalecendo e formando sanitaristas que tem o compromisso com a saúde da população, espírito crítico e conhecimentos para apontar alternativas e conseguir efetivamente melhorar a qualidade de vida e a saúde das pessoas. Parabéns à ENSP, à direção, a todos os ex-diretores da ENSP, aos alunos e ex-alunos, e aos funcionários. Todos que fazem essa instituição exemplar que é a Escola Nacional de Saúde Pública”, finalizou.
O presidente do Conselho Nacional de Saúde, Fernando Pigatto, saudou a Escola, destacando sua longa relação com o CNS, lembrando o papel da Escola como palco de lançamento dos relatórios da 16ª e da 17ª Conferência Nacional de Saúde. Pigatto finalizou anunciando o Mestrado Profissional que está sendo desenvolvido pela ENSP e CNS, voltado ao controle social. “Estamos falando de participação social garantida para todo o país”, celebrou ele. A parceria entre as entidades para o desenvolvimento do curso busca qualificar o quadro de conselheiros e conselheiras de saúde das três esferas e de profissionais afins. Socorro Gross, coordenadora do Escritório da Opas no Brasil, parabenizou a ENSP por ser uma instituição que tem o legado de compromisso pela democracia, pela justiça social e pela transformação da sociedade. “ENSP é mais que uma Escola, é uma comunidade que transforma realidades”, celebrou.
O diretor da ENSP, Marco Menezes, falou da emoção em celebrar os 70 anos da Escola, da qual ele também é egresso, e da colaboração de todos para a realização das atividades comemorativas, em especial a Comissão Organizadora do aniversário. Em suas sete décadas de atuação, ele ressaltou a importância da Escola na formação, na pesquisa, na construção da saúde pública - e do maior sistema de saúde público do mundo, o SUS - da saúde coletiva; e do pensamento crítico. “A ENSP é uma Escola que carrega a responsabilidade de enfrentar os desafios impostos pelas desigualdades históricas e que ainda persistem na nossa sociedade. É um momento de celebração, mas também de refletir sobre os desafios estruturantes do SUS”, apontou o diretor, destacando o momento atual no qual os trabalhadores da Fiocruz estão em movimento pela justa recomposição salarial e valorização da carreira no SUS.
Marco citou alguns dos grandes desafios atuais da saúde, como as questões socioambientais, e como a Escola vem atualizando seu projeto político pedagógico para atender as novas demandas, mas também na perspectiva de atender essas questões no SUS, tanto no Brasil, quanto na América Latina, e na cooperação Sul-sul, onde a Escola também cumpre um importante papel. Finalizando, o diretor falou sobre o tema do aniversário ‘Reparação histórica, desigualdades e construção do comum’, parafraseando a filósofa Djamila Ribeiro, ele expôs sobre qual comum estamos falamos. “O comum é o espaço onde podemos reimaginar e construir um futuro mais inclusivo para todas, todos e todes. Desejo para todos que constroem essa Escola no dia a dia, que sigamos avançando na construção deste comum”, conclui o diretor.
Mario Moreira, presidente da Fiocruz, encerrou a mesa institucional em celebração aos anos da ENSP, comemorando diante de um auditório lotado, a tradição da ENSP em sedar grandes debates. “Neste auditório construímos e aprovamos inúmeras políticas públicas em prol da saúde da população”, recordou. O presidente também destacou sua relação afetuosa com a ENSP, da qual ele também é egresso, lembrando que a ENSP é uma Escola de Saúde Pública, mas acima de tudo de cidadania. “Vida longa à ENSP que já possui uma trajetória importante, que influencia e é influenciada pela construção do estado brasileiro”.
A ciobertura é de por Barbara Souza e Tatiane Vargas, publicada em 04/09/2024.