Assistência farmacêutica em tempos de crise: desafios da aquisição de medicamentos para UTIs na pandemia
As atividades dos farmacêuticos que lideram o controle de estoque, a programação e a aquisição de medicamentos nas instituições de saúde ficaram mais complexas após o início da pandemia de Covid-19. Variáveis como consumo histórico e ponto de ressuprimento passaram a ser considerados em conjunto com os dados epidemiológicos da pandemia, com os dados dos numerosos estudos sobre a efetividade de medicamentos para o tratamento da Covid-19 (como por exemplo: dexametasona1 e tocilizumab2,3)4, com a realidade de desabastecimento do mercado nacional de medicamentos (sedativos, opioides, bloqueadores neuromusculares, enoxaparina, antibióticos para infecções secundárias por bactérias multirresistentes, entre outros), com a necessidade de importação, bem como com o risco constante de aquisição de medicamentos com sobrepreço5,6,7.
A programação e aquisição incorreta de medicamentos ameaça o acesso dos pacientes ao tratamento necessário. O acesso é definido por Bermudez et al.8como a:
“[...] relação entre a necessidade de medicamentos e a oferta dos mesmos, na qual essa necessidade é satisfeita no momento e no lugar requerido pelo paciente (consumidor), com a garantia de qualidade e a informação suficiente para o uso adequado”.
Um grande desafio que vem sendo enfrentado durante a pandemia é o aumento expressivo na demanda global pelos medicamentos identificados como essenciais para o tratamento do paciente com Covid-19 crítica, que impacta não apenas a disponibilidade destes medicamentos no mercado nacional, como também o intervalo de tempo que o fornecedor leva para realizar sua entrega (‘’lead time’’). As razões são diversas: escassez de matéria prima, dificuldades para fabricação de medicamento e dificuldades de importação6,7.
Durante a pandemia, planos de contingência têm sido necessários para evitar o desabastecimento dos medicamentos utilizados para realização de procedimentos como intubação, ventilação mecânica, sedação, bloqueio neuromuscular, anticoagulação, corticoterapia e suporte hemodinâmico. Em relação a estes planos, é fundamental que os gestores da farmácia hospitalar realizem o acompanhamento periódico das coberturas de estoque com frequência suficiente para identificar oscilações de consumo e, diante dos problemas de abastecimento detectados, se unam à alta gestão dos hospitais e às lideranças da equipe multiprofissional para definir alternativas de mitigação dos riscos de ruptura de estoque, sempre alinhadas aos estudos que forneçam evidência de eficácia e segurança dos medicamentos para o tratamento da Covid-19.
Um grande desafio que vem sendo enfrentado durante a pandemia é o aumento expressivo na demanda global pelos medicamentos identificados como essenciais para o tratamento do paciente com Covid-19 crítica
Diante de um contexto de gravidade, urgência e imprevisibilidade, o Governo Federal publicou em fevereiro de 2020 a Lei nº 13.979 que estabeleceu uma série de medidas para enfrentamento emergencial da Covid-19. Entre elas, a possibilidade da dispensa de licitação para aquisição de bens, serviços e insumos de saúde, bem como realização de licitação na modalidade pregão, com prazos reduzidos. O objetivo foi agilizar o processo de aquisições para prover os itens necessários ao combate à pandemia9-11. No entanto, mesmo nestes casos, é fundamental que a farmácia hospitalar conte com suporte jurídico e da alta gestão para redigir as justificativas de aquisição de medicamentos por estes mecanismos12.
Importante dizer que mesmo dispensas de licitação apresentam um tempo de execução que pode ser incompatível com situações de emergência (necessidade imediata do medicamento). Uma alternativa que vem sendo utilizada para contornar o desabastecimento e garantir a continuidade do tratamento dos pacientes é a realização de permutas/empréstimos com outros hospitais, ação que envolve grande esforço dos funcionários do serviço e pode ser erroneamente interpretada como “má gestão”13-17.
Outra situação excepcional enfrentada em decorrência da pandemia, foi a permissão da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para importação de medicamentos identificados como prioritários para o tratamento da Covid-19. O objetivo foi reduzir os riscos do desabastecimento destes medicamentos no mercado nacional. Os produtos importados foram dispensados de regularização sanitária pela Anvisa, sendo do importador a responsabilidade de garantir a procedência, a qualidade, a segurança e a eficácia do medicamento.
Esses medicamentos têm sido adquiridos com embalagens, rótulos e bulas nos padrões e idiomas estabelecidos pela autoridade sanitária estrangeira responsável pela aprovação da sua regularização18. Esta demanda por medicamentos importados e o risco de erros de medicação associados ao processo de uso destes medicamentos levou as instituições Abramed, Amib, ISMP, Rebraensp, SBA, SBRAFH e Sobrasp a publicarem um documento com orientações sobre etiquetagem no processo de fracionamento e unitarização em farmácias hospitalares e serviços de saúde considerando os princípios da farmacovigilância e da segurança dopaciente19.
Em nível nacional, o Ministério da Saúde vem realizando a distribuição de medicamentos do “kit intubação” às Secretarias Estaduais de Saúde (SES), incluindo medicamentos importados. Os medicamentos foram adquiridos de forma emergencial por meio de requisições administrativas, que tiveram início no final de junho de 2020 e foram fornecidos aos hospitais dos planos de contingência estaduais conforme necessidades locais. Para o fornecimento foram admitidos critérios de priorização, como: a quantidade disponível dos medicamentos para a distribuição no MS, os dados de consumo médio mensal e o tempo de cobertura de cada item nos hospitais, informações que são enviadas semanalmente para a SES local pelas unidades através de um formulário próprio5. .
Embora no mês de julho/2021 tenha se observado20 uma tendência de queda nos indicadores de incidência e mortalidade por Covid-19, o país permanece em um patamar muito crítico, com uma média diária de 39.064 casos e 1.196 óbitos. Diante disso, continuam pertinentes as preocupações quanto à possibilidade de piora no quadro pandêmico, especialmente, no momento, frente à propagação da variante Delta.
A pandemia não acabou e sem assistência farmacêutica qualificada não há como garantir o direito constitucional à saúde da população brasileira.
* Patrícia Helena Castro Nunes, Paula Teixeira Pinto Ferreira Neto e Tais Rubia dos Santos são farmacêuticas do Serviço de Farmácia do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI/Fiocruz).
O conteúdo desta publicação é de exclusiva responsabilidade do(s) autor(es), não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz.
Referências:
1. RECOVERY Collaborative Group, et al. Dexamethasone in hospitalized patients with COVID-19—preliminary report. N Engl J Med. 2021;384(8):693-704. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/32678530. Acesso em: 25 jul 2021.
2. VEIGA VC, et al. Effect of tocilizumab on clinical outcomes at 15 days in patients with severe or critical coronavirus disease 2019: randomised controlled trial. BMJ. 2021; 372: n.84. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/33472855. Acesso em: 25 jul 2021.
3. RECOVERY Collaborative Group, et al. Tocilizumab in patients admitted to hospital with COVID-19 (RECOVERY): preliminary results of a randomised, controlled, open-label, platform trial. Lancet. 2021;397(10285):1637-1645. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/33933206/. Acesso em: 25 jul 2021.
4. WORLD HEALTH ORGANIZATION. The WHO Therapeutics and COVID-19: living guideline. WHO, 2021. Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/WHO-2019-nCoV-therapeutics-2021.2. Acesso em: 27 jul 2021.
5. BERNARDE HD, SILVA JF. Atuação da gestão estadual na crise dos medicamentos: um relato sobre o kit intubação. Coleção COVID-19, p. 252-267 Disponível em: https://coronavirus.saude.mg.gov.br/images/1_2021/01-boletim/pagina-intubacao/ATUAÇÃO_DA_GESTÃO_ESTADUAL_NA_CRISE_DOS_MEDICAMENTOS_UM_RELATO_SOBRE_O_KIT_INTUBAÇÃO.pdf. Acesso em 26 jul 2021.
6. NUNES PHC; NETO PTPF; SANTOS TR. Falta de medicamentos, ausência de forte base produtiva e vulnerabilidade na assistência à saúde na pandemia. Publicado 07 Junho 2021. Disponível em: https://cee.fiocruz.br/?q=node/1383. Acesso em: 25 jul 2021.
7. CHAVES LA, et al. Nota técnica: Desabastecimento: uma questão de saúde pública global. Sobram problemas, faltam medicamentos. Observatório COVID-19. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/sites/portal.fiocruz.br/files/documentos/nota_tecnica_-_observatorio_covid-19_desabastecimento_ago2020_rev.pdf. Acesso em 26 jul 2021.
8. OLIVEIRA MA, et al. Avaliação da assistência farmacêutica às pessoas vivendo com HIV/ AIDS no Município do Rio de Janeiro. Cad Saude Publica. 2002;18(5):1429-39. APUD BERMUDEZ, J. A. Z.; LUIZA, V. L.; HARTZ, Z. M. A.; MOSEGUI, G. B. G.; OLIVEIRA, M. A.; COSENDEY, M. A. E. & ROMERO, C. N. P., 1999. Avaliação do Acesso aos Medicamentos Essenciais: Modelo Lógico e Estudo Piloto no Estado do Rio de Janeiro, Brasil Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. (mimeo.)
9. BRASIL. Lei 13.979 de 06 de fevereiro de 2020. Presidência da República Casa Civil, 2020.
10. BRASIL. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Alerta 132021/2021. Gerência-Geral de Monitoramento de Produtos Sujeitos à Vigilância Sanitária (GGMON).
11. BRASIL. Presidência da República. Medida Provisória nº 1.047, de 3 de maio de 2021. Dispõe sobre as medidas excepcionais para a aquisição de bens e a contratação de serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da pandemia da covid-19.
12. VARGAS DB, MENEZES BG, RANGEL IM. Dispensas de licitação durante a COVID-19: como os estados brasileiros motivam suas decisões? Revista Estudos Institucionais, v. 7, n. 1, p. 126-181, jan./abr. 2021.
13. BRASIL. Presidência da República. Lei nº 8.666 de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências.
14. PEREIRA, R.M. Planejamento, Programação e Aquisição: prever para prover. OPAS/OMS – Representação Brasil, v. 1, n.10, p. 1-7, 2016 APUD Sociedade Brasileira de Farmácia Hospitalar e Serviços de Saúde. Guia de boas práticas em farmácia hospitalar e serviços de saúde. São Paulo: Sociedade Brasileira de Farmácia Hospitalar e Serviços de Saúde; 2009. Disponível em: https://www3.paho.org/bra/index.php?option=com_docman&view=download&alias=1538-planejamento-programacao-e-aquisicao-prever-para-prover-8&category_slug=serie-uso-racional-medicamentos-284&Itemid=965. Acesso em: 25 Jul 2021.
15. AUDITORIA DE NATUREZA OPERACIONAL. FISCALIZAÇÃO DE ORIENTAÇÃO CENTRALIZADA. ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA BÁSICA. NÃO-CONSTATAÇÃO DE IRREGULARIDADES GRAVES. ALERTAS. RECOMENDAÇÕES. CIÊNCIA ÀS INSTÂNCIAS INTERESSADAS (TCU 01845220108, Relator: JOSÉ JORGE, Data de Julgamento: 30/03/2011). Disponível em: https://tcu.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/316499810/1845220108/inteiro-teor-316499854?ref=amp. Acesso em: 25 jul 2021.
16. . CONSELHO DE SECRETARIAS MUNICIPAIS DE SAÚDE DE SANTA CATARINA. NOTA TÉCNICA – COSEMS/SC – Nº 033/2017. Assunto: Permuta de medicamentos excedentes entre municípios. Disponível em: https://www.cosemssc.org.br/wp-content/uploads/2020/05/NT-33-2017-COSEMS-SC-Medicamentos-excedentes-AF.pdf. Acesso em 25 jul 2021.
17. SILVA JT, et al. Covid-19 no Rio de Janeiro/Brasil: esforços dos serviços de farmácia hospitalar. Rev Bras Farm Hosp Serv Saude. 2021;12(3):0624.
18. BRASIL. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução RDC nº 488, de 7 de abril de 2021. Dispõe sobre a importação de produtos sujeitos à vigilância sanitária por unidade de saúde, para seu uso exclusivo. Publicado em 08 abr.2021. Edição 65, Seção 1, p.121.
19. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE MEDICINA DE EMERGÊNCIA, et al. Orientações sobre etiquetagem no processo de fracionamento e unitarização de medicamentos em Farmácias Hospitalares e Serviços de Saúde, 2021. Disponível em: http://www.sbrafh.org.br/inicial/4468-2/. Acesso em 26 jul 2021.
20. FIOCRUZ. Boletim Observatório Covid-19. Semanas epidemiológicas 27 e 28. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/noticia/boletim-aponta-nova-transicao-no-perfil-demografico-da-pandemia . Acesso em: 10 ago. 2021.