As estreitas relações entre a pandemia e a biodiversidade

As estreitas relações entre a pandemia e a biodiversidade

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Foto: Marcelo Camargo/EBC

A Covid-19 trouxe ao mundo uma lição definitiva: a saúde humana pode ser terrivelmente ameaçada pelas desigualdades socioeconômicas, a política mal conduzida e o desequilíbrio ambiental, tudo junto e misturado.

No raiar de 1º. de janeiro de 2021 – novo dia, novo mês, novo ano e nova década deste arrastado e assombrado século XXI –, o mundo registrava oficialmente, segundo a OMS[1], cerca de 82 milhões de casos e mais de 1.800.000 mortes pela Covid-19, números seguramente subestimados. Apenas na passagem do dia, do ano e da década foram registradas, segundo a agência, cerca de 470 mil casos novos e quase 10 mil novas mortes, infelizmente também subestimados.

O conhecimento consagrado pela Ciência indica que a saúde é, simultaneamente, um fenômeno biológico e social, resultante da interação entre seres humanos, animais e ecossistemas, e profundamente influenciado por fatores políticos, sociais, econômicos e ambientais, vale dizer, os determinantes sociais e ambientais da saúde[2]. O novo campo do conhecimento denominado Uma Saúde (One Health)[3],[4] tem buscado explicar e apontar soluções para essa intersecção dinâmica que gera enfermidades, como a Covid-19 e outras doenças emergentes e re-emergentes.

Entre as questões ambientais que condicionam a emergência de zoonoses virais com potencial pandêmico, encontra-se a quebra do equilíbrio proporcionado pela biodiversidade

Por isso, quando se pergunta sobre o transcurso de uma enfermidade como a Covid-19, no âmbito coletivo populacional ou individual, há que localizá-lo também no contexto político, socioeconômico e ambiental, que de forma tão profunda o condiciona.

Entre as questões ambientais que condicionam a emergência de zoonoses virais com potencial pandêmico, encontra-se a quebra do equilíbrio proporcionado pela biodiversidade. Uma relação dinâmica entre espécies animais e vegetais, inclusive de micro-organismos, mantém vírus e outros micro-organismos naturalmente controlados e contidos num ecossistema saudável.

Em 2019, os Estados Membros das Nações Unidas propuseram no High-Level Politica Forum, realizado no âmbito do Ecosoc, uma década de ações ambiciosas para acelerar o progresso no sentido de alcançar os Objetivos Desenvolvimento Sustentável: dez anos para concretizar, até 2030, as propostas de erradicar a pobreza, defender e resgatara saúde planetária e construir um mundo pacífico.Componente essencial desse esforço coletivo será a intensificação das ações para salvaguardar e restaurar a diversidade biológica – a estrutura viva do planeta e as bases da vida humana.

A Convenção da Diversidade Biológica (CDB) foi assinada no âmbito das Nações Unidas em 1992[5], portanto, já se aproximando dos 30 anos de vigência. Em 2010, por ocasião da 10ª Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica (COP-10)[6], realizada na cidade de Nagoya, Província de Aichi, Japão, foi aprovado o Plano Estratégico de Biodiversidade para o período de 2011 a 2020[7],[8]. Esse plano, que prevê um quadro global sobre a diversidade biológica, busca estabelecer ações concretas para deter a perda da biodiversidade planetária. O plano serve de base para estratégias do sistema das Nações Unidas, governos de países e todos os outros parceiros envolvidos no desenvolvimento de políticas e na gestão da biodiversidade.

As vinte metas do Plano Estratégico de Biodiversidade para o período de 2011 a 2020 distribuem-se em cinco objetivos estratégicos: a) tratar das causas fundamentais de perda de biodiversidade, gerando compromissos em governos e sociedade; b) reduzir as pressões diretas sobre a biodiversidade, promovendo seu uso sustentável; c) melhorar a situação da biodiversidade, protegendo ecossistemas, espécies e diversidade genética; d) aumentar os benefícios de biodiversidade e serviços ecossistêmicos para todos; e) aumentar a implementação por meio de planejamento participativo, gestão de conhecimento e capacitação

No processo de elaboração desse plano, o Secretariado da CDB propôs que fosse estabelecido um conjunto de metas, objetivos de médio prazo, materializados em 20 proposições. Denominadas Metas de Aichi para a Diversidade Biológica8,[9], as proposições são voltadas à redução da perda da biodiversidade em âmbito mundial. As Partes da CDB, 193 países (incluído o Brasil) e a União Europeia, se comprometeram a trabalhar juntas para implementar as vinte metas até 2020.

As vinte metas do plano distribuem-se em cinco objetivos estratégicos: a) tratar das causas fundamentais de perda de biodiversidade, gerando compromissos em governos e sociedade; b) reduzir as pressões diretas sobre a biodiversidade, promovendo seu uso sustentável; c) melhorar a situação da biodiversidade, protegendo ecossistemas, espécies e diversidade genética; d) aumentar os benefícios de biodiversidade e serviços ecossistêmicos para todos; e) aumentar a implementação por meio de planejamento participativo, gestão de conhecimento e capacitação.

Transcorridos os primeiros dez anos pós-Aichi, durante o Decênio das Nações Unidas sobre a Diversidade Biológica 2011-2020, agências do sistema ONU e os países trabalharam para abordar muitas das causas de perda de biodiversidade. Em outubro de 2020, as Nações Unidas apresentaram um balanço do Plano, o Panorama Mundial sobre a Diversidade Biológica[10],no qual reconhecem que tais esforços foram insuficientes para alcançar a maioria das Metas de Aichi estabelecidas em 2010. O relatório aponta que apesar dos avanços, como a redução do desmatamento, nenhuma das vinte Metas de Aichi foram totalmente alcançadas pelos países signatários. A maioria das medidas nacionais adotadas foram incompatíveis com as metas de Aichi em escopo e ambição– apenas 23% estavam alinhadas com as metas do plano. A notar que a disponibilidade de recursos financeiros públicos e privados internacionais para a agenda da biodiversidade variou de US$ 80 bilhões a US$ 90 bilhões, por ano, comparado a ordem de US$ 500 bilhões em subsídios à atividades econômicas que ameaçam os ecossistemas e a diversidade biológica, como a agricultura, a pesca, e a exploração e o uso de combustíveis fósseis.
 

O relatório [Panorama Mundial sobre a Diversidade Biológica] aponta que apesar dos avanços, como a redução do desmatamento, nenhuma das vinte Metas de Aichi foram totalmente alcançadas pelos países signatários

O relatório sugere cinco pontos estratégicos para 2050: (1) melhor conservação e restauração de ecossistemas; (2) mitigação das mudanças climáticas; (3) ação em poluição, espécies exóticas invasoras e superexploração; (4) produção mais sustentável debens e serviços, especialmente alimentos; e (5) redução do consumo e desperdício.

O Panorama aponta oito áreas de transição interdependentes: conservação de florestas e uso adequado de terras; garantia de disponibilidade de água para a natureza e seres humanos; proteção de ecossistemas marinhos e pesca sustentável; agricultura sustentável; diversidade e segurança alimentar; infraestrutura verde para as cidades; processamentos industriais baseados em soluções naturais e transição de combustíveis fósseis para verdes; e uma abordagem sanitária integrada para promover ambientes naturais e humanos saudáveis.

O não cumprimento das metas de Aichi (Plano Estratégico para a Biodiversidade 2011-2020) ameaça também ao cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs) relacionados à proteção da biodiversidade marinha e terrestre e avança sobre outros ODSs interdependentes, como garantia de segurança alimentar e acesso à água potável – que se relacionam com a saúde.

Nesse sentido, como parte da renovação da agenda, governos nacionais, agências das Nações Unidas e sociedade civil são convocadas a, juntas, enfrentar o duplo desafio das mudanças climáticas e da perda da diversidade biológica de uma forma mais coordenada, reconhecendo que a mudança climática interfere na composição dos biomas no que tange sua diversidade de espécies e distribuição geográfica, ao mesmo tempo que a conservação da biodiversidade oferece, por si só, algumas das soluções mais eficazes para evitar os piores efeitos doaquecimento do planeta.

Uma alta biodiversidade promove a diluição e o confinamento de potenciais patógenos no ambiente natural, ao passo que a perda da biodiversidade e o seu deslocamento permite que patógenos se modifiquem em busca de novos hospedeiros

Os esforços globais em prol da biodiversidade continuam. Um exemplo foi a realização em 11 de janeiro de 2021 da quarta Cúpula Um Planeta(One Planet)[11], com o tema Vamos agir juntos pela natureza!, organizada pelo presidente francês, Emmanuel Macron, o secretário geral das Nações Unidas, António Guterres, e o presidente do Grupo Banco Mundial, David Malpass, com foco na biodiversidade e visando mobilizar compromissos para proteger os ecossistemas e estabelecer ligações com a saúde humana. A Cúpula reuniu chefes de Estado e de governo (como Merkel, da Alemanha; Johnson, do Reino Unido; Sánchez, da Espanha; e Leyen, da União Europeia), líderes de organizações internacionais (como OMS e FAO), instituições financeiras, empresas e ONGs. Os temas em debate foram proteção de áreas marinhas e terrestres; promoção da agroecologia; mobilização financeira pela biodiversidade; e proteção de florestas tropicais, espécies e saúde humana. Ainda que muitas vezes possam restringir-se a declarações retóricas, representa, pelo menos, que o tema está vivo e preocupa lideranças globais.

O impacto da pandemia de Covid-19 trouxe lições importantes sobre como tratamos a biodiversidade e a emergência de doenças humanas.Énecessário reconhecer que a conservação e o manejo sustentável da biodiversidadeé um componente importante do quebra-cabeças epidemiológico que confronta nossos esforços para conter doenças infecciosas e doenças nãotransmissíveis.Uma alta biodiversidade promove a diluição e o confinamento depotenciais patógenos no ambiente natural, ao passo que a perda da biodiversidade e o seu deslocamento permite que patógenosse modifiquem em busca de novos hospedeiros[12].

Diante da pandemia e da perspectiva real do surgimento de novas enfermidades emergentes com potencial pandêmico, como novos coranavírus, inclusive na floresta úmida da Pan-Amazônia, urge que os países latino-americanos (incluindo evidentemente o Brasil, detentor do maior território florestal na região) revisem de imediato seus planos nacionais de combate às mudanças climáticas e de preservação e restauro da biodiversidade. O descompromisso com as metas de Aichi podem ser fatais para a sanidade do planeta e para a saúde humana, que já está pagando um elevadíssimo custo econômico e em vidas ceifadas com a Covid-19, resultado do descontrole ambiental e da perda da biodiversidade planetária.

Finalmente, espera-se que a revelação da íntima relação entre biodiversidade e a possibilidade de emergência de novas pandemias seja apropriadamente abordada na 15ª Conferência das Partes (COP 15) da Convenção da Diversidade Biológica (CDB), que seria realizada em outubro, na China, mas foi adiada por causa da pandemia para 17 a 30 de maio, em Kunming, mesma cidade onde estava programada inicialmente, na província de Yunnan, China.

* Paulo M. Buss é médico, doutor em Ciências e diretor do Centro de Relações Internacionais em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz.

** Danielly P. Magalhães é bióloga e doutora em Química Ambiental

O conteúdo desta publicação é de exclusiva responsabilidade do(s) autor(es), não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz.

 

[1]WHO (2020).Coronavirus Disease (COVID-19) Dashboard[online].Acesso: https://covid19.who.int/

[2]Buss, P.M. e Pelegrini, A. A saúde e seus determinantes sociais. Physis 17 (1): 77-93, 2007. Acesso: https://www.scielo.br/pdf/physis/v17n1/v17n1a06.pdf

[3] Schneider, C. e Santini de Oliveira, M. Saúde Única e a Pandemia de Covid-19. In:Buss, P.M. e Fonseca, L.E., eds. Diplomacia da saúde e Covid-19: reflexões a meio caminho [online]. Rio de Janeiro: Observatório Covid 19 Fiocruz; Editora Fiocruz, 2020, 360 p. ISBN: 978-65-5708-029-0. Acesso: https://doi.org/10.7476/9786557080290

[4]   Schneider, M.C. et al. ‘One Health’: From Concept to Application in the Global World. Oxford Research Encyclopedia in Global Public Health [online], 2019. Acesso: https://doi.org/10.1093/acrefore/9780190632366.013.29

[5]Ver: https://www.cbd.int/doc/legal/cbd-es.pdf

[6]Ver: https://www.cbd.int/meetings/COP-10

[7]Ver: https://www.cbd.int/decision/cop/?id=12268

[8]Ver: https://www.cbd.int/doc/strategic-plan/2011-2020/Aichi-Targets-EN.pdf

[9]Ver: https://www.cbd.int/sp/targets/

[10]Secretariat of the Convention on Biological Diversity (2020).Global Biodiversity Outlook 5. Montreal. Acesso: https://www.cbd.int/gbo/gbo5/publication/gbo-5-en.pdf

[11]Ver: https://www.un.org/sustainabledevelopment/blog/2021/01/one-planet-summit-2/

[12]WHO and CDB (2015).Connecting global priorities: biodiversity and human health.Acesso: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/174012/9789241508537_eng.pdf;jsessionid=9B0EA27B02AADA164DE0B983A3E08F5C?sequence=1