Ártico: novo mapa na tensão EUA X China e Rússia e o interesse do Brasil na região
O Ártico vem se tornando mais um alvo de disputa geopolítica, com consequências para os países árticos e não árticos, no que diz respeito a aspectos diversos, aí incluída a Saúde. A região vem despertando interesse do mundo científico, que se preocupa com seu acelerado aquecimento, conforme analisa o artigo abaixo, da pesquisadora do Centro de Relações Internacionais em Saúde (Cris/Fiocruz) Lúcia Marques. Estudos vêm sendo publicados sobre riscos de aparecimento de patógenos ainda desconhecidos, que estavam congelados há milhares de anos. Em junho de 2023, o Brasil enviou sua primeira expedição científica para a região. O FioAntar, programa da Fiocruz na Antártica, que conta com um Laboratório de Biossegurança na Estação Antártica Brasileira, tem sido convidado a se juntar às discussões com o grupo de pesquisa envolvido, considerando o escopo do projeto da Fiocruz, que visa Vigilância de Patógenos, seus Impactos na Saúde Global e Pesquisa do Potencial Biotecnológico da Microbiota Antártica para Saúde. Leia o artigo completo a seguir.
Lúcia Marques*
Divulgada em outubro de 2022, a nova estratégia americana para o Ártico (Whitehouse, 2022)[1] estabelece a abordagem dos EUA para a região na próxima década, incorporando as crescentes consequências do aquecimento global, e prevê uma intensificação da competência internacional na região. Embora a crise climática esteja inserida, não ficou ausente o olhar geopolítico: o aquecimento global está derretendo o gelo marinho, abrindo áreas previamente fechadas ao transporte marítimo e oferecendo novas oportunidades para países como Rússia e China, que somam esforços por recursos e influência na região.
Portanto, a nova estratégia vem, principalmente, em razão da atualização dos cenários: a guerra da Rússia na Ucrânia e os movimentos da China no Ártico, não só comercialmente, no âmbito da nova Rota da Seda do Gelo (Marques, 2023c)[2], como militarmente.
Essa estratégia leva em conta também uma forma de fortalecer a Organização do Atlântico Norte (Otan). O Conselho do Ártico é formado por oito países: Canadá, Dinamarca, Finlândia, Islândia, Noruega, Suécia, Rússia e Estados Unidos. E, considerando que a adesão da Suécia à Otan está prestes a ser aprovada, dos oito países-membros, sete pertencerão ao grupo, sendo a única exceção, a Rússia. A guerra na Ucrânia redobrou a unidade e determinação da Otan e estimulou esforços para expandir os recursos da Organização.
De seu lado, a China busca aumentar sua influência no Ártico por meio de uma lista expandida de atividades econômicas, diplomáticas, científicas e militares. Também enfatiza sua intenção de desempenhar papel maior na formação da governança regional, ao solicitar adesão ao Conselho do Ártico como membro observador (Arctic Council, 2023).[3]
A nova estratégia[4] inclui quatro áreas pilares: segurança, mudança climática e proteção ambiental, desenvolvimento econômico sustentável e cooperação internacional. Sobre o aquecimento global, à medida que o gelo marinho derrete, abrindo áreas antes fechadas ao transporte marítimo, surgem novas oportunidades para uma competição entre países como Estados Unidos, Rússia e China por recursos e influência na região. No documento, Washington aponta que "melhorará suas capacidades militares e civis no Ártico para dissuadir ameaças e antecipar, prevenir e responder a acidentes provocados pelo homem". Guerra da Rússia na Ucrânia, enfrentamento à Rússia e China, Otan e colaboração com parceiros da região (que são membros da Otan) são palavras-chaves encontradas com frequência ao longo do texto do documento. No âmbito orçamentário, os EUA aumentaram investimentos para a construção de um porto em águas profundas para receber navios de turismo e militares (Thiessen, 2023)[5].
O Ártico
A região é rica em recursos naturais, ainda inexplorados, além de ser uma rota comercial mais rápida. De acordo com as últimas estimativas, a rota comercial do Ártico, chamada Rota do Mar do Norte, levaria 40% menos de tempo do que as rotas tradicionais. Além disso a viagem fica mais barata, com menos combustível do que através do Canal de Suez. E agora ganha destaque com a Inciativa Cinturão e Rota da China. A rota marítima do Ártico também aumentaria a possibilidade de explorar as reservas de gás e petróleo da região, garantindo seu transporte entre portos asiáticos e ocidentais.
O Ártico é uma das regiões mais afetadas pelas mudanças climáticas. Com o aquecimento global, suas águas permanecem cada vez menos tempo congeladas. E o permafrost [camada do subsolo da crosta terrestre permanentemente congelada] vem sendo exposto cada vez mais. Muitos artigos científicos vêm sendo publicados sobre riscos de aparecimento de patógenos ainda desconhecidos, que estavam congelados há milhares de anos.
A Fiocruz e o Ártico
A Comissão Interministerial para Recursos do Mar (CIRM) criou o Grupo Técnico sobre Atividades no Ártico (GT Ártico) através da Resolução n° 4/CIRM, de 18 de maio de 2021[6], a fim de avaliar a conveniência e oportunidade de o governo brasileiro participar mais ativamente das atividades da comunidade internacional no Ártico. A coordenadora do GT é a embaixadora Maria Elisa Rabello Maia, do Itamaraty.
O interesse brasileiro leva em consideração o cenário de recentes transformações no Ártico, além de afetar o clima e o nível dos oceanos em todo o planeta, pode originar questões relacionadas como expansão das plataformas continentais; à cooperação em foros e organismos internacionais; à geopolítica e à governança dos espaços compartilhados, com impactos, tanto sobre os atores árticos, como os não-árticos. Também considera que as interconexões dos fenômenos naturais entre o Ártico e a Antártica justificam a participação brasileira em campanhas científicas para o estudo integrado de ambas as regiões, com o objetivo de possibilitar melhor compreensão de sua influência nas questões climáticas, oceânicas e ambientais do planeta, bem como obter subsídios para embasar cenários para o Atlântico Sul e o Oceano Austral.
Considerando que a governança da região ártica é constituída, além do Conselho do Ártico, pela Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, ratificada pelo Brasil em 1988, e pelo Tratado de Svalbard, o GT Ártico, através da Resolução nº 4/2022, recomendou a adesão do Brasil ao Tratado de Svalbard, uma vez que países não árticos podem integrar o Conselho do Ártico, como membros observadores. Recomendou também a associação ao Comitê Internacional de Ciência do Ártico (Iasc) e a inserção do tema Ártico nas discussões científicas sobre Antártica.
Avançando nas ações para o Ártico, a CIRM aprovou a minuta de Resolução nº 2/2023[7] sobre cooperação ártica no âmbito dos Brics, que tem por objetivo buscar aproveitar a plataforma desse grupo de países para a cooperação científica e tecnológica oceânica e polar e buscar oportunidades de apoio logístico às futuras missões brasileiras científicas na região de forma complementar àquelas na Antártica.
Em final de junho de 2023, o Brasil enviou sua primeira expedição científica à região. E o FioAntar, programa da Fiocruz na Antártica, que conta com um Laboratório de Biossegurança na Estação Antártica Brasileira, tem sido convidado a se juntar às discussões com o grupo de pesquisa envolvido, considerando o escopo do projeto da Fiocruz, que visa Vigilância de Patógenos, seus Impactos na Saúde Global e Pesquisa do Potencial Biotecnológico da Microbiota Antártica para Saúde. Considerando a expertise institucional em pesquisa e vigilância e os artigos publicados recentemente sobre microrganismos com potencial patogênico, encontrados na Antártica; considerando, ainda, a preocupação que, com o aquecimento global, patógenos desconhecidos com potencial epidêmico e/ou pandêmico aflorem com o derretimento do permafrost, o FioAntar foi convidado a participar da próxima expedição ao Ártico, no verão ártico, em 2024.
Esses estudos publicados pelos pesquisadores do FioAntar foram citados em artigo na revista Diálogos Soberania e Clima. O paper Mudanças climáticas: Antártica e as ameaças sanitárias emergentes buscou levantar possíveis interfaces entre o degelo nas regiões polares, analisando publicações institucionais e artigos científicos relacionados aos temas de segurança sanitária, mudanças climáticas, Antártida e ameaças biológicas, nos idiomas inglês, português e espanhol, especialmente os publicados no período de 2018 a 2023 (Lima et al, 2023).[8]
Considerações finais
A região ártica vem se tornando, nos últimos tempos, mais um alvo de disputa geopolítica com importantes consequências para os países árticos e não-árticos. E vem despertando interesse do mundo científico, que se preocupa com o acelerado aquecimento na região. O Ártico é uma das regiões mais afetadas pelas mudanças climáticas. Com o aquecimento global, suas águas permanecem cada vez menos tempo congeladas. E o solo congelado há milhões de anos vem sendo exposto e começa a derreter em vários locais. Artigos científicos vêm sendo publicados sobre riscos de aparecimento de patógenos ainda desconhecidos, que estavam congelados há milhares de anos. Patógenos que podem ser carreados para os oceanos pelo derretimento do gelo, ou pelos animais e aves migratórias. E, considerando que o Ártico não é um continente isolado como a Antártico, que abriga cidades e com grande circulação de turistas, torna-se extremamente importante a pesquisa, vigilância e monitoramento de patógenos desconhecidos ou reemergentes. O interesse da Fiocruz, como instituição pública de Estado, com sua expertise em vigilância, a leva a realizar pesquisas e estabelecer parcerias na Antártica e no Ártico.
*Pesquisadora do Centro de Relações Internacionais em Saúde (Cris/Fiocruz). Artigo publicado nos Cadernos Cris, em 14/8/2023.
[1] National-Strategy-for-the-Arctic-Region.pdf (whitehouse.gov)
[2] Cadernos Cris Informe 13-2023, p 149-160
[3] Observadores | Conselho do Ártico (arctic-council.org)
[4] Estratégia Nacional dos EUA para a Região do Ártico - Departamento de Estado dos Estados Unidos (state.gov)
[5] Cruzeiro para Nome: O primeiro porto de águas profundas dos EUA para o Ártico a receber navios de cruzeiro, militares | AP Notícias (apnews.com)
[6] https://www.marinha.mil.br/secirm/sites/www.marinha.mil.br.secirm/files/documentos/atas/Resolucao-4-2021.pdf
[7] Ainda não publicada
[8] https://soberaniaeclima.org.br/publicacoes/revista-dialogos/v-2-n-8-2023/