Além da pandemia: Determinantes políticos e reconfiguração da Política – por Sonia Fleury
A Associação Latino-Americana de Medicina Social (Alames), cumpriu 39 anos desde sua fundação em 1984, em Ouro Preto, reunindo em seu XVII Congresso, de 17 a 21 de julho de 2023, mais de mil participantes de 15 países da América Latina, para debater temas relacionados aos três eixos temáticos: a sindemia, a reconfiguração no mundo e as lutas pelo bom viver. (ver aqui a Declaração Final do Congresso)
A Alames foi fruto da difusão da abordagem da Medicina Social na região, que no Brasil assumiu a nomenclatura de Saúde Coletiva, com a construção de um campo do saber que incorporou as Ciências Sociais na compreensão dos fenômenos de saúde e doença, bem como na análise do planejamento estratégico e estudo da organização dos sistemas e práticas assistenciais. O Congresso de 2023 prestou homenagem a Juan César García, Maria Isabel Rodriguez e Mario Testa, responsáveis pela difusão do pensamento social em saúde e da consolidação de centros de pós-graduação para formação de profissionais sanitaristas em toda a região. O Cebes representa a Alames no Brasil.
Sonia Fleury, pesquisadora sênior do Centro de Estudos Estratégicos Antonio Ivo de Carvalho da Fiocruz (CEE-Fiocruz), participou ativamente desse movimento desde a criação da Alames. No XVII Congresso fez parte da mesa Central do Eixo Sindemia, com o tema Más allá de una pandemia ?De qué se habla, qué se oculta? A mesa foi composta também pelos pesquisadores Mário Rovere (Argentina); Cecília Santana (Cuba) e Asa Cristina Laurell (México) e coordenada por Ana Maria Costa (Brasil/Cebes).
Em sua exposição Sonia Fleury buscou entender a sindemia, que abrange fatores sociais, culturais e comportamentais em contexto de crise sanitária, a partir da perspectiva política, destacando tais fatores que possibilitaram sua ocorrência e agudização, como no Brasil, e as consequências desse evento nas estruturas de poder.
Leia o artigo de Sonia Fleury abaixo.
A pandemia da Covid-19 se instalou em um mundo assolado por transformações globais que caracterizam uma conjuntura crítica, na qual fenômenos macropolíticos e econômicos tais como o crescente aumento das desigualdades e o esvaziamento da capacidade de representação das instituições políticas, tanto funcionaram como antecedentes como foram aprofundados pela crise sanitária. São evidências a falta de soberania sanitária e a dependência de equipamentos e insumos por parte dos países menos desenvolvidos, bem como a incapacidade de governança dos organismos internacionais no provimento de uma distribuição mais equitativa das vacinas e na condução política das medidas não farmacológicas.
Ainda que o impacto da pandemia não tenha sido totalmente mapeado, relatório da ONU/FAO[1] de 2021 aponta um aumento expressivo da insegurança alimentar no mundo, cerca de 20%, com 735 milhões de pessoas subalimentadas. Fatores como conflitos, mudanças climáticas e crises econômicas, que provocam a insegurança alimentar, foram amplificados pela pandemia, prejudicando o acesso aos alimentos. No Brasil o relatório da ONU aponta que 21 milhões estão passando fome, enquanto dados da Rede Penssan[2], com outra metodologia, chega à cifra de 33 milhões, devolvendo o país ao Mapa da Fome[3], do qual havia saído desde o início dos anos 1990. Por outro lado, a concentração da riqueza, mesmo durante a pandemia, foi avassaladora. Segundo a Oxfam[4], dois terços da riqueza acumulada no mundo são apropriados por 1% da população, assinalando que, pela primeira vez em trinta anos, a riqueza extrema e a pobreza extrema cresceram simultaneamente.
A resposta à pergunta de como a classe dominante opera para preservar tal sistema injusto, a economista Clara Mattei[5] observa que isso se dá ao transformar a austeridade em ferramenta técnica, despolitizando a economia. As políticas de austeridade não geraram crescimento, nem ajudaram a resolver a questão da dívida, no entanto, seguem sendo preconizadas e aplicadas. Essa persistência decorre da sua funcionalidade ao sistema capitalista, ao desempoderar a população trabalhadora, acabando com a noção de classe e conflito social. Assim, a maioria das pessoas que estão precarizadas e dependentes do mercado não vê outra saída que não seja se entregar ao mercado. A mercantilização de todos os aspectos da vida nos impõe uma servidão econômica que só poderá ser rompida com a recuperação do poder de organização e construção de formas comunitárias de produção e distribuição, nos conclama a economista. Em outras palavras, a eficácia da austeridade não é atingida pela sua eficácia como instrumento do desenvolvimento econômico, mas sim por criar a servidão econômica para a maior parte da população, eliminando as lutas políticas.
As políticas de austeridade não geraram crescimento, nem ajudaram a resolver a questão da dívida, no entanto, seguem sendo preconizadas e aplicadas
Tal imposição tem um custo insuportável para a população, o que resulta em um movimento que Safatle [6] identifica, desde a primavera árabe no mundo e de das manifestações de Julho de 2013 no Brasil, com a noção de insurreição, ou sequência insurrecional, que articula o Norte ao Sul, em manifestações de descontentamento com a dinâmica de concentração provocada pelo neoliberalismo. Trata-se de um movimento paradoxal, no qual, por um lado, ocorre uma desidentificação da população com as macroestruturas políticas, enquanto, por outro, ocorre uma intensa reconfiguração da micropolítica, a partir das lutas territoriais e identitárias. Essas insurreições pontuais, no entanto, têm sido incorporadas aos regimes e lideranças populistas autoritárias, com base no sentimento de negação da política. Observa-se, um fenômeno recente pelo qual a direita se torna insurrecional, apropriando-se da gramática política das esquerdas, enquanto estas se encontram acuadas e sem capacidade de direção política.
No entanto, o poder destituinte identificado por Safatle nas manifestações atuais, que vão além de demandas específicas, é, a nosso ver, incapaz de transformar-se em poder instituinte e, muito menos, em constituinte e instituído (Fleury, 2009)[7]. Se na trajetória da Reforma Sanitária Brasileira identificávamos os dilemas entre o instituinte e o instituído na configuração da correlação de forças, qual o alcance de um poder destituinte para introduzir e consolidar transformações políticas?
Se na trajetória da Reforma Sanitária Brasileira identificávamos os dilemas entre o instituinte e o instituído na configuração da correlação de forças, qual o alcance de um poder destituinte para introduzir e consolidar transformações políticas?
A 17ª Conferência Nacional de Saúde [realizada em julho de 2023] foi uma mostra importante da pujança da dinâmica da micropolítica que, com as lutas identitárias, cobra a democratização da democracia, exigindo que os direitos universais sejam acessíveis aos grupos que são estruturalmente marginalizados. Por um lado, representa um encontro inusitado, até o momento, entre um direito social, o direito universal à saúde, com os direitos humanos, na medida em que as reivindicações atuais são que o exercício do direito social não seja discriminatório e excludente. Atuam, nesse caso como poder instituinte, aliado à abertura do governo para transformar a arquitetura da participação social, anteriormente instituída, dando espaço para as forças sociais e lutas emergentes.
No entanto, persiste a preocupação devida à incapacidade de se articularem as lutas fragmentadas em um projeto comum, centrado no combate à acumulação capitalista predatória da natureza e da exploração da classe trabalhadora. As práticas e agências desmercantilizadoras, que produzem espaços, cuidados e identidades comuns, necessitam articular a dinâmica da micropolítica à busca das transformações macropolíticas, sob pena de terminar por reificar a subordinação econômica ao impossibilitar a constituição de um sujeito coletivo. Sujeito este, portador de um projeto de construção da política e da economia como parte do comum, que não se subordina à lógica mercantil da acumulação capitalista.
A produção de conhecimentos, de novas tecnologias sociais, de gestão territorial, difusão de informações, mobilização de recursos e sua distribuição, produção de dados epidemiológicos, entre outras iniciativas que foram construídas e disseminadas entre as favelas, mostraram que ali onde há exclusão, há resistência e constituição de poder
Mesmo a potência apresentada no enfrentamento da pandemia da Covid-19 em favelas e periferias no Brasil, nas quais uma cidadania insurgente teve capacidade de organizar-se e produzir política pública onde o Estado falhou, tem sido objeto de disputa. A produção de conhecimentos, de novas tecnologias sociais, de gestão territorial, difusão de informações, mobilização de recursos e sua distribuição, produção de dados epidemiológicos, entre outras iniciativas que foram construídas e disseminadas entre as favelas, mostraram que ali onde há exclusão, há resistência e constituição de poder (Fleury e Menezes, 2020)[8]. No entanto, a incapacidade e/ou lentidão das políticas públicas em trazer para a arena pública o poder instituinte que ali ficou manifesto, tem sido suplantada pela velocidade com a qual o mercado busca se apropriar dessas iniciativas como parte da agenda do empreendedorismo individualista, competitivo e mercantilizável.
* Doutora em Ciência Política, pesquisadora sênior do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz (CEE-Fiocruz).
[1] ONU/FAO – O Estado de Segurança Alimentar e Nutricional no Mundo – Sofi
[2] https://pesquisassan.net.br/2o-inquerito-nacional-sobre-inseguranca-alimentar-no-contexto-da-pandemia-da-covid-19-no-brasil/
[3] Inclusão no Mapa da Fome se dá quando mais de 2,5% da população enfrentam falta crônica de alimentos.
[4] Oxfam – A Sobrevivência do ais Rico https://www.oxfam.org.br/forum-economico-de-davos/a-sobrevivencia-do-mais-rico/
[5] https://outraspalavras.net/outrasmidias/clara-mattei-a-economista-que-desmascarou-austeridade/
[6] Safatle,V. https://outraspalavras.net/outrasmidias/2013-segundo-safatle/
[7] Fleury, S. Reforma Sanitária Brasileira: Dilemas entre o instituinte e o instituído. Ciência e Saúde Coletiva 14 (3) jun 2009 https://www.scielo.br/j/csc/a/GbXrGPf6Mmpvdc3njYY3bNK#
[8] Fleury e Menezes. Pandemia nas favelas: entre carências e potências. Saúde em Debate, v 44 n. especial4, p. 267-280. Dezembro 2020 https://www.scielo.br/j/sdeb/a/xSgrb6jrq3tLnGszjZ4QcWt/?format=pdf&lang=pt