Que vozes querem calar? Ameaças às instituições participativas no início do governo Bolsonaro
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MÔNICA DE CASTRO MAIA SENNA
No dia 11 de abril de 2019, quando completava os primeiros cem dias à frente do governo brasileiro, o presidente da República Jair Bolsonaro assinou o Decreto n° 9.759, que “extingue e estabelece diretrizes, regras e limitações para colegiados da administração pública federal direta, autárquica e fundacional”. Sem especificar exatamente quais instâncias seriam extintas, o decreto abrange todos os colegiados criados por decreto, ato normativo e ato de outro colegiado, incluindo conselhos, comitês, comissões, grupos, juntas, equipes, mesas e fóruns. O decreto estabeleceu a data limite de 28 de maio para que os ministérios enviassem informações à Casa Civil sobre todos os órgãos existentes em sua pasta e o prazo de 28 de junho para a extinção dessas instâncias. Essa mesma medida revogou o Decreto n° 8.243, de 23 de maio de 2014, dando fim à Política Nacional de Participação Social instituída no governo Dilma Rousseff.
Os argumentos governamentais atribuem a extinção dos conselhos sociais à necessidade de desburocratizar o Estado e conter gastos públicos, na medida em que tais instâncias gerariam gastos desnecessários, consumiriam recursos públicos e alimentariam entidades “aparelhadas politica e ideologicamente”. A meta declarada pelo governo é reduzir os conselhos sociais de 700 para menos de 50. Entre os colegiados extintos estariam: o Comitê Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Conatrap); a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae); o Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de LGBT (CNCD/LGBT); o Conselho Nacional dos Direitos do Idoso (CNDI); o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Conade); a Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI); a Comissão Nacional de Florestas (Conaflor); o Conselho da Transparência Pública e Combate à Corrupção (CTPCC); o Conselho Nacional de Segurança Pública (Conasp); a Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT) e o Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad).
O decreto provocou um conjunto de reações em defesa dos conselhos sociais, tanto por parte de movimentos sociais e organizações não governamentais, quanto por parte de órgãos governamentais. Entre elas estão a ONG Transparência Brasil, o Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora), movimentos LGBT, o Movimento Nacional de Direitos Humanos, a Defensoria Pública da União, a Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (Anamatra) e a própria Procuradoria Geral da União. Também as Câmaras de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal e a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão lançaram nota pública em defesa da manutenção dos conselhos e a Rede Brasileira de Conselhos lançou a campanha #OBrasilprecisadeconselho. O PT entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) e o PSB com ação na Justiça Federal pedindo anulação da medida. Ambos os partidos apresentaram, cada um, um Projeto de Decreto Legislativo para sustar os efeitos do decreto presidencial.
O decreto presidencial não está dissociado de um conjunto de outras medidas que o governo federal vem promovendo em diferentes campos de atuação do Estado brasileiro e aponta em direção a um verdadeiro desmonte do sistema democrático e participativo que vinha se consolidando no país desde a Constituição Federal de 1988
No dia 13 de junho de 2019, por meio de liminar, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, por unanimidade, limitar o decreto presidencial, deliberando pela não extinção dos conselhos e outros colegiados cuja existência conste em lei. Ao mesmo tempo, permitiu a supressão daqueles colegiados criados por decreto e não mencionados em lei. A partir dessa decisão, o governo federal estuda realizar um levantamento pormenorizado dos colegiados a serem extintos e aqueles a serem mantidos.
O decreto presidencial não está dissociado de um conjunto de outras medidas que o governo federal vem promovendo em diferentes campos de atuação do Estado brasileiro e aponta em direção a um verdadeiro desmonte do sistema democrático e participativo que vinha se consolidando no país desde a Constituição Federal de 1988.
Ainda que as avaliações sobre os rumos, alcance, avanços e limitações da participação social na história recente do Brasil não sejam homogêneas, existe um relativo consenso de que a criação de diversas instâncias participativas configura uma das maiores inovações do texto constitucional. A partir de então, diversas políticas públicas têm adotado a participação social como uma das diretrizes centrais de seu desenho institucional, possibilitando um alargamento da esfera pública e a incorporação de novos sujeitos sociais na arena decisória governamental. Ao mesmo tempo, observa-se uma grande expansão de formas diversas de participação social, tais como conselhos, conferências, comissões, consultas e audiências públicas, além da experimentação de outras modalidades participativas, como ouvidorias, mesas de negociação e fóruns de debates. Essas instâncias participativas têm contribuído tanto para remodelar as tradicionais formas de participação quanto para estreitar a comunicação entre setores sociais e o Estado brasileiro, fomentando a capacidade de influência dos cidadãos nos rumos das intervenções públicas (SCHMIDT, 2006; AVRITZER, 2010).
Um dos efeitos diretos dessa medida é a fragilização das políticas públicas voltadas à proteção social desses segmentos, como os indígenas, os quilombolas, as populações ribeirinhas, o segmento LGBTI+, dentre outros, que apenas muito recentemente foram reconhecidos como sujeitos de direitos e incorporados nas arenas decisórias em torno das políticas sociais
A extinção dos conselhos sociais pelo governo Bolsonaro implica ruptura com o padrão de relação entre Estado e sociedade que vinha se consolidando nos últimos trinta anos, desmantelando um dos pilares do nosso recente sistema democrático e participativo. Inviabiliza a participação de diversos segmentos sociais nos processos decisórios e dificulta (e até mesmo impede) a expressão e vocalização das demandas sociais, sobretudo dos segmentos mais vulneráveis e das chamadas minorias. Um dos efeitos diretos dessa medida é a fragilização das políticas públicas voltadas à proteção social desses segmentos, como os indígenas, os quilombolas, as populações ribeirinhas, o segmento LGBTI+, dentre outros, que apenas muito recentemente foram reconhecidos como sujeitos de direitos e incorporados nas arenas decisórias em torno das políticas sociais.
Ao mesmo tempo, dada a profunda articulação dos conselhos sociais com as políticas públicas descentralizadas, há o risco de extinção dessas instâncias nas outras esferas governamentais, particularmente nos municípios, em uma espécie de efeito cascata.
O decreto de Jair Bolsonaro também revoga a Política Nacional de Participação Social, extinguindo o Sistema Nacional de Participação Social, instituído no governo Dilma Rousseff, e que pode ser visto, em certo sentido, como resposta às manifestações populares de junho de 2013. Tinha o propósito de orientar órgãos e entidades da Administração Pública federal a estabelecer diálogos e ampliar a participação da sociedade nas ações governamentais, por meio de diferentes mecanismos e formas de participação popular (conselhos, conferências, ouvidorias, audiências e consultas públicas, mesas de diálogo e negociação etc.), regulamentando a Lei nº 10.683, de 28 de maio de 2003. Nesse sentido, a Política Nacional de Participação Social incluía tanto as novas formas de participação, por meio das redes sociais e internet, com destaque para o estabelecimento de um marco civil da internet, quanto valorizava as formas tradicionais de organização e mobilização social.
A instituição da Política Nacional de Participação Social provocou forte reação contrária da mídia e do Congresso Nacional, sob o argumento de que a mesma daria acesso privilegiado a certos atores sociais, notadamente os movimentos sociais. Para o Legislativo, essa política diminuiria o poder dos deputados e senadores e enfraqueceria a democracia representativa. Sob essa alegação, os então deputados federais Mendonça Filho e Ronaldo Caiado (ambos do DEM) impetraram, à época, um Projeto de Decreto Legislativo para sustar o decreto presidencial. Desse modo, a extinção dos conselhos sociais por Jair Bolsonaro acaba por também atender a essa demanda de seus aliados.
À extinção dos conselhos sociais associam-se outras iniciativas que se ampliam e aprofundam no atual governo, no sentido de criminalização dos movimentos sociais e de repressão a vozes discordantes. A recente prisão, em junho de 2019, de líderes do movimento por moradia em São Paulo de forma arbitrária é, desse modo, exemplar.
Em uma sociedade altamente desigual como a brasileira e experimentando um momento de forte polarização política e ideológica, a eliminação do contraditório e a hostilização pública de todos os que ousam pensar diferente – processo esse estimulado pelo próprio presidente por meio de intensa utilização das redes sociais – acaba por aprofundar cada vez mais a apartação social e menosprezar o processo mais amplo de discussão coletiva, ferindo, assim, a própria democracia.
* Sanitarista, professora da Escola de Serviço Social e do Programa de Pós-graduação em Política Social da Universidade Federal Fluminense
AVRITZER, L. A dinâmica da participação local no Brasil. São Paulo: Cortez, 2010.
BRASIL. Lei 10.683 de 28 de maio de 2003.
_______. Decreto n° 8.243, de 23 de maio de 2014.
_______. Decreto n° 9.759, de 11 de abril de 2019.
SCHMIDT, D. L. O movimento social e o governo Lula: uso de instrumentos democráticos – avanços e desafios. Brasília. Texto digitado, nov. 2006.
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