A pandemia acabou?
Para entendermos os conceitos de epidemia, pandemia e endemia, é preciso levar em conta a combinação de três variáveis da epidemiologia – pessoa, tempo e lugar –, observando-se em que grupos se dão os casos e óbitos, qual a sazonalidade, ciclos e tendências e qual a abrangência da doença. Em linhas gerais, se a doença atinge número restrito de pessoas, em local restrito e tempo restrito, trata-se de um surto, como pode ocorrer, por exemplo, dentro de uma escola, em uma festa de casamento.
Quando o número de pessoas atingidas ultrapassa determinados limites geográficos, chegando a diversos municípios, dentro ou não de um mesmo estado ou um mesmo país, em tempo definido, ainda que longo, pode se estar diante de uma epidemia. E, se isso se espalha, alcançando pessoas em três ou mais continentes, também em determinado espaço de tempo, tem-se a pandemia.
Por fim, para definirmos uma endemia, temos essa mesma última situação, mas com número constante de pessoas que adoecem ou morrem, se comparado com períodos anteriores. E aí começa nossa maior dificuldade quanto à Covid-19. Quando se tem um vírus novo, uma doença nova, não há parâmetros anteriores para comparação. Os parâmetros vão sendo definidos no momento em que o evento acontece. Hoje, não temos um consenso nacional e internacional – e aí devemos destacar a importância dos organismos multilaterais na busca por esse consenso – quanto a esses parâmetros.
Quando se tem um vírus novo, uma doença nova, não há parâmetros anteriores para comparação. Os parâmetros vão sendo definidos no momento em que o evento acontece
O que vamos considerar aceitável? O que vamos considerar normal em número de óbitos? Qual o número de casos admissível? Comparado com o quê? Esse consenso está sendo construído – esse é o entrave maior para entrarmos na fase endêmica da Covid-19.
Em relação ao Brasil, é importante, neste momento, relembrar o que vivemos nos dois anos de pandemia e apontar onde falhamos, pois podemos – e precisamos – aprender com nossos erros. Nesse sentido, devemos considerar as dimensões operacional e epidemiológica do enfrentamento da pandemia. A revogação, em 22/4/2022, do decreto que instituiu no Brasil a Emergência Sanitária de Importância Nacional, está na dimensão operacional, mas precisa ser ancorada em critérios epidemiológicos, que ainda não estão definidos internacionalmente.
Uma publicação da Universidade Johns Hopkins, Public Health Principles for a Phase Reopening During Covid-19: Guidance for governors, já havia apontado, em abril de 2020, no início da pandemia, que seria necessária uma coordenação por fases – o que não fizemos. Quanto ao que seria a fase 1, com base nessa publicação, tivemos as nossas medidas de distanciamento, a orientação de ficar em casa para diminuir a interação com outras pessoas e diminuir a propagação do vírus e da doença, que não conhecíamos. Essa primeira fase teria o intuito de nos dar tempo para estudar, preparar o sistema de saúde, comprar insumos, máscaras, testes. Precisávamos diminuir a propagação, poupar vidas nesse início, para nos organizarmos.
Depois, uma segunda fase se caracterizaria pela redução do número de casos por pelo menos 14 dias, e já com alguma abertura, mas contando-se com testes diagnósticos suficientes para, no mínimo, atender todas as pessoas com sintomas de Covid-19, bem como seus contatos próximos, e aqueles exercendo funções essenciais. Isso exigia do sistema algo que também não fizemos e em que somos muito bons: a vigilância epidemiológica e a ênfase na atenção primária. Temos a nossa Estratégia Saúde da Família e precisávamos fortalecer isso durante a pandemia, para que fosse possível cuidar de todos os pacientes e para que os profissionais contassem com equipamentos de proteção e recursos adequados. Mas o que vimos foi um enfraquecimento da atenção primária.
Por falta de uma coordenação nacional, cada estado definiu os próprios critérios para lidar com a pandemia, e a estratégia para isso foi o foco na alta complexidade, na abertura de leitos para esperar as pessoas adoecerem. Esse foi o grande investimento feito no Brasil, o investimento mais caro, na direção contrária à indicada pela OMS, que era testar, testar, testar. O teste precoce e o rastreamento de pessoas doentes e seus contatos, conjugados ao isolamento rápido dos positivos e associados a um início de abertura dos setores, constituiriam as providências adequadas nessa fase 2.
A abertura de leitos, para esperar as pessoas adoecerem, foi o grande investimento feito no Brasil, o investimento mais caro, na direção contrária à indicada pela OMS, que era testar, testar
A fase 3 já seria aquela em que os gestores podiam limitar a transmissão do Sars Cov-2 por meio de combinação de testagem, isolamento de pessoas com a doença ativa e isolamento precoce de contatos rastreados. Para isso seria preciso uma vigilância territorial, isto é, ir até as pessoas, em vez de esperar que chegassem ao serviço de saúde. E, novamente, não fizemos isso. Erramos mais uma vez.
Lidamos também nessa fase com uma dicotomia falsamente produzida entre economia e saúde pública. É importante pontuar que a economia tem as próprias estratégias compensatórias e que não foram implementadas. Nessa disputa politica polarizada houve um com grande esforço concentrado na economia e nenhum esforço na educação. As escolas foram as últimas a voltarem a funcionar.
O documento da Johns Hopkins mostra uma pirâmide invertida com a gradação das providências que deveriam ser tomadas durante a pandemia. No alto da pirâmide, fica o distanciamento físico, como medida mais importante. Logo abaixo, vêm os controles de engenharia, isto é, providências como instalação de filtros Hepa nos sistemas de exaustão dos locais fechados, para eliminar contaminantes biológicos. Embora já soubéssemos como lidar com micro-organismos respiratórios de transmissão aérea e pessoa a pessoa, não houve qualquer preocupação em preparar os ambientes para a circulação de pessoas de forma segura. Somente uma ou outra empresa, nenhuma escola. Não foi feito investimento nisso.
Já mais próximo do vértice da pirâmide, estariam os controles administrativos, os protocolos – que nós adotamos. Definimos protocolos para entrada nos diferentes locais, como obrigatoriedade da máscara, medição da temperatura (depois vimos que a febre era um sinal que só aparecia em 30% ou 40% dos casos). Por fim, no vértice da pirâmide, estão localizados os equipamentos de proteção individual, ou seja, quando tudo falha, é com esse recurso que se pode contar.
Já sabíamos de tudo isso em abril de 2020, mas não houve um direcionamento para que políticas públicas fossem devidamente adotadas. O que aconteceu no Brasil é que ficamos parados na primeira fase. Não temos até hoje protocolo de testagem, não temos até hoje protocolo de atendimento. É importante reconhecer isso para estarmos preparados para uma próxima vez. Teremos outras pandemias – além de ainda estarmos enfrentando a Covid-19 – e não podemos errar de novo.
A fase 4, ainda no documento da Johns Hopkins, em que já se conta com vacinas e medicamentos, é aquela em que talvez nos encontremos hoje, um momento interpandêmico, mas com a possibilidade de uma nova onda da doença também no horizonte. É o período em que podemos nos organizar para estarmos preparados, para termos capacidade de resposta ao que vier a acontecer, mesmo com a revogação do decreto de Emergência em Saúde Pública.
Não temos até hoje protocolo de testagem, não temos até hoje protocolo de atendimento. É importante reconhecer isso para estarmos preparados para uma próxima vez. Teremos outras pandemias – além de ainda estarmos enfrentando a Covid-19 – e não podemos errar de novo
Graças à vacinação, conseguimos chegar a um estágio que permite nos situarmos em um período de transição. Mas é preciso lembrar que cada estado da federação enfrentou a pandemia de uma forma e estamos, assim, em momentos diferentes da pandemia no país. É preciso também chamar atenção para o percentual pequeno de pessoas elegíveis para tomar a dose de reforço e que ainda não o fizeram. E temos ainda uma vacinação muito tímida em crianças, que é preciso melhorar. Carecemos de campanhas de comunicação e incentivo.
Sabemos que esse período de transição dependerá muito da imunidade da população em relação ao Sars-Cov-2. As estimativas mostram que mais de 50% das pessoas já entraram em contato com o vírus, seja pela vacina, seja por infecção prévia, seja por ambos os caminhos, o que chamamos de imunidade híbrida. Mas não sabemos qual será a duração da imunidade gerada por esse contato. E temos, ainda, dificuldades nas estratégias de controle. O Sars-Cov-2 é um vírus diferente, capaz de atingir pessoas de forma assintomática, tornando difícil sua detecção. Isso somado à dificuldade de alcançarmos uma proteção durável e a uma alta capacidade de reinfecção, conforme verificamos com a onda da variante Ômicron.
As estimativas mostram que mais de 50% das pessoas já entraram em contato com o vírus, seja pela vacina, seja por infecção prévia, seja por ambos os caminhos. Mas não sabemos qual será a duração da imunidade gerada por esse contato
Aprendendo com o que passou, precisamos de ações urgentes, e aqui cabe listarmos algumas delas.
- os medicamentos efetivos contra a Covid-19 já autorizados por agências internacionais e pela Anvisa devem estar disponíveis no SUS, porque mesmo vacinadas, as pessoas mais vulneráveis terão possibilidade maior de desenvolver doença grave;
- precisamos de protocolos de atendimento, nos diferentes níveis de atenção à saúde, definindo-se em que momento entrar com cada medicamento, quando e com que critérios referir para um nível de maior complexidade;
- precisamos de campanhas efetivas para convocar a população às doses de reforço e fazer uma previsão de novas campanhas voltadas à aplicação das futuras doses, lembrando que não sabemos ainda, em nível mundial, como a vacina contra a Covid vai se incorporar ao calendário vacinal;
- precisamos estruturar o atendimento às sequelas da Covid, o que requer serviços inter e multidisciplinares;
- precisamos realizar avaliações periódicas, a cada 90 dias, do cenário da Covid-19;
- precisamos fortalecer as equipes de epidemiologia e garantir que as estruturas criadas para monitoramento, diagnóstico e tratamento da doença tenham manutenção e não sejam descontinuadas com a revogação do decreto de Emergência Sanitária;
- precisamos da estratégia de vigilância de síndromes respiratórias agudas (SRA), integrando a Covid-19 no portfólio de diagnóstico diferencial da vigilância genômica do vírus;
- precisamos de uma vigilância integrada.
Essas ações devem estar regulamentadas e coordenadas. Não basta revogar o decreto, é preciso um plano de transição, que comunique à sociedade como isso vai se dar, o que vai ser feito. Os recursos extraordinários destinados à Covid-19 e à emergência de saúde pública devem se tornar ordinários, incorporados à vigilância. Não há como fazer ação alguma sem financiamento.
Registro um apelo para que seja criado no Brasil um Instituto Nacional de Monitoramento de Emergências em Saúde Pública, que atue de forma interdisciplinar e com autonomia.
Precisamos atuar de forma desvinculada das ações político-partidárias. É importante que nossas instituições sejam do Estado brasileiro e possam cumprir sua função.
Por fim, é preciso fortalecer o SUS, com ações integradas e com investimento.
*Epidemiologista, professora e pesquisadora do Centro de Ciências da Saúde (CCS) da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Artigo produzido a partir da exposição realizada no seminário ‘A pandemia de Covid em transição’, realizado em 20/04/2022.
O conteúdo desta publicação é de exclusiva responsabilidade da(s) autora(as) e do(s) autor(es), não representando a visão do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz, que garante a diversidade e a liberdade científica de seus colaboradores.