A Educação pós-pandemia – Maria de Lourdes da Silva: ‘Forças se organizam para alterar definitivamente a educação escolar para o modelo remoto excludente’
Durante a pandemia, todos os que trabalham com a educação tiveram que se reinventar buscando novas formas de executar seu trabalho e manter seus propósitos. A internet tornou-se elemento fundamental na interlocução entre professores e alunos, no Brasil e no mundo. Educação, no entanto, se faz dentro da escola, de forma presencial, como defendem os próprios educadores. Além de a pandemia estar privando professores, alunos edemais trabalhadores da educação desse contato, dados do Unicef mostram que cerca de 4,8 milhões de crianças e adolescentes, de 9 a 17 anos no país, não têm acesso à internet em casa – cerca de 17% de todos os brasileiros nessa faixa etária. Assim, a pandemia escancarou desigualdades e nos mostra que os desafios a serem enfrentados na educação, que já são inúmeros, aumentaram em tempos de pandemiae irão se impor cada vez mais na busca por se alcançar a qualidade do ensino e da aprendizagem para todos.
“É preciso separar o joio do trigo, para não se permitir que recaia sobre o fechamento das escolas questões anteriores à crise sanitária”. O alerta é da professora Maria de Lourdes da Silva, da Faculdade de Educação da Uerj, integrante do conselho editorial do Dicionário de Favelas Marielle Franco, ouvida pelo blog do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz, para refletir e buscar alternativas ao cenário de desafios à Educação, amplificado pela pandemia de Covid-19, afastando professores e alunos do ambiente escolar. (acesse aqui o post anterior sobre o tema).
Em um conjunto de podcasts, a professora explica que não dá para pensar o fechamento das escolas, em função da pandemia, e suas consequências, de modo dissociado dos novos marcos legais da educação. “Desde 2016 mudanças no regime normativo da educação têm sido impostas de cima para baixo, com um projeto de educação que não foi discutido e tampouco negociado com a sociedade civil e com as organizações da área dedicadas historicamente a elaboração dessas normativas”, analisa.
Para Maria de Lourdes, é preciso considerar os impactos gerados por esse conjunto normativo, que deverá repercutir negativamente na qualidade da aprendizagem, com restrição da capacidade crítica do aluno. “Essa base comum, que aplica uma espécie de currículo mínimo, de componentes curriculares e seus conteúdos, vem acarretando o aprofundamento das desigualdades sociais”, considera a professora.
Maria de Lourdes, que também é membro do Centro de Estudos e Ações Culturais e de Cidadania, da Cidade de Deus, aponta que há setores interessados nesse atual projeto de educação e condenam o fechamento das escolas apoiando-se na justificativa de que isso aumentaria a defasagem do aprendizado para muitos alunos. Para a professora, há uma “carga ideológica” nesse argumento, que coloca na conta do fechamento das escolas a responsabilidade por “defasagens no aprendizado que vêm de longa data e que se acentuaram nesse período”.
Maria de Lourdes destaca, ainda, que outro argumento contra o fechamento das escolas vem se constituindo “sob a dialética da importância da educação no combate às desigualdades sociais”. Para ela, mais um argumento de fundo ideológico. “É certo que para os setores mais pobres da sociedade, a escola é o único meio de acesso aos bens culturais, ao patrimônio cultural acumulado, mas é certo também que as escolas, sobretudo as públicas, carecem da infraestrutura necessária para suprir a contento esse papel na promoção social de seus estudantes e também de seus professores”, avalia.
A educadora destaca também, a importância do projeto de lei (PL 3.477/2020), que pleiteava internet gratuita para professores e estudantes da educação básica pública, assim como para as comunidades indígenas e quilombolas. O projeto havia sido aprovado pelos deputados e senadores no congresso nacional, mas foi vetado pelo presidente da república em nome da meta fiscal, conforme assinala.
“A atenção dada à meta fiscal sem pandemia já era um indicativo de restrição de direitos constitucionais. Em tempos de pandemia, essa meta constitui violação do direito à vida e às condições de sua manutenção. Minimizar os impactos da desigualdade de acesso à internet que viabilizaria uma distribuição mais equânime da educação nesse momento nos leva a confirmar a direção para onde se orienta o projeto de educação que está em curso”.
Para Maria de Lourdes, neste momento, é preciso ter uma compreensão da educação para além das aprendizagens técnicas e conteudistas, e operar no sentido da preparação mais ampla das gerações de jovens reforçando valores e visões de mundo. “Pensar em aprendizagem de conteúdos específicos e transpô-los ao ensino remoto é empobrecer o papel da educação, é reduzir ao utilitário, aos interesses do mercado e à lógica neoliberal”, avalia. “Essa imposição de um modelo de aula remoto, através de plataformas altamente elaboradas, com sofisticados recursos, denota um projeto que não quer ser transitório, mas quer se estabelecer como permanente. Essa exigência de se cumprirem metas de aprendizagem mostra a aplicação de um modelo que pretende ficar, e esse é o perigo que nos ronda”, alerta.
Segundo a professora, estamos perdendo a oportunidade de construir uma educação remota transitória, capaz de atender com eficiência as necessidades mais prementes dos estudantes no que diz respeito à socialização, â manutenção dos laços interpessoais, aos sofrimentos psíquicos e emocionais. “A ressignificação da própria internet como espaço de provimento de contatos qualificados, no sentido mais humanizador da palavra, isso está posto, parte da vida já era virtual antes da pandemia. Mas estamos abrindo mão disso tudo em nome de um modelo de educação produtivista. A consequência mais ameaçadora para educação nesse momento vem dessas forças que se organizam para alterar definitivamente a educação escolar do ensino presencial para esse modelo remoto, excludente e elitista, que, sobretudo, impede o espaço de trocas múltiplas de efetividade que representa o espaço escolar presencial”.
Papel dos professores
“As discussões sobre educação neste momento de pandemia tentam colocar em evidência a possibilidade de substituir o professor por uma plataforma eficiente, criativa e cheia de recursos”, alerta Maria de Lourdes. Para ela, estão tentando passar a ideia, mais uma vez, de que os professores são despreparados, ineficientes e, sobretudo, dispendiosos. “Não à toa discute-se o homeschooling, o ensino híbrido e tudo isso pari passu a implementação de marcos regulatórios da educação que caminha para o aprofundamento da desvalorização do profissional da educação”, aponta.
Segundo Maria de Lourdes, a cada crise que a sociedade vive, tende-se a revisitar o déficit da formação do professor. “Isso já é um lugar-comum, acusar o professor de formação deficiente. Neste tempo de pandemia, em que constatamos serem poucos os profissionais da Saúde especializados em atendimento em Unidade de Terapia Intensiva (UTI), por exemplo, não associamos essa escassez com déficit de formação desses profissionais. Por que o fato de nem todos os professores serem versados em Tecnologias da Comunicação e da Informação (TICs) acarreta na premissa do déficit da formação de todos os profissionais da Educação?”, indaga Maria de Lourdes.
“Nas condições de trabalho dos professores das escolas públicas brasileiras, isso é um excesso de especialização que raras vezes encontra utilidade – não é comum ter computador e internet nas escolas. Existem escolas sem eletricidade e água potável. A distribuição irregular de conhecimento sobre TICs entre os professores não é déficit de formação”, pontua.
Abertura das escolas em tempos de pandemia
“É preciso ponderar sobre os prejuízos psíquicos e sociais vividos pelas crianças neste momento”, avalia Maria de Lourdes. Para a professora, se as crianças e os jovens estivessem indo à escola, se estivessem acompanhando um cotidiano de adoecimentos constantes, de alteração profunda na rotina e de perda de vidas de pessoas próximas e conhecidas, em função da pandemia, isso talvez pudesse trazer um “prejuízo psicossocial infinitamente maior do que o afastamento social”.
Na avaliação da professora, se os estudantes tivessem que conviver com uma rotina de medidas sanitárias e autocuidado rigorosas, inflexíveis, em que a desatenção mínima pudesse implicar na morte delas e de outras pessoas, isso poderia submetê-los a uma pressão cruel e desnecessária. “O mais sensato a fazer agora é investir no modelo educativo remoto, que mobilize crianças e jovens a desenvolver sentidos para a vida em sociedade e refletir sobre a importância da preservação da vida deles e dos que eles amam. O que chamamos de ensino remoto é o meio que nos permite estar juntos neste momento, construindo modos de superação, mas preservando nossa compreensão e nossa empatia e alteridade com relação a nós e os outros”, avalia.
Acesse podcast anterior com a professora Marise Ramos, da EPSJV/Fiocruz